João Fraga de Oliveira

Escola, professores, pais: o longo braço do trabalho

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“Exaustos, desiludidos ou baralhados. Um terço dos professores sente-se assim”.

Esta frase é o titulo de um artigo no Público de 8/9/2016 (https://www.publico.pt/sociedade/noticia/exaustos-desiludidos-baralhados-e-assim-com-um-terco-dos-professores-1743362), com base num estudo coordenado pelo professor da Universidade Católica Joaquim Azevedo (ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário).

O estudo e o próprio artigo do Público são  dois contributos importantes para uma (mais) sustentada e consequente reflexão da qualidade do Sistema de Educação em Portugal, considerando a determinância que neste têm os professores (e necessariamente as suas condições de trabalho e de realização profissional).

Mas, sem prescindir do enquadramento (mais) “laboral” que mais adiante se fará, o que especialmente aqui se visa é destacar “apenas” um excerto desse artigo: “Muitos (60%) sentem que os alunos estão mais desmotivados do que no passado. E lamentam que os pais ‘não se preocupem com a educação dos seus filhos’. Consideram que a desmotivação e a falta de apoio das famílias são os dois ‘principais problemas’ das crianças e dos jovens com quem trabalham.”

Nos últimos anos (e mormente nos últimos quatro), na Escola, cresceu a falta de meios materiais, de técnicos, de pessoal auxiliar qualificado e estável, de professores.

Cresceu também a precariedade (no sentido não apenas do vínculo laboral mas, mais geral, da natureza volátil, incerta, precária do trabalho, com constantes alterações curriculares, organizacionais e regulamentares) e o desemprego de professores (que, de cá “de fora”, entrou, subrepticiamente pela Escola “dentro” anuviante o ambiente sociolaboral e, necessariamente, socioeducativo) e, assim, insidiou-se uma certa sensação generalizada de  incerteza e a insegurança profissional latente. Há deficiências e ou insuficiências de organização e gestão, aumentou a falta de estabilidade funcional e geográfica, a burocracia, a (sobre)intensificação do trabalho.

“Inovaram-se” currículos, sem garantir que não seriam pedagógica e etariamente desadequados e desproporcionados,  cresceu a (sobre)dimensão das turmas, fomentou-se politicamente a pressão organizacional e profissional para o  “examinismo”. Tudo isto, associado ao exagero no fecho de escolas e na criação de “megaagrupamentos”, induziu maior despersonalização e desumanização do ensino e, em geral, no trabalho nas escolas.

Alunos indisciplinados, pouco aplicados, com dificuldades de aprendizagem? Professores “exaustos”, “desiludidos”, “baralhados”?

Onde estão as principais razões? Dentro da Escola (ou, pelo menos, do Sistema Educativo, incluindo na sua tutela política).

Mas é ainda o famigerado estereótipo da “guerra” entre pais e professores que mais facilmente “explica” – segundo a citação constante naquele artigo do Público – que os pais “sejam” um dos “bodes expiatórios” da “exaustão”, da “desilusão” e da “baralhação” dos professores.

Sem dúvida, os pais não se podem, de algum modo, desresponsabilizar em tudo fazerem (como, em regra, fazem) para que os seus filhos sejam (integralmente) bons alunos. Aliás, até que ponto essa alegada “falta de preocupação dos pais pela educação dos filhos” (também) não decorre muito, directa ou indirectamente, das condições de trabalho (organização e duração do trabalho, precariedade, salários) dos próprios pais?

O certo é que, enquanto se continuar a alimentar este estereótipo, enquanto se procurarem fora da Escola (tal como noutras organizações empregadoras) explicações para problemas (nomeadamente para a degradação das condições de trabalho)  que estão lá dentro, não vão surgir reflexões e soluções adequadas e efectivamente consequentes.

Por isso, este estudo é também mais um que esclarece a situação que hoje se vive no mundo do trabalho, neste caso, do trabalho dos professores.

As conclusões do estudo não são surpreendentes, na medida em que são “coerentes” com o que, pelo menos no último quarto de século, se tem vindo a passar no mundo do trabalho em geral: desvalorização do trabalho (e não apenas na sua remuneração mas, também, no seu reconhecimento humano, social, económico e político) e degradação das condições (e não apenas nas condições materiais mas, também, nas condições sociais) em que é realizado.

Decorrem, daqui, riscos para a saúde das pessoas e não apenas para a saúde física mas, cada vez mais, para a saúde mental, sendo que estes últimos, os riscos para a saúde mental, se bem que não sejam dissociáveis daqueles (bem pelo contrário, na medida em que até se podem relacionar e potenciar mutuamente, de forma directa e proporcional) estão intimamente associados às condições organizacionais e sociais em que o trabalho é realizado.

Riscos, também, para o que é (humana e socialmente, até legalmente) legítimo esperar-se de qualquer trabalho: realização e reconhecimento pessoal e profissional.

São os chamados riscos psicossociais (apesar de esta designação ser de algum modo redutora): a fadiga crónica, o “stress”, o burnout (esgotamento físico e ou mental), a “desmotivação” e, num plano já mais de relacionamento social no (pelo) trabalho, o assédio moral, a violência no trabalho.

Não obstante também se verifique em profissões de índole mais “operária” (até porque associados a outros diversos riscos para a saúde física, como é o caso, por exemplo, das lesões ou doenças músculo-esqueléticas), é especialmente no sector dos “serviços”, em funções de intenso relacionamento social com os públicos que são o objecto (e objectivo) da profissão, que mais exposição existe a estes riscos profissionais.

E tanto mais quanto eles são acentuados pelo excesso de responsabilidade para o tempo e os meios de que dispõe quem trabalha, pela (sobre)intensificação e burocratização do trabalho, pela discrepância entre os parâmetros burocrático-administrativos da avaliação do desempenho e a realidade do trabalho que é executado (de tal modo que as pessoas, para lhe reconhecerem quantitativamente o trabalho, têm que o executar qualitativamente de tal modo que deixam de nele se reconhecer).

Sobretudo, está também subjacente  estes riscos e à sua generalização (em certa medida, são “contagiosos”, “pegam-se”)  a insegurança e incerteza contínua (decorrente não apenas da precariedade do vínculo laboral ou das condições de duração ou de local de trabalho precário mas também das alterações constantes das referências fundamentais – inclusive as regulamentares – da função), pois que, como escreveu Pierre Bourdieu (Contrafogos I, 1998), “a insegurança objectiva é a base de uma insegurança subjectiva generalizada que afecta hoje (…) o conjunto de trabalhadores, incluindo aqueles que não foram, ou não foram ainda directamente atingidos.”

Enfim, estes riscos profissionais “estão na moda”, não apenas pelo que as transformações da economia e as mudanças na organização do trabalho os estão a fazer (mais) emergir e agravar,  mas também pelo facto de, cada vez mais, virem a ser objecto de inúmeros estudos e da especial atenção do Estado, dos Parceiros Sociais, da comunidade científica, etc.. Por exemplo, um estudo de Janeiro de 2016 do Barómetro de Riscos Psicossociais estimava que 72% dos trabalhadores em funções públicas e 69% dos trabalhadores do sector privado apresentam uma elevada exposição a estes riscos.

Há outras profissões em que tem vindo a público informação fidedigna e sustentada sobre a situação de trabalhadores vítimas das consequências destes riscos, podendo apontar-se como um dos exemplos disso o caso de médicos com sobrecarga física e metal e esgotamento (burnout) e, até, o de alguns de suicídios indiciados como associados às condições de trabalho, para além de alguns médicos (tal como, aliás, alguns professores) sujeitos a violência física.

No caso dos professores, não só a OCDE como a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outras entidades mais especificamente ligadas à profissão têm vindo a reconhecer esta como uma das mais expostas a estes riscos.

O trabalho, em geral (inclusive o trabalho dos professores), está cada vez mais a ser esvaziado da sua essência, na medida em que, consubstanciando-se concretamente nas pessoas que trabalham (o trabalho não é algo abstracto, um mero conceito económico, jurídico ou sociológico), está a ser esvaziado da sua “decência“, da sua “dignidade”, (ancorando-nos num conceito da Organização Internacional do Trabalho – decent work, adoptado em Portugal como “trabalho digno”).

Naturalmente, as pessoas, almejam sentido no seu trabalho, almejam realizar-se (profissional e pessoalmente) e não apenas “realizar” (o quê, quanto, como, para quê …), por mais quantitativamente “deslumbrante” que essa “realização” seja quando ostentada em inerentes rankings.

E se é do sucesso educativo dos alunos que muito depende a realização profissional dos professores, também é verdade o inverso desta relação (biunívoca): é das condições de trabalho dos professores, da sua realização profissional e no sentido que vivem do (no) seu trabalho de professor que depende o sucesso dos alunos.

Mas se, escamoteando a importância de factores políticos e organizacionais indutores da degradação das condições de trabalho nas escolas, se considera “a falta de preocupação dos pais pela educação dos alunos” como  “um dos principais problemas” causadores da “exaustão”, “desilusão” e “baralhação” dos professores, tem (também) aqui sentido o que escreveu Yves Clot em La Fonction Psychologique du Travail (2006, PUF, Paris): “o trabalho tem um braço longo”.

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