João Fraga de Oliveira

O existir do medo e o medo de existir

Ed668_oMedo“Prefiro morrer de pé do que viver de joelhos”. O autor desta frase, Stephane Charbonnier (Charb), director do jornal parisiense Charlie Hebdo, morreu mesmo “de pé”. No passado dia 7 de Janeiro, no ataque à sede do jornal, em Paris, por três terroristas.

Mais do que bárbaros assassínios, esta e a outra ofensiva terrorista ocorrida em Paris no mesmo dia (e outras que nos deixaram sinistras marcas como, Torres Gémeas, La Tocha, Noruega, etc.), consubstanciam não apenas um ataque à Liberdade (no caso de Paris, a uma das condições e expressões da Liberdade, a liberdade de expressão) mas, sobretudo, um projecto totalitarista de poder. De poder pelo medo.

Começámos, pois, o ano de 2015 a ser confrontados pelo medo. Pelo medo global.

Isto depois de um ano em que, por cá, nos confrontámos com medos mais “domésticos”, mais difusos. Mas, nem por isso, medos mais ou menos objectivos: medo das prestações (da casa, do carro, do plasma, das férias); medo do fim do mês, medo da fome, medo do desemprego, medo pelo trabalho (que, na precariedade, se pode perder), medo do trabalho (de não se aguentar a sobreintensificação e a exaustão), medo no trabalho (onde pode surgir a doença e até a morte ou onde, pela precariedade e o desemprego “cá fora”, pode haver quem nos “rentabilize” pelo medo); medo da reforma (pela solidão e ostracismo); medo na reforma (pela carência económica e de apoios sociais); medo pela reforma (que, na velhice, pode já não existir). Enfim, existe medo.

Contra estes e outros medos que existem, não falta por aí quem nos sugira “paciência” e “resiliência” e, assim, insidiosamente, poder insinuar-se-nos a resignação, a anomia, o conformismo.

E, daí, subrepticiamente, poderem surgir outros medos, ainda que mais subjectivos: o medo de contestar, o medo de se manifestar, o medo de ser sindicalizado, o medo de fazer greve, e, até, quiçá, o medo de votar (e ser enganado). Em síntese, o medo de exercer os direitos, o medo da cidadania, o medo da democracia e, assim, o medo de falar, o medo de pensar, e, até, mais do que os medos objectivos, o “medo sem objecto”, o medo incorporado”, o medo de viver, o medo de ser, o “medo de existir”.

“O duplo-esmagamento está em curso, apaga-se o medo com o medo, todos os medos antigos que o 25 de Abril não exorcizou desaparecem quando neles se enxerta o medo da exclusão, tanto mais incompreensível quando ele surge numa sociedade livre, democrática, que se edificou contra o antigo regime autoritário.” (José Gil – Portugal, Hoje. O Medo de Existir).

Alexandre O’Neill (O Poema Pouco Original do Medo) avisa-nos: “(…) Ah o medo vai ter tudo / tudo / (Penso no que o medo vai ter / e tenho medo / que é justamente / o que o medo quer) / O medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos de chegar / quase todos / a ratos / Sim / a ratos”.

O que é que liga estes nossos medos “domésticos” aquele outro medo mais global(izado) de que os recentes acontecimentos em Paris são exemplo?

Pelo menos, algumas perguntas comuns: Como se chegou a “isto”? De onde veio “isto”? Para onde vai “isto”? Como parar “isto”?

E também, desde já, como sinal de modelo de resposta, a grande manifestação em Paris no passado domingo, expressiva proclamação das referências teóricas sociais e políticas originárias da sociedade europeia (e não só): liberdade, fraternidade, igualdade.

A proclamação é importante, como “diagnóstico” da necessidade de refortalecimento dessas “raízes” sociais e políticas. Mas, convenhamos, dado o quanto estas têm sido tão fragilizadas por certos “climas” ideológicos, económicos e (as)sociais, não for consequente em coerentes concretizações, desperdiçar-se-á o seu potencial de contra-ataque ao medo, “metendo-lhe medo” com a (re)exercitação quotidiana de tudo o que, concretamente, consubstancia esses mesmos referenciais.

Mas, ainda que individual, como modelo de resposta talvez mais significativa que a manifestação, ainda seja a citação do malogrado director do Charlie Hebdo que inicia este texto. Perante o medo, “viver de pé”. Existir.

Em geral, “doméstica” ou globalmente, trata-se de, perante o medo, não de insistir (por exemplo, nos nacionalismos, na xenofobia, na intolerância religiosa, nas desigualdades sociais), de desistir (pelo fechamento, pelo “cada um que se amanhe”, pela submissão), ou, até mesmo, de resistir (pela sobreexaustão, pelo securitarismo, pelo belicismo).

Trata-se, sim, de existir. No plano mais global, pela efectiva reafirmação e exercitação concreta daquelas referências programáticas sociais e políticas da vida em sociedade. No plano mais “doméstico”, essencialmente, pela reafirmação e exercitação concreta e plena das obrigações e direitos sociais e de cidadania.

É isto que “mete medo” a quem nos mete medo e, como nos sugere Umberto Eco (O Nome da Rosa), “é sempre melhor que quem nos incute medo tenha mais medo do que nós”.

Enfim, perante o “medo de existir” com que nos confrontam(os), a solução é óbvia: existir. Existir mesmo. Contra o(s) medo(s) que existe(m).Redação Gazeta da Beira

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