João Fraga de Oliveira
A saúde como condição da confiança e a confiança como condição da saúde (conclusão)
A saúde como condição da confiança e a confiança como condição da saúde (conclusão)
Na primeira parte deste artigo, para além da acentuação da relevância da confiança social nas inerentes autoridades e no poder político quanto a um domínio tão eminentemente social como é a Saúde, quanto à questão específica das vacinas covid, relevaram-se algumas situações relacionadas com a respectiva gestão por parte da União Europeia susceptíveis de fragilizar a confiança social. E quanto a Portugal o facto de a letalidade covid se ter verificado essencialmente nas pessoas de mais idade (acima dos 50 anos), sem que a maior parte estivesse vacinada. Sendo até então a explicação oficial para isso a escassez de vacinas.
Mas, entretanto, desviou-se a aplicação do Plano da vacinação das pessoas com mais idade (ou seja, da “primeira prioridade, evitar a mortalidade”, segundo o Sr. Coordenador do Plano de Vacinação) para a vacinação de algumas profissões consideradas essenciais para a “resiliência do Estado” e no exercício dessa profissão com risco acrescido (acrescido, porque, afinal, numa situação de pandemia, por definição, ao risco corrente toda a gente está sujeita).
É inquestionável que tais profissões são essenciais para a “resiliência do Estado”, não apenas permanentemente (aliás, económica e socialmente, todas o são) mas ainda mais na actual situação.
Desde logo, evidentemente, os profissionais de saúde, que foram, e bem (não “apenas” pela saúde e vida deles próprios, em inquestionável acrescido risco, mas por todos em geral que deles estamos dependentes no tratamento, se necessário) os primeiros a serem vacinados.
Mas, à parte os profissionais de saúde, é preciso ter em conta que, num domínio como a saúde e numa situação como a presente de escassez de vacinas (porque, é óbvio, o ideal é que fosse possível com segurança e eficácia, vacinar toda a população) a “essencialidade” de qualquer profissão não é de todo objectiva, absoluta, há outras profissões (relativamente) também essenciais na (à) sociedade e até com acrescido risco covid pela natureza e condições do seu exercício e ou contexto laboral deste.
Aliás, houve até quem (o presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA) entendesse como “prioritária” a vacinação dos profissionais do sector do turismo por ser “uma mais-valia competitiva na fase da retoma, face a outros destinos turísticos concorrentes” (Jornal I, 26/3/2021).
Por outro lado, a ter como tem que haver estabelecimento de prioridades por escassez de vacinas e definindo-se como essencial para a “resiliência do Estado” determinada profissão, o entendimento dessa essencialidade para efeito de priorização na vacinação não pode decorrer da mera detenção do estatuto dessa profissão sem que este possa ser associado ao risco acrescido, ou seja, ao seu efectivo exercício.
O que, tanto quanto veio a público (inclusive, qualificadamente, por parte de pessoas de algumas dessas profissões), nem sempre rigorosamente assim aconteceu.
È certo que, entretanto, os critérios de vacinação foram alterados passando a prioridade a ser essencialmente a (maior) idade das pessoas, o que ainda mais evidenciou o quanto este factor de risco de letalidade, agora progressivamente prevenido, influiu, está a influir, na descida da letalidade covid diária.
O que, tanto quanto veio a público (inclusive por parte de pessoas da própria profissão) não terá rigorosamente acontecido, outro factor susceptível de minar a confiança social.
Mas algo que também do ponto de vista de comunicação (não se discutindo a bondade da decisão que lhe está subjacente) poderá induzir o risco de perda de confiança social é, por exemplo, o Sr Coordenador do Plano de Vacinação declarar agora, quanto a ter sido adoptado o critério de prioridade de vacinação em certas profissões, que “se continuarmos a vacinar por grupinhos, vamos acumular vacinas em armazém” (Jornal Público, 1/4/2021)
O risco é o de, não se questionando o alto nível ético e a preocupação com a saúde pública que o Sr. Coordenador tem demonstrado, o de se poder entender publicamente (com consequente perda de confiança institucional) que o critério de vacinação vai passar a ser a mais avançada idade das pessoas não por ser o “primeiro critério”, “prevenir a mortalidade” mas para não se “acumularem vacinas em armazém”.
Sob este ponto de vista de confiança social das pessoas, mais preocupante será, no entanto, o que se tem passado com a vacina “Astrazeneca”, quer a nível da União Europeia (sobretudo), quer a nível nacional.
Não há muito tempo, a autoridade de saúde e o poder político (essencialmente, a Comissão Europeia) da União Europeia, com (natural) seguimento das autoridades de saúde e o poder político nacional, prescreviam que essa vacina não devia ser administrada a maiores de 65 anos, porque, não tendo sido feitos os necessários ensaios “não há evidências da sua eficácia nesse grupo etário”.
Que se saiba, dado o pouco tempo decorrido e as condições de aplicação (doseada) dessa vacina, esses ensaios não foram (ainda) realizados.
Agora, é a mesma autoridade de saúde e poder político da União Europeia a orientar que é precisamente (só) aos maiores de 60 anos que essa vacina deve ser administrada, divergindo várias países nessa idade e mesmo, no caso de um (Dinamarca), deixando de a aplicar.
É claro que há que reconhecer que tal (nova) orientação da autoridade de saúde europeia e Comissão Europeia não poderia deixar de ser seguida pelas autoridades de saúde e poder político nacional.
Contudo, também na sua comunicação se terá perdido confiança social neste processo.
De facto, em inerente declaração pública, a Srª Directora-Geral de Saúde (a quem é merecido o maior respeito e consideração pelo inquestionável esforço e competência que tem colocado ao serviço da Saúde Pública), ao prescrever tal (nova) orientação e dirigindo-se a quem já tomou a primeira dose dessa vacina, pretendeu tranquilizar essas pessoas dizendo que até lá, à data da segunda dose, “talvez já haja informação adicional” (RTP 1 e 3, 9/4/2021), sem acrescentar mais outra inerente explicação.
O que é que – ouve-se alguém perguntar (-se) – entretanto, vai permitir essa, até agora desconhecida por falta de ensaios clínicos mas também agora importante como argumento para uma autoridade de saúde, “informação adicional”?
A vacinação “experimental” com essa vacina (só) dos maiores de 60 anos?
Por que não se suspende a vacinação com essa vacina, dada a perda de confiança nela (independentemente de esta até poder ser injustificada, como garantem especialistas da área, autoridade de saúde e poder político) e se diligencia para a substituir por outra – perguntam as pessoas, não obstante, a maior parte, acabar mesmo por se vacinar com ela quando for chamado.
É de supor que todas estas dúvidas e receios serão –virá a provar-se futuramente – objectivamente infundados, dadas a presumida idoneidade e responsabilidades (não apenas profissionais e eventualmente cíveis e criminais mas, pelo menos, éticas, humanas, sociais e políticas) das instituições e entidades envolvidas, quer a nível mundial, quer europeu e nacional.
Mas, a não serem esclarecidas de outra forma que não seja o de invocar o argumento de cariz “gestionário” “risco / benefício”, para cada pessoa, que como leiga em medicina, farmácia, virologia, pneumologia ou cardiologia, pensa na saúde e na vida por não saber se, apesar da enorme diferença de probabilidades estatísticas, lhe calha o “benefício” se o “risco”, é mais do que compreensível a eventual perda de confiança nas instituições e poder político quanto a esta matéria, com eventual projecção para outras.
E então volta-se ao início, à necessidade de reflexão (e coerente futura acção) por parte dos decisores, neste tipo de situações e não só, quanto ao risco de degradação da confiança (individual e social), tão determinante esta é como condição da saúde, tal como, vice-versa, a saúde é condição de(a) saúde.
Sublinhando, se para cada pessoa e para a sociedade a saúde é uma condição de (haver) confiança, esta, a confiança, é uma condição de (haver) saúde. Individual e pública.
(Uma versão deste artigo foi publicada no jornal Público online de 16/4/2021)
29/04/2021
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