João Fraga de Oliveira

Trabalho e covid-19: a realidade errada das “contas certas”

“‘Contas certas’, realidade errada”, é o título de um artigo, no Público de 14 de Junho de 2020, assinado por Vicente Jorge Silva (VJS)[1].

Apesar de, como leitor assíduo desde o primeiro número (30 anos acabados de fazer em 5 de Março), entender que VJS, tendo sido o primeiro, foi também um dos melhores directores do Público, o autor deste texto não está sempre de acordo com o que este excelente jornalista escreve. Mas aqui, este seu artigo de domingo, subscreve-o.

Ainda que por um prisma mais específico do que aquele, mais de cariz de “política pura” que VJS lhe confere.

Portugal é, actualmente, o segundo país da União Europeia onde diariamente (pelo menos nas últimas semanas) mais têm aumentado os casos de infecção covid-19.
Dir-se-á que é apenas um “surto” localizado. Acontece que a localização desse surto não é apenas de ordem territorial (região de Lisboa e Vale do Tejo) mas, essencialmente, de ordem social.
À maior parte desses casos, se não logo no contágio inicial, pelo menos na disseminação da infecção, estão associadas as condições em que as pessoas trabalham em determinadas empresas ou mesmo sectores de actividade (construção civil, trabalho temporário e outros) bem como as condições em que vivem (bairros da periferia da grande cidade, com degradadas condições de habitação e transportes massificados, quer públicos, quer fornecidos pelos empregadores[2]).
Tanto mais que (e não há muita necessidade de explicar e muito menos de fundamentar isto) as condições em que as pessoas vivem (habitacionais, e não só, também alimentares, de higiene, de saúde, familiares, etc), se é que não estão no desemprego (que, aliás – algo muito sonegado -, pode ser muito mais mental e fisicamente penoso do que o trabalho propriamente dito), decorrem essencialmente das condições em que trabalham: salários baixos ou dignos, precariedade ou segurança no emprego e no trabalho, sujeição aos riscos profissionais (acidentes de trabalho ou doenças profissionais) ou garantia de condições de segurança e saúde no trabalho.

Enfim, as condições em que as pessoas vivem decorrem em muito, se não principalmente, de terem, ou não, um trabalho digno.
A saúde (a saúde pública e a saúde individual) é algo eminentemente social. E daí que não surpreende que a covid-19 (como, aliás, qualquer outra doença) viesse, como veio (e com certeza mais virá) a destapar a realidade social do manto diáfano-financeiro das “contas certas”, sem que se deixe de admitir a importância do equilíbrio financeiro das contas públicas como instrumento (e não como fim) da situação económica e social (e daí política) do país.

Mas sob esta inquestionável concepção da saúde como algo eminentemente social, a situação de pandemia covid que estamos a atravessar veio (e provavelmente mais virá) , revelar, mais especificamente, muito do real da realidade laboral e social no mínimo psicossocialmente “suavizado”, por essas “contas certas”.

Volta-se aqui, relevando a realidade da centralidade humana e social do trabalho, à metáfora de Yves Clot, um psicólogo do trabalho francês:“o trabalho tem um braço longo”. Para o bem e para o mal.
Para o mal, agora, com o relacionamento com a “covid 19” e repercussões desta. Como se está a ver.
Afinal, se bem que se admita nesse desígnio de “contas certas” a coerência de se ter do “trabalho, uma visão de mercado”[3], a realidade certa é que o trabalho, se consubstancia nas pessoas que trabalham e quanto ao qual, necessariamente, tem que imperar uma visão tendo-o como “realmente humano” (preâmbulo da Constituição da OIT, 1919), uma visão que considere que “o trabalho não é uma mercadoria” (actual primeiro princípio fundamental da Constituição da Organização Internacional do Trabalho – OIT – , introduzido em 10/05/1944 pela Declaração de Filadélfia).
Então, alguma coisa resta perguntar (passe a presunção, talvez desta e doutras inerentes perguntas derivem propostas, quiçá coerentes acções…), ainda que relativizando esse questionamento com o reconhecimento das dificuldades económicas, sociais e políticas implicadas pelas medidas (em geral, sanitariamente adequadas e necessárias) de contenção e mitigação da covid-19.

Resta perguntar se com o desígnio da “certeza” das contas é coerente o desígnio da “certeza” da qualidade do trabalho, ou seja, a “certeza” humana, social, económica e política da legislação (ainda) em vigor e do seu enquadramento institucional, isto é, a “certeza” de mais justiça social, mais segurança do emprego, salários mais dignos porque melhores e mais justos, melhores condições de segurança e saúde do trabalho?

Em síntese, resta perguntar, com a OIT a lembrar-nos a importância dessa pergunta, se com a “certeza” das contas é coerente a garantia de um trabalho mais digno[4]?

Neste contexto, enfim, resta perguntar se na “retoma da normalidade” se vai manter a (mesma) anormalidade laboral e, muito daí, económico-social que é efeito, mas como se vê também causa, da situação sanitária que atravessamos?

Em conclusão, voltando ao tom do referido artigo de VJS, resta perguntar se especificamente quanto às condições em que muitas pessoas têm que realizar o seu trabalho, mau grado as “contas certas”, se vai manter a “realidade errada”?

Inspector do trabalho aposentado.

[1] “Contas certas, realidade errada” – Vicente Jorge Silva – Público, 14/06/2020 – https://www.publico.pt/2020/06/14/opiniao/opiniao/contas-certas-realidade-errada-1920497

[2] “Coronavírus e trabalho: não é exigível o que pode ser mortal” – edição da Gazeta da Beira de 15/04/2020 – https://gazetadabeira.pt/joao-fraga-de-oliveira-109/

[3] Mário Centeno – O Trabalho, Uma Visão de Mercado – edição da Fundação FraNCISCO Manuel dos Santos, 2011

[4] https://www.dgert.gov.pt/normas-da-oit-e-covid-19-coronavirus-esclarecimentos-oit

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