João Fraga de Oliveira

Brasil: errar é desumano…

No Brasil, o Presidente da República (PR), Jair Bolsonaro, ameaça retirar o país da Organização Mundial de Saúde (OMS), acusando esta organização de má gestão da pandemia por “viés ideológico”[1].

O Brasil é já o terceiro país do mundo (depois dos Estados Unidos da América e do Reino Unido) com mais mortes associadas à infecção covid-19.

Desde o primeiro caso de infecção, em Fevereiro deste ano, na sexta feira, 5/6/2020, pelo quarto dia consecutivo, havia o dramático “record” diário de cerca de mil mortes. Então, o número de infectados era já de 682.000.Ou cerca disso. As mortes no país por essa causa, ascendiam já a 36.000. Ou cerca disso.

“Cerca disso”. Cerca disso, escreveu-se, porque, desde então, o actual PR do Brasil ordenou a não divulgação oficial (no portal do Ministério da Saúde) do número de mortes covid-19 acumuladas[2].

O Sr. Jair Bolsonaro, para além desta “tentativa autoritária, insensível, desumana e anti-ética de dar invisibilidade aos mortos pela Covid-19”[3], ameaça seguir Trump e retirar o país da Organização Mundial de Saúde (OMS), acusando esta organização de má gestão da pandemia por “viés ideológico”.
O Brasil é agora um país onde, cada vez mais, as pessoas agonizam e morrem sentadas ou deitadas à porta dos hospitais ou em casa, em terrível sofrimento por não terem hospitais que as acolham.
E onde, como estamos fartos de ver (demasiado, refira-se, com repugnância por uma “comunicação” comercial, dita “social, que chafurda nestas imagens macabras), são às centenas (agora, pelos vistos, já aos milhares) as vítimas humanas que são diariamente enterradas em valas comuns por já não haver cemitérios onde caibam.
O Brasil é dos poucos países onde o Presidente da República com poderes (e, logo, inerentes responsabilidades) executivos (o regime político do Brasil é de cariz presidencialista) nada fez para conter a propagação da epidemia.

Concretamente, nada fez para conferir organização e meios ao sistema de saúde nem para informar e organizar o país. “Não preparou os hospitais públicos, não contratou profissionais de saúde, não divulgou informação preventiva para a população”[4], denuncia o ex-ministro da Saúde, Mandetta, que contrariou Bolsonaro e dignamente se demitiu.
Mais, continuada e ostensivamente, desvalorizando as mortes ( “E daí?”[5]), o Sr. Jair Bolsonaro opôs-se a que algo fosse feito.
Mas o Brasil é, portanto, o país onde este humano desumano foi eleito democraticamente.

“Como se chegou a isto” no país de Tom Jobim, de Vinícius de Moraes, de Carlos Drummond de Andrade, de Jorge Amado, de Clarice Lispector, de Caetano Veloso, de Chico Buarque, de Luís Carlos Prestes, de D. Helder Câmara e de tantas outras pessoas de tanta relevância cultural, social, política e cívica, enfim, de tanta humanidade?

É certo que por via de maquinação mediática e manipulação digital (ou, se se quiser, por maquinação digital e manipulação mediática). De qualquer modo, de facto, ele foi, do ponto de vista formal, democraticamente eleito pelos nossos irmãos brasileiros, humaníssimos cidadãos como nós.

Todavia, justamente por isso, e não obstante Tom Jobim nos ter avisado de que “o Brasil não é para principiantes” e mesmo sabendo que o Brasil tem passado nos últimos anos por muito anuviamento social e político (corrupção, violência urbana, desonestidade da comunicação dita “social”, fanatismo religioso, etc.) e assim admitirmos nisso alguma humanidade, não nos larga a perplexidade e a interrogação: como (vos) foi possível tal erro?
Mas, voltando, à gravíssima situação de saúde pública que o Brasil atravessa, o que é certo é que muito do que social, económica e politicamente está a acontecer neste país não se pode dissociar da forma (e conteúdo) com que o Governo central (se bem que não tanto os estaduais) tem vindo a gerar a pandemia.

Gestão que, objectivamente, muito se deve, pegando nas palavras do Sr. Bolsonaro, ao seu “viés ideológico”. Sim, há lá algo mais ideológico do que as ideias de extrema-direita e neoliberais que o Sr. Jair Bolsonaro (e de quem o (des)aconselha) assume desde a campanha eleitoral em 2018 e com as quais estas práticas são coerentes?

Sim, como com o Sr. Trump, é com certeza muito este “viés ideológico” que pressupõe que “os seres humanos já não são relevantes” (como escreve Paul Mason)[6], que enviesa para o desumano as decisões e acções deste actual PR do Brasil.

Ainda quanto à ameaça de saída da OMS, esta organização pode até ter cometido alguns erros na gestão desta situação sanitária. E até, eventualmente, noutras situações precedentes do seu foro de responsabilidades. As quais, oportunamente, devem ser (re)analisadas, com correspondentes responsabilizações, se justificadas.
Contudo, o que é contraditório (também) nesta posição do Sr. Bolsonaro é que, concretamente quanto à situação dramaticamente desumana em matéria de (não) resposta de saúde pública à pandemia que está a acontecer no Brasil, tal decorre muito precisamente por causa de este decisor político de topo contrariar ostensivamente as orientações da OMS.
Enfim, seguindo o Sr. Trump que sempre tem vindo a mimetizar incluindo na falta de decoro político e mesmo na boçalidade da comunicação, o que se percebe é que, com esta ameaça, o Sr. Bolsonaro procura agora desviar as atenções das suas humanas responsabilidades, endossando-as a essa organização septuagenária que funciona no enquadramento da ONU e à qual pertencem praticamente todos os países (actualmente, são 194 os nela filiados) do mundo.
Provavelmente, virá alguém, talvez ainda ele próprio, Sr. Bolsonaro, relativizar essas responsabilidades. Talvez assim, blafesmando o velho Séneca: “E daí?” “Errar é humano[7]“.

Mais, admite-se até que invocará um ilustre seu conterrâneo, brasileiro de gema (com nascimento, vida e morte no Rio de Janeiro), por sinal meu companheiro de cabeceira: “Errar é humano, botar a culpa nos outros também.”

Porém, neste domínio, o da saúde, mormente o da vida das pessoas, não é admissível que o erro em que tem vindo a insistir possa ser relativizado como “humano”, até por ser um erro qualificado, um erro de um Presidente da República com poderes (e responsabilidades, reafirma-se) para decidir de medidas que poderiam evitar muitas dessas mortes. E mais ainda por, autoritariamente, “perseverar diabolicamente” nesses erros.
“E daí” que o grande Millôr Fernandes[8], esteja lá onde estiver, com certeza que passando do estado de espírito de humor que foi (é) génio em nos transmitir (no que escreveu) para o de terror pelo que se está a passar no seu país, especificamente quanto a (mais) esta posição do Sr. Bolsonaro, já terá decidido reformular aquele seu aforismo que escreveu na (extinta) revista Pif-Paf (por ele fundada em 1963) e, quanto a este PR do seu Brasil para o qual a morte de humanos aos milhares parece não ser relevante e de que escamoteia informação, terá reescrito, com toda a propriedade e justiça: “Errar é desumano, botar a culpa nos outros também.”

—————–
[1] “Bolsonaro ameaça retirar país da Organização Mundial da Saúde” – Diário de Notícias, 6/6/2020 –
https://www.dn.pt/mundo/bolsonaro-ameaca-retirar-pais-da-organizacao-mundial-da-saude–12284294.html
[2] “Governo Bolsonaro impõe apagão de dados sobre a covid-19 no Brasil em meio à disparada das mortes” – El Pays, 7/6/2020 –
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-06/governo-bolsonaro-impoe-apagao-de-dados-sobre-a-covid-19-no-brasil-em-meio-a-disparada-das-mortes.html
[3] O Globo, 6/6/2020 – https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/06/tentativa-de-questionar-mortes-por-covid-19-e-autoritaria-insensivel-desumana-e-anti-etica-dizem-secretarios-leia-integra.ghtml
[4] “Brasil. Como se chegou a isto?”- ensaio de SérgioTréfaut – Público, 24/05/2020 –https://www.publico.pt/2020/05/24/mundo/noticia/brasil-chegou-1917461
[5] Público, 29/04/2020 – https://www.publico.pt/2020/04/29/mundo/noticia/covid19-bolsonaro-lamenta-mortos-brasil-nao-faz-milagres-1914325
[6] Paul Mason – Um Futuro Livre e Radioso – Uma defesa apaixonada da Humanidade (2019, Edicões Objectiva, pag.72)
[7] “Errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico” (tradução literal do latim) é um aforismo atribuído a Séneca (Roma Antiga, 04 a.C. – 65 d.C.)
[8] Millôr Viola Fernandes (poeta, escritor, humorista, jornalista), Rio de Janeiro, 16/08/1923 -27/03/2012)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *