João Fraga de Oliveira

Autoridade para as Condições de Trabalho: que “trabalho”? (II)

Na primeira parte deste artigo sobre a acção da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), procurou-se relevar o quanto a desregulação social (incumprimento da legislação laboral, no sentido lato) nos locais de trabalho não depende só, nem até principalmente, da “ineficácia” do “trabalho” da ACT mas de outros factores (tecnológicos, gestionários, políticos) que, pouco percebidos ou até escamoteados, agravam essa desregulação e mais complexificam e dificultam a acção desta organização, mormente na sua função de controle público (e de suporte centenário e de âmbito internacional) Inspecção do Trabalho.

Visando divulgar informação e análise que permita à opinião pública reflectir esses (outros) factores, partiu-se do pressuposto de que é também no contexto destes (e da resposta que, transcendendo as competências da ACT, também lhe deve ser dada) que, sim, sem dúvida, se deve ponderar (e resolver, sustentada e consistentemente) o imprescindível reforço da capacidade de acção da ACT, sendo certo que esse reforço, quer do ponto de vista exógeno, quer do ponto de vista endógeno não se limita a colmatar a cada vez maior insuficiência de inspectores do trabalho que se tem vindo a agravar ao longo dos anos.

Um desse outros factores que, de forma mais geral e estrutural, nos últimos 30 anos induziu, ainda que de forma indirecta, desregulação social nas relações e condições de trabalho tem sido a desregulamentação de direitos dos trabalhadores.

É, de facto, o que, continuadamente, nas últimas dezenas de anos (nesta década, especialmente de 2011 a 2014[1]), se tem vindo a verificar por força da legislação laboral (Códigos do Trabalho de 2004 e 2009 e respectivas alterações) entretanto publicada.

Concretizando, isso traduziu-se na diminuição ou até eliminação de direitos em matéria de facilitação objectiva de despedimentos, “flexibilização” da organização e duração dos tempos de trabalho, crescente individualização e precarização das relações de trabalho, para além da manutenção de baixos salários, fragilizou os trabalhadores nas relações de trabalho.
Uma das consequências dessa desregulamentação de direitos e, assim, cada vez mais serem a parte ainda mais fraca nas relações laborais, foi, muito a de, em geral, os trabalhadores se passarem a retrair, inibir de, individualmente ou organizados (e, se não só por elas, também pelas mesmas razões tem diminuído a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho em comissões de trabalhadores ou representação sindical efectiva[2]), reivindicarem e exercitarem os seus direitos ou, até, de denunciarem a violação destes à ACT e ou aos tribunais.
Sendo certo que é a exercitação de direitos e obrigações em causa pelos seus próprios detentores que, em qualquer domínio, a via que confere maior garantia de efectivação geral, estrutural e consistente de qualquer quadro normativo, no domínio das relações e condições de trabalho é de concluir que, pelas razões que precedem, um dos factores da maior desregulação social dos direitos dos trabalhadores tem sido, também, a crescente desregulamentação dos seus direitos do trabalho.

Ainda que não só, em Portugal, de há algumas dezenas de anos a esta parte, sobre o Trabalho e o Emprego, como já se escreveu há algum tempo, tem pairado um perverso “signo do D”[3]: do desemprego à desregulamentação de direitos (para “combate” aquele) e desta à desregulação social, logo, à degradação das condições de trabalho. Por via desta, à diminuição da garantia de segurança e saúde e de qualificação profissional no trabalho (nunca o exercício de qualquer função é de todo qualificante se nele não houver condições de trabalho) e, logo, à diminuição de condições de (re)empregabilidade. Enfim, desemprego, desregulamentação de direitos, desprotecção legal dos trabalhadores nas relações de trabalho, desregulação social, degradação das condições de trabalho e consequentes deterioração da saúde e da qualificação profissional, acabam por, ainda que diferidamente, conduzir (de novo) ao desemprego ou, pelo “menos”, à diminuição da qualidade do emprego. Se não, mesmo, à diminuição da qualidade do desemprego[4].

Da desregulamentação de direitos dos trabalhadores e, associadamente, da desregulação social implicada ou não por isso, não é de esperar (se não de imediato, pelo menos a médio prazo) outra coisa do que os riscos (pontuais ou, mesmo, estruturais) se não de (mais) desemprego, pelo menos de redução da qualidade do emprego. Para já não referir outros inerentes riscos, como é o de aumento das desigualdades sociais e, de ordem mais estritamente económica, o risco de crescimento da deslealdade na concorrência empresarial.

Diferindo nisso de qualquer organização privada, mercantil, que (naturalmente) visa cuidar do lucro, uma organização com o estatuto de serviço público tem por fim cuidar  dos cidadãos, das pessoas.

De modo que as condições das pessoas no domínio que é missão desse serviço público repercutem-se sempre na maior ou menor dificuldade com que esse serviço público exerce a sua acção, ou seja, na eficácia, eficiência ou prontidão dessa acção.

É isso bem evidente (e agora ainda mais com a necessidade dos cuidados de saúde a dispensar com a Covid-19) no domínio da Saúde, em que as condições de maior fragilidade de saúde dos utentes, de estes por si se defenderem física e psicologicamente perante a agressão de factores doentios, aumentam as dificuldades de resposta do Serviço Nacional de Saúde (e, concretamente, dos trabalhadores da saúde).

Como serviço público, a ACT não é (como não deve ser) alheia a este condicionalismo. E daí, pelo que precede, no que concerne ao aumento da desregulação (incumprimento da lei) nos locais e situações de trabalho, não se poderem desligar as explicações sobre a eventual menor eficácia, prontidão e eficiência da ACT e especificamente dos inspectores do trabalho (cuja ligação ao trabalho é dupla, trabalham cuidando do trabalho dos outros) em fazer prevenir e corrigir essa desregulação do condicionalismo de fragilidade dos trabalhadores em geral nas relações de trabalho e, porque estas duas vertentes do trabalho são indissociáveis,  associadamente, de degradação das suas condições de trabalho no sentido lato.

Mas, sim, tem que se reconhecer que a ACT tem que identificar, reflectir e reconhecer essa realidade como contingência decorrente de alterações (sejam estas de que ordem forem, políticas, económicas, sociais, tecnológicas, administrativas…) da natureza e condicionalismo (mais ou menos conjuntural ou estrutural) do seu objecto e âmbito de intervenção. E, proporcionalmente, visando adaptar-se-lhe, reforçar a sua capacidade (estratégica, de gestão, organizacional e de meios) de acção, a fim de, tanto quanto possível, manter, se não aumentar, a sua eficácia (qualidade, prontidão, abrangência) e eficiência no cumprimento da missão.

Nesta perspectiva, factores concretos há ainda que, mais relacionados internamente com a ACT em si como organização e como órgão da administração pública e que nesta se pretende inserida e em relação com outros serviços públicos[5] (como muito mais se deveria verificar, por exemplo, no domínio da Saúde[6]), se impõe reflectir e agir.

Para além da supressão da insuficiência de meios em geral e em especial dos necessários ao apoio logístico, técnico e informático dos inspectores do trabalho para e na sua acção nos locais de trabalho, é necessária, para além de previsão legal que garanta a existência de dados fiáveis e perenes de suporte do controle público eficaz e eficiente (uma matéria onde tal fragilidade mais se nota, com notório crescimento da desregulação, é a da organização e duração dos tempos de trabalho[7]), a institucionalização do acesso a dados (em bases de dados e sistemas de informação existentes na administração pública, nomeadamente, na Segurança Social, na administração do Emprego e na administração Fiscal), bem como – muito importante – uma maior e mais efectiva cooperação e co-responsabilização dos e com os tribunais do trabalho, bem como com os sindicatos e associações patronais.

Não pode também ser desaproveitada, se bem promovida e participada, a capacidade das autarquias e outras entidades, bem como, muito, da Comunicação Social em difundir informação objectiva, sustentada e assimilável nas comunidades e na sociedade em geral sobre direitos e obrigações (o conhecimento de direitos e obrigações é a primeira condição para o seu exercício e, logo, da efectivação do respectivo quadro normativo) de trabalhadores e empregadores no domínio do Trabalho e Emprego.

O crescimento da desregulação (incumprimento da lei) nos locais e situações de trabalho põe em causa valores humanos (o trabalho não é um mero conceito e muito menos abstracto, consubstancia-se nas pessoas que trabalham) como são a vida literalmente, a saúde e a dignidade, bem como valores sociais e económicos que o que se (não) passa nos locais de trabalho em vez de, como devia, salvaguardar e reforçar, pelo contrário, lesa (“o trabalho tem um braço longo”[8]). Tendo em conta que a missão da ACT decorre e é implicada por esses valores, mais se impõe um reforço da sua eficácia e eficiência em prevenir e corrigir com eficácia e prontidão essa desregulação social.

Algo, agora, nas actuais circunstâncias económicas e sociais, a ter (ainda) mais em consideração, face ao risco de, com a “retoma da normalidade” da economia, o natural (e louvável) afã empresarial (e, em princípio, até dos próprios trabalhadores, por boas ou más razões[9]) de recuperar da crise provocada pelas consequências económicas da pandemia, não só se manterem como se agravarem “anormalidades” no cumprimento da lei (o que especialmente quanto a matéria de segurança e saúde do trabalho é de ter ainda mais em conta) já pré-existentes à pandemia.

As dificuldades da ACT (e concretamente, para além das de outros técnicos desta entidade com funções associadas, dos inspectores do trabalho nos locais de trabalho) na prossecução da sua missão e acção, para além de serem já estruturais (e não “apenas” conjunturais, muito menos “só” relacionadas com as questões laborais directa ou indirectamente emergentes da pandemia Covid-19), não são de ordem meramente quantitativa, pelo prisma (só) da qual, ciclicamente e de forma pendular, em regra, têm sido redutoramente abordadas no espaço público.

São também, muito, para além de naturalmente da ordem da estratégia, organização e planeamento interno da acção da própria ACT, da ordem da administração pública em geral (naturalmente que da administração do trabalho em particular, mas não só) e, mesmo, como se fundamentou, da ordem das opções legislativas no domínio do trabalho (para as quais, aliás, no que respeita aos “abusos” que por acção ou omissão, directa ou indirectamente, essas opções podem suscitar ou permitir, é de entender que a ACT, como Inspecção do Trabalho, “tem por objectivo chamar a atenção da autoridade competente”[10]). E portanto, também, de ordem política.

É avisado que tal se reflicta (e aja) quanto ao “trabalho” da ACT e o que este tem de importância, de determinância no Trabalho em geral e, por este, pela sua centralidade nas condições de vida das pessoas, na actividade das empresas e outras organizações empregadoras e na sociedade em geral, nas condições sociais e económicas do país.

É pois de acentuar a importância dessa reflexão quanto ao reforço da capacidade de acção da ACT tendo em conta a essência da sua missão, aos níveis organizacional, profissional, social e político.

É que, afinal, ainda por cima, numa sociedade como a actual onde crescem as desigualdades e as injustiças, está em causa algo para o qual, já há muito anos, alguém nos deixou uma pertinente advertência: “Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, …a lei liberta e a liberdade oprime”[11].

*Inspector do trabalho aposentado

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[1] Referimo-nos às alterações ao Código do Trabalho publicadas nesse período (com destaque em 2012, para a Lei 23/2012, de 25 de Junho), cuja vigência e efeitos, no essencial, (ainda) se mantêm.

[2] Aliás, em coerência com a quebra de sindicalização que, em geral, se tem verificado, como vários respectivos estudos o demonstram.

[3] Trabalho e Emprego: sob o signo do D – Público, 1/8/2013 – https://www.publico.pt/2013/08/01/jornal/trabalho-e-emprego-sob-o-signo-do-d-26901636

[4] A falta de qualidade do emprego, o emprego desprotegido (como é o caso daquele em que o vínculo laboral é precário), em regra, conduz à falta de qualidade do desemprego, ao desemprego desprotegido. Isto porque, em situação de crise económica (como, por exemplo, é agora a situação causada pela pandemia), os trabalhadores precários não só são os primeiros a serem despedidos (ainda que, mais rigorosamente, seja uma denúncia legal do contrato de trabalho a termo ou temporário) como, mais grave, grande parte deles, não tendo pela sua condição de precariedade conseguido preencher o “período de garantia” para lhes ser conferido o direito ao respectivo subsídio, estão desprotegidos no desemprego.

[5] O trabalho é central na sociedade e na vida de cada um e, portanto, não se pode dissociar o que se (não) passa no domínio do Trabalho e do Emprego (e, concretamente, quanto a desregulação das condições de trabalho), dos efeitos que isso tem e recolhe em e de outros domínios, sendo o da Saúde o mais evidente.

[6] “O trabalho, «ângulo morto» da saúde Pública – Público, 02/08/2010 – https://www.publico.pt/2010/08/02/jornal/o-trabalho-angulo-morto-da-saude-publica-19940755

[7] “Futuro do trabalho: trabalhar mais para ganhar menos e ganhar menos para trabalhar mais?” – Público, 15/6/2019 – https://www.publico.pt/2019/06/15/economia/opiniao/futuro-trabalho-qualidade-emprego-trabalhar-ganhar-menos-ganhar-menos-trabalhar-1876519

[8] “Serviço Nacional de Saúde: o longo braço do trabalho” – Público, 13/01/2018 – https://www.publico.pt/2018/01/13/sociedade/opiniao/servico-nacional-de-saude-o-longo-braco-do-trabalho-1799157

[9] Até porque, “cá de fora” e a entrar novamente pelos locais de trabalho “dentro” fragilizando (também) os trabalhadores (ainda ou já) (re)empregados, está aí (novamente) o desemprego.

[10] Alínea c) do Nº1 do artigo 3º da Convenção da OIT Nº 81, de 11/07/1947, ratificada por Portugal através do Decreto-Lei Nº 44148, de 6 de Janeiro de 1962

[11] Henri Dominique Lacordaire (França, 1802-1861).

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