João Fraga de Oliveira

A poderose: análise clínica

Está aí, na ordem noticiosa do dia, a discussão sobre eventual excesso no uso da força física por parte da Polícia (no caso, um agente da PSP) sobre uma cidadã da Amadora, a partir de uma mera altercação, num autocarro, entre o motorista deste e aquela cidadã[1].

Há pouco mais de um ano, em Setembro de 2018, veio a público a acusação de prática de discriminação por parte de um vereador (com o apoio do presidente) da Câmara Municipal do Porto (CMP), por ter substituído uma técnica como representante desta autarquia na CPCJ, em retaliação pelo facto de o marido dessa técnica ter escrito, no jornal Público, um artigo a criticar a CMP[2].

No passado mês de Dezembro, soube-se que, em França (Paris), o director e dois outros dirigentes seus subordinados directos de uma das maiores empresas francesas (ex- France Télécom, agora Orange, SA) foram condenados a prisão efectiva por prepotência (“assédio moral institucional”, com a criação de um ambiente de tensão e de medo entre os trabalhadores) na gestão da empresa, o que foi judicialmente conexado com o suicídio, ou tentativa de suicídio, há mais ou menos dez anos, de 35 ex-trabalhadores daquela empresa[3].

Em três diferentes contextos, domínios, tempos, espaços e modos, estes são apenas três casos conhecidos (muitos houve, há e haverá que nunca se chegarão a conhecer publicamente) do que por aí “vemos, ouvimos e lemos” quanto a situações sintomáticas de manifesto desvio ou exorbitação no exercício de poder(es), de vários tipos de poder.  Exercício de poder(es) que, assim, deixando de ser adequado e ou proporcional, deixa de ser legítimo por degenerar em abuso de poder(es).

“Não podemos ignorar” essas situações, porque podem ser sintomáticas de uma patologia pessoal ou grupal (ou mesmo, nalguns casos, organizacional) que não é assim tão pouco epidémica: a poderose.

Talvez convenha, por questões de saúde (especialmente de saúde da Democracia), desenvolver um pouco a reflexão “clínica” sobre esta patologia.

A poderose é uma doença cujos sintomas são atitudes e comportamentos poderóticos.

Há muitas causas e contextos de desencadeamento da poderose. Um dos contextos para a qual a actualidade nos está aí na ordem do dia a chamar a atenção é a disseminação da poderose ao nível profissional.

Neste contexto, a poderose é germinada na confusão (e coerente prática) entre autoridade e autoritarismo. O exercício de poderes de autoridade, como imprescindível e digno instrumento de interesse e serviço público, se passar de algum modo ao abuso desses poderes, degenera numa variante da poderose: o autoritarismo.

É a confusão entre, por um lado, dever estar (exercer) autoridade em função e em proporção da natureza, gravidade e dimensão das circunstâncias de interesse público em causa, (só) como estritamente instrumental da sua profissão (e normas que a regem) e, por outro lado, como ser-se estruturalmente, “congenitamente”, seja em que circunstâncias para que efeito e em que grau e modo forem, uma “autoridade”.

É entender ser-se uma autoridade pública como fim meramente pessoal ou grupal e não “apenas” estar-se (exercer-se) uma autoridade pública como meio do interesse público.

É certo que neste domínio (profissional) importa saber-se se este resvalar autoritário tem uma explicação só de ordem individual (que, de qualquer modo, em maior ou menor grau, sempre tem) ou, também (talvez até sobretudo), de ordem institucional ou organizacional. Por exemplo, no quanto, de algum modo, pode ser influenciado (ou até determinado) por, na instituição / organização em causa, persistirem erros, omissões ou insuficiências nos domínios do recrutamento, selecção, integração, formação profissional ou condições de trabalho).

A ser assim, os indícios de tal tendência autoritária, ainda que se manifestem individualmente, são ainda mais preocupantes, dado o risco de poderem vir a ser mais generalizados no enquadramento da instituição / organização em causa, seja ela qual for.

De qualquer modo, nestes casos, uma resposta “clínica” de urgência se impõe a este tipo de poderose: o exercício desses poderes de autoridade deve ser … desautorizado.

Uma outra causa de possível geração da poderose, ainda no campo profissional mas também muito no ambiente político, é a da confusão entre serviço e poder. Nesta variante, o poderótico deixa de compreender a investidura num poder como devendo ser de (pelo) serviço (social ou público) e passa ao exercício de tal poder como (pelo) poder, ou seja, (ab)usando-o como instrumento de mais (mero) poder pessoal ou grupal.
Um dos factores de agravamento da poderose é o de esta, eventualmente, ser alimentada por subserviência(s). A subserviência é um comportamento que é sintoma de uma outra patologia da família (patológica, claro) da poderose: a subserviose.

Aliás, não é raro haver casos com mutações rápidas entre estas duas patologias. O poderótico indicia sintomas de poderose (de prepotência) quando se encontra num plano mais elevado e mostra comportamentos subservióticos (de subserviência) quando se encontra num plano mais rasteiro.

Outras mutações da poderose mais estruturais são, por exemplo, da autoridade não “apenas” para o autoritarismo (como já se referiu) mas, em escala, para o despotismo. Nesta variante, o despotismo “iluminado”, embora não pareça, é especialmente perigoso, sobretudo o de “iluminação” económica (mormente, nos tempos actuais, financeira) ou tecnocrática, muito embora, por vezes, até o de iluminação académica (degenerada) também se apresente preocupante.

Em certos contextos e circunstâncias, a detecção e tratamento da poderose tornam-se mais difíceis, porque a poderose se apresenta disfarçada sob formas da mesma família poderótica mas supostamente “benignas” e até aparentemente “saudáveis”, o contrário da poderose. É o caso, por exemplo, do porreirismo e do paternalismo. Só com muita atenção estas situações são detectáveis e identificáveis como (também) poderose maligna, pois os sintomas dos poderóticos alternam entre comportamentos poderóticos para com certos interlocutores ou em certas circunstâncias e comportamentos de paternalismo e ou porreirismo para com outros interlocutores ou com os mesmos mas noutras circunstâncias.

Do ponto de vista de consequências exógenas da poderose (repercussões no ambiente onde se manifesta e propaga), esta pode classificar-se:

– ao nível micro, poderose pessoal (por exemplo, a violência doméstica) e poderose profissional (por exemplo, o assédio moral associado ao trabalho sobre determinado trabalhador subordinado ou, até, colega);

– ao nível meso, poderose organizacional, poderose empresarial, poderose departamental, poderose ministerial;

– ao nível macro, poderose social, poderose económica, esta mais conhecida por monopólio;.

-ao nível (mais) global, poderose internacional e mesmo mundial, esta também conhecida por imperialismo.

Pelo prisma da natureza processual e contextual da poderose, podemos falar, por exemplo (não exaustivos), em poderose laboral, poderose académica, poderose financeira, poderose “política” (com aspas e em minúsculas, sendo que estas aspas, depreciativas da palavra, decorrem de a poderose retirar o mérito, dignidade e reconhecimento social e cívico que essa palavra – Política – genuinamente, em si, nos deve merecer).

Deste último tipo (poderose “política”), refiram-se em duas grandes espécies: poderose “governamental” e poderose “autárquica” (também em minúsculas e com aspas, pelas razões já aduzidas), tipos de poderose que, por vezes, ainda que conjunturalmente, (ainda) têm por cá alguma significativa propagação, apesar de uma drástica defenestração desencadeada na Primavera de há quase 46 anos (que se completam no próximo dia 25 de Abril).

Aliás, esta última, a “autárquica”, merece algum destaque, porque, mais em geral, há registo de uma disseminação em certas áreas do país e em certas épocas ou mesmo anos, não se sabendo ainda bem se é pertinente a hipótese de a causa estar na água, na precipitação pluvial ou na velocidade do vento nesses períodos ou zonas geográficas.

Ainda quanto a esta variante, a poderose “política”, interessa referir que pode ou não ser congénita ao(s) poderótico(s). Não o sendo, em regra, pode começar a gerar-se (e, depois, a degenerar-se) com nomeações. Mas tem havido casos, embora com períodos de latência mais prolongados, de a origem, depois degenerada, ter estado em eleições.

O tratamento básico da poderose é elementar: prolongado descanso fora do … poder.

Contudo, a História garante-nos que, em certos casos muito graves e críticos de poderose, houve que recorrer a tratamentos mais drásticos e a técnicas mais invasivas, como, por exemplo, espadeirada, fuzilamentos e, mesmo, pelo menos em dois casos célebres, históricos, à guilhotina.

Enfim, conclusão a destacar preventivamente, de profilaxia, é a de que o poder tem que ter um permanente acompanhamento “clínico” de ordem social e política.
Com análises (e auto-análises) pessoais, familiares, grupais, profissionais, organizacionais, institucionais, sociais, políticas. Análises regulares, informadas, conscientes, atentas, participadas.

Quando não, como decorre do que precede, assente em muito (demasiado) material empírico por aí conhecido, e até tendo em conta aquilo para o qual nos avisou há cerca de 230 (mais precisamente, 233) anos um tal John Dalberg-Acton (“o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”), há o risco de o poder (qualquer poder, mesmo um poderzinho), degenerar em poderose.


 

[1] “Quando a polícia alimenta o extremismo” – Público, 23/1/2020 – https://www.publico.pt/2020/01/22/sociedade/editorial/policia-alimenta-extremismo-1901200

[2] “Substituição polémica de representante da Câmara do Porto na CPCJ” – Público, 18/9/2018 – https://www.publico.pt/2018/09/18/local/noticia/substituicao-polemica-de-representante-da-camara-do-porto-na-cpcj-1844443

[3] Antigo presidente e directores da France Télécom condenados a prisão pelo suicídio de ex-funcionários – Expresso, 20/12/2019 – https://expresso.pt/internacional/2019-12-20-Antigo-presidente-e-diretores-da-France-Telecom-condenados-a-prisao-pelo-suicidio-de-ex-funcionarios

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