Francisco Queirós

Uma outra Peste…

Uma outra Peste…

É assim que se tratam fobias, que se banaliza o Mal. Integrando-o, dando-lhe espaço, justificando-o. Dessensibilizando-nos. Um dia o joelho deixa de ser polícia, o corpo imobilizado deixa de ser Floyd!

Lembro-me de ser miúdo e sempre viajava com os meus pais sempre que passávamos por carros funerários benzíamo-nos, rezávamos pela Alma de quem ia a sepultar e o meu pai desligava o rádio que mantinha em silêncio até os nos afastarmos da sua vista. Era um ritual suave, sem ruído, repetido ao longo dos anos que, para mim, era feito de respeito pela dor da perda e pelo sofrimento de alguém desconhecido, mas como nós. Ainda hoje o faço mesmo quando viajo sozinho.

A morte de George Floyd foi filmada. Vimo-lo a pedir ajuda e a morrer. Ali, à frente de todos, a sufocar. Um horror. Aquele momento atempadamente filmado permitiu que testemunhássemos, à escala global, a violência, a brutalidade e a total ausência de empatia pelo sofrimento de alguém. O Negro. O Estranho. O Desconhecido que não é como nós. O Outro. Dois metros de homem, músculos e perigo, que é preciso algemar e imobilizar sem piedade. Com o peso do corpo sobre um joelho e o joelho sobre o pescoço. Um joelho, treinado, mata. Foi o que vimos. E continuamos a ver. Repetidamente. À hora do almoço, ao jantar, nos noticiários intermédios, em casa, na rua, entre um uma coisa e outra que ocupa as nossas vidas, na televisão em canal aberto. Não se consegue desligar o som das gargalhadas, do entusiasmo de quem sai de casa ao fim de dois meses, do barulho dos pratos, enquanto ele diz, I can’t breathe, e agoniza outra vez, e outra, várias vezes ao dia. Sem que nos apercebamos, o horror inicial já não vem com arrepios. Sem que nos apercebamos, a retina habitua-se à imagem. É assim que se tratam fobias, é assim que se banaliza o mal. Integrando-o, dando-lhe espaço, justificando-o. Dessensibilizando-nos. Um dia, o joelho deixa de ser polícia, o corpo imobilizado deixa de ser Floyd. São fragmentos despersonalizados. E nós a assistir. Deixa de se ver a morte, deixa de se ver o joelho, deixa de se ver a dor, habituamo-nos. Aconteceu durante o Terceiro Reich. Acontece no Mediterrâneo – já nem vemos o menino morto na praia, esse, perante o qual o mundo inteiro se levantou em incrédulo horror.

Somos capazes das maiores atrocidades e não nos falta nem criatividade nem empenho. Qualquer museu da tortura o confirma.

Ouvimos um jovem guineense bradar: “O que matou George Floyd naquele dia não foi o facto de ele ter tentado passar uma nota falsa, o que o matou foi a cor dele. No dia 25 de maio, em que comemoramos o dia da África, nesse dia África sofreu. 2020 tem sido um ano muito pesado não só pela pandemia, mas por situações claras de racismo, temos estado a sofrer e só queremos os nossos direitos e nada mais. O que aconteceu George Floyd, nos EUA, é uma coisa que pode acontecer comigo a todo o momento, porque há

O racismo “é um facto”, em Portugal e no mundo, e quem não quiser assumir isso, não está a ver muito bem a sociedade onde está inserido. O racismo é demasiado sério para estarmos com discussões estéreis no Facebook. Não é assim que se pode resolver o problema! Pelo contrário: agrava-se!

A solução para o problema não passa por insultos, acusações, atos extremos, mas sim pelo “diálogo”. O tema do racismo já está demasiadamente associado à violência, está na hora de haver paz a tratar o assunto.

Não acredito que o racismo será, um dia, eliminado. Podemos é criar condições para que o racismo seja algo muito mitigado e muito mais controlado. A melhor forma de fazermos isso é capacitarmos todas as pessoas para que se sintam cidadãos de pleno direito e se sintam integrados na sociedade. Ora acontece que racismo anda de mãos dadas com a desigualdade. Urge criar condições de paz social, de igualdade, de acesso à educação, à cultura, ao desporto idêntico para todos… O problema é que esse acesso — e sabendo nós que os imigrantes e muitos descendentes das ex-colónias estão nesses bairros problemáticos e carenciados – não é dado a essas pessoas. Se esses jovens, essas crianças não tiverem acesso a isso, nunca estarão em condições de igualdade para depois poderem competir com os demais.

Admitindo que acreditemos que bastariam as mesmas condições para chegarem lá como os outros, sabe-se que também há o “sistema” e que é esse que faz do racismo algo estrutural. Especula-se sobre a imposição de quotas baseadas na raça ou na etnia. Disparate! Continuo a achar que a questão das quotas, por si, não resolve: sem igualdade de acesso e oportunidades, não vai haver ninguém qualificado para preencher esses lugares!

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