Francisco de Almeida Dias

Rubrica Portugal é mátria

Olhos imensos, olhos trágicos, olhos de água de mar em dia de chuva miudinha – toda a figura da grande atriz que foi Maria Lalande se poderia resumir a um olhar expressivo, magnético, escondendo e revelando verdades nesse subtilíssimo jogo de véus que é, enfim, o teatro. A sua pequena estatura, a sua magreza, toda a fragilidade que o seu corpo demonstrava, debatia-se – e era vencida, diz quem ainda a viu sobre os palcos – com uma força imponderável, crescendo em espiral e abanando-lhe os membros, o tronco, habitando-lhe enfim a garganta e a voz e iluminando-se-lhe inteira nesses imensos olhos trágicos, cinzentos de dia de chuva, trespassados pelo fulgor de uma luz inatural.

O que desse corpo habitado por não-se-sabe que energia ficou para o futuro é bem pouco: para além de testemunhos pessoais e de alguns retratos (o que ilustra este artigo, por ela autografado, é do grande fotografo Silva Nogueira), restam duas ou três participações menores em filmes e uma atuação como protagonista na estereotipada versão cinematográfica do romance de Manuel Maria Rodrigues, A Rosa do Adro, por Chianca de Garcia, em 1938 – «com aqueles diálogos de melodrama serôdio que nenhum talento de atriz pode viabilizar. O teatro foi, de facto, o espaço natural onde Maria Lalande brilhou. No cinema nem um pálido reflexo se distingue», escreve Jorge Leitão Ramos no Dicionário do Cinema Português 1895-1961.

Passou há dias num canal da televisão o belíssimo documentário João Villaret – O Domador da Voz, por ocasião dos sessenta anos da sua morte, realizado por Ricardo Espírito Santo. Os dois atores tinham poucos meses de diferença (Villaret nascera em Lisboa, a 10 de maio de 1913 e Lalande em Castelo Branco, a 7 de novembro do mesmo ano), não haviam sido contemporâneos no Conservatório, mas haveriam de cimentar uma grande amizade, em paralelo com a camaradagem profissional que os viu reunidos desde a estreia de Villaret, em 1931, no Teatro Nacional (então chamado “de Almeida Garrett”) na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, da qual Lalande fazia parte desde 1928. Sobre a fase inicial dessa amizade e contracena nos palcos, haveria de escrever o poeta António Botto:

«Conheço-os e acompanho-os desde aquele primeiro dia em que um e outro pisaram o tablado de um Teatro. Ficaram no meu olhar. Ficaram dentro de mim. Marquei-os como dois casos de assombrosa e genial intuição para a cena. Não me enganei. Maria Lalande e João Villaret são hoje o caso mais sério do Teatro Português. Dois milagres de sensibilidade, duas forças de emoção, duas almas de latente e rara vibratilidade criadora.» (in João Villaret – Duas mãos que abertas deram tudo).

A 24 de maio de 1944 estreia aquele que será o maior êxito de Maria Lalande com a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro no Nacional, A Ascensão de Joaninha, drama de caráter simbolista e neorromântico, do Nobel de Literatura Gerhart Hauptmann. O autor teria chegado a convidar a atriz para o acompanhar à Alemanha, mas ela recusou. Aliás, será nesse mesmo ano que, desafiada por António Lopes Ribeiro e o seu irmão Francisco Ribeiro (o famoso Ribeirinho, com quem se envolverá sentimentalmente e de quem terá uma filha, Maria Manuela), virá a integrar a grupo que então se está a formar no Teatro da Trindade: Os Comediantes de Lisboa.

A Companhia, que irá durar até 1950 e conta com alguns dos maiores nomes do espetáculo –António Silva, Nascimento Fernandes e, ainda, João Villaret – dará a Maria Lalande aqueles que serão talvez os momentos mais felizes da sua carreira teatral, com peças que ficarão para a história, como Miss Ba, de Rudolf Besier (1944), Pigmaleão de George Bernard Shaw (1945), Báton de Alfredo Cortez (1946), entre outras de autores consagrados como Somerset Maughan, Henrik Ibsen, Alexandre Dumas filho. Durante toda a década seguinte, saltando de Companhia em Companhia, vemo-la empenhada em produções de maior ou menor importância, distribuindo-se entre os vários teatros da capital – Avenida, Variedades, Maria Vitória, Trindade – por vezes interpretando grandes peças do repertório internacional, como quando com o Teatro Arte de Lisboa levará à cena Graham Greene, Federico García Lorca ou Anton Tchekhov.

Entre o fim dos anos 1959 e 1966 a atriz vive retirada da ribalta, ressurgindo apenas, em 1965, como a protagonista do Auto da Alma, com encenação, cenografia e figurinos de Almada Negreiros, para as comemorações centenárias de Gil Vicente, no Teatro Nacional de São Carlos. No recém-fundado Teatro Villaret (assim batizado em memória do seu grande amigo que falecera, entretanto, em 1961), Maria Lalande integra a Companhia Portuguesa de Comediantes e o seu regresso faz notícia: “LALANDE REAPARECE AO LADO DE EUNICE” é o título da revista Eva desse mês, que retrata ambas, elegantemente vestidas por Candidinha, na capa.

Revelar-se-ia, infelizmente, demasiado curto tal regresso: As Raposas de Lillian Hellman (pelo qual lhe foi atribuído o Prémio Lucília Simões de melhor intérprete feminino de teatro declamado), A Jangada de Romeu Correia, Verão e Fumo de Tennessee Williams, todas em 1966, e O Ídolo, já no ano seguinte. António Marinheiro (O Édipo de Alfama) de Bernardo Santareno, em estreia absoluta no Teatro São Luís, será a sua última peça: a personagem de Bernarda, testemunha dessa tragédia clássica revisitada e transposta para o Portugal do tempo, será truncada por um cancro do estômago, que vitima a atriz aos 54 anos. Passará os breves meses que antecedem a sua morte no Hospital da Cruz Vermelha, sempre acompanhada pela irmã Maria de Lourdes, que a recordava, comovidamente, nessa tarde de 25 de agosto de 1992, na Praia da Rocha: «Quando estava a fazer o António Marinheiro sentiu-se mal… Representou até à véspera de ser operada e seis meses depois morreu (…) durante esse tempo nunca deu um ai, parecia que não sofria. Morreu linda!: uma máscara de tragédia».

Conservo essa conversa que filmei e em que pedi a Lourdes Lalande que me falasse de si e das irmãs –  “uma alma em três corpos”, como ela então me disse: a Laidinha (a atriz chamava-se Maria Adelaide) entretinha a família com récitas improvisadas depois do jantar, enquanto a mais nova, Maria de La Salette, se haveria de distinguir como pintora e casar o jornalista e homem de teatro que foi Eduardo Scarlatti. Quanto a Lourdes, cursou Filologia Românica e ensinou por alguns anos, até conhecer e se casar com o dramaturgo Armando Vieira Pinto, regressando mais tarde ao trabalho, dedicando-se à compilação e publicação de importante documentação no Centro de Estudos Históricos Ultramarinos.

Olhando o busto da atriz, que escultor Joaquim Correia cinzelou em bronze em 1940, e que foi adquirido em 1964 pela Fundação Calouste Gulbenkian (Inv. 64E865) reconheço a mole do cabelo, o pescoço esguio, a dureza geométrica dos traços desse rosto magro, afundado no mistério do teatro e da vida. Mas falta-me inevitavelmente algo de fundamental, nessa escultura cega: faltam-me os olhos trágicos, imensamente líquidos, de Maria Lalande.

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