Francisco de Almeida Dias

Rubrica Portugal é mátria

Catarina Silva © Pedro Sequeira

A intensa imagem com que a joalheira Catarina Silva dá as boas vindas ao novo ano – posição arquetípica de orante, braços e mãos abertos a acolher o sol, que sente na face, feixe de luz que entra pelo coração adentro – conta uma história pessoal fundida na História comum do momento que todos estamos a viver.

Em março passado, quando o mundo nos confrontou com uma nova e temível pandemia e fomos convidados a ficar fechados em casa e a evitar os contactos, cada um encaixou ou reagiu segundo a própria natureza. Dos artistas, dessa particular inspiração que os torna artistas, esperamos um filtro ou uma lente através da qual a realidade possa ser interpretada, quando não qualificada. E foi isso mesmo que fez a PIN (Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea), convidando alguns joalheiros a participar na exposição on line “Joias e objetos de proteção para o século XXI”, patente no site do MUDE – Museu do Design e da Moda, de maio a outubro do ano passado.

A ideia era que cada um dos participantes, usando exclusivamente materiais que estivessem disponíveis em suas casas, criasse o seu próprio objeto apotropaico – e daí o amuleto criado por Catarina Silva, feito com espelho e missangas, este último um material a que tem dedicado bastante do seu trabalho nos últimos anos.

Big bunny is watching you. 2019. Colar. Missangas de vidro e papel de chocolate plastificado ©Pedro Sequeira

Como nos explica, a escolha da missanga é, em parte, conceptual e liga-se ao lado mântrico do trabalho aturado que a sua confeção exige – contínua repetição dos gestos que convida ao relaxamento, à contemplação e à meditação. Mas há também uma estimulante religação a tradições antiquíssimas, que colocam o precioso trabalho feito com essas contas de vidro (cuja provável origem etimológica vem do kimbundu, a língua banta de Angola) entre as primeiras manifestações artísticas e culturais da humanidade, há mais de 82 000 anos, antes mesmo das pinturas rupestres. Ao longo dos milénios, de talismã a missanga foi passando a objeto de troca, vulgarizando de tal maneira o seu uso que a Contemporaneidade chegou a olhá-lo com um certo preconceito, como coisa banal e sem valor. E é justamente esse ajuste de contas que Catarina Silva quer fazer com o seu trabalho, lento e precioso, cosendo as contas uma a uma, recuperando a magia de um objeto feito de missangas e pensamentos.

A integração da superfície refletora, no caso específico deste objeto, vem reforçar a ideia do Bem, o valor identitário e o percurso cultural em que a sua arte se inscreve: é o espelho de Medusa, que, refletindo o Mal, tem o poder de o espantar. A fotografia de Pedro Sequeira cristaliza esse momento e transmite os bons votos para o novo ano.

A primeira exposição individual ©Pedro Sequeira

Catarina sabia ser uma artista desde criança, quando agarrava na tesoura e fazia cortes e colagens, ou marionetas e bonecas, revelando desde cedo uma tendência para a exploração tridimensional dos objetos. Essa tendência foi muito estimulada em casa, pela mãe, cujo instinto artístico não havia sido cerceado, embora contrastado pelos avós, e pelo pai, arquiteto. Com a irmã e o irmão mais novos era levada a galerias e a museus e, como presentes, recebia muitas vezes material para fazer atividades manuais. Vem dessa infância a memória reportada por uma amiga da irmã, Amália, tendo ela 8 ou 9 anos: declarara, cheia de convicção, perante as duas meninas 4 anos mais novas, que um dia havia de ser joalheira, ipsis verbis! E assim foi.

O percurso académico inicia com o Curso Geral na Escola Artística António Arroio, em Lisboa, de que, adolescente irrequieta e alegre, pouco aproveita. Aquela que considera importante e marcante para a sua formação é a etapa seguinte, no ArCo – Centro de Arte e Comunicação Visual, que a encontra mais madura e focada – a ponto de pedir a chave do estabelecimento, para poder ir trabalhar nas instalações também aos domingos e feriados. É aí que se dá o encontro com aquela que considera a sua verdadeira Mestra, cofundadora do Departamento de Joalharia da Escola, que sempre acreditou em si e a estimulou, esclarecendo a sua inicial indecisão sobre se seguir Cerâmica ou os caminhos dos objetos preciosos:  Alexandra Serpa Pimentel. Formada na Central Saint Martins College of Art and Design em Londres e uma das pioneiras das técnicas de joalharia artística em Portugal, para além de uma excelente artista foi uma professora dedicada e generosa, que soube sempre substituir a secura de uma crítica por uma palavra de incentivo, humanidade bem-humorada e afetiva que tocou a sua personalidade. Durante quatro anos, Catarina Silva aprendeu a manualidade, o fazer bem requerido por esta arte, que é também um ofício artesanal.

Recorda dois momentos essenciais para a sua definição pessoal e artística: a participação, em 2005, no 10º Simpósio Internacional de Joalharia Contemporânea, em Lisboa, onde uma série de iniciativas juntavam em workshops e exposições não só grandes nomes desta área, vindos dos cinco continentes, mas também os alunos do ArCo. Foi ainda nessa ocasião que teve a oportunidade de assistir à incrível conferência do mestre australiano da filigrana contemporânea, Robert Baines, apresentando a sua pulseira “Java-la-Grande” (então exposta no Museu de Arte Antiga, ao lado de peças portuguesas quinhentistas, e hoje no Museum of Applied Arts & Sciences de Sydney) – inspirada na teoria de que tinham sido os portugueses, e não Captain Cook, a descobrir e mapear a costa ocidental da Austrália entre 1521 e1524. Outra experiência inesquecível foi o curso com o suíço Christoph Zellweger, que a obrigou a sair da sua zona de conforto, trabalhando um tema escolhido – o seu acompanhava-a desde menina: a crença de que as pessoas viviam dentro de um frágil ovo, para além do qual se estendia o Universo – não com os seus materiais de eleição, mas com os que outro aluno escolhera trabalhar. Nasceu então “Inside the egg”, peças em latex e feltro, que não resistiram ao tempo.

Com a joalheira Tereza Seabra em Bangkok 2019

Depois de colaborar cerca de dois anos com a galeria-oficina Reverso, da joalheira Paula Crespo, estabelece-se em 2007 num atelier próprio, em Campo de Ourique (Lisboa), onde dá aulas privadas e onde o seu trabalho, de início ainda muito ligado às técnicas académicas e a uma perspetiva comercial, está para dar um salto importante: a dupla exposição individual que faz, em 2012 na Galeria Tereza Seabra, com Miriam Castro. “God’s Unwanted Children ou os Palhacinhos de Deus” é a reconstrução narrativa de um imenso presépio de marfinite, um irresistível estímulo kitsch para as artistas, que o desfazem e refazem; marco importante para a afirmação de uma sua linguagem pessoal e autoral, confirmada ao longo dos últimos anos nas múltiplas exposições nacionais e internacionais em que tem participado – certames coletivos e a sua primeira exposição individual, em 2015: “Down the rabbit hole”, sempre na galeria de Tereza Seabra, outra das suas importantes referências humanas e artísticas.

Pela mesma altura é convidada para dirigir o Departamento de Joalharia do ArCo, onde cumpre uma outra vocação: a do ensino. O facto de, nessa função, ter de estar sempre informada acerca das últimas novidades, bem como os saberes e os estímulos que, como professora, vai dando e recebendo dos seus alunos, torna-se importante inspiração para si, pelo que sente que o próprio trabalho autoral tem vindo sempre a melhorar. Interessante o documentário da RTP “Catarina Silva – Pedras, Nuvens e Peixes” da série Joias para que vos quero? (disponível em https://www.rtp.pt/play/p4350/e336733/joias-para-que-vos-quero) que a retrata nessa dupla função de docente e de artista.

2021 vai ser um ano cheio de atividade para Catarina Silva, com três grandes projetos, entre os demais: em abril, uma exposição coletiva e multidisciplinar, “Triângulo”, no centro cultural que a centenária revista Brotéria inaugurou no Bairro Alto, em Lisboa, há menos de um ano; em setembro, no âmbito da primeira Bienal de Joalharia Contemporânea – com o título “Suor frio” e os temas da proteção, do medo e do corpo, mais atuais que nunca – uma exposição internacional de escolas onde o ensino artístico é veiculado; e, em contemporânea, uma exposição individual. Mais filtros ou lentes através dos quais a realidade, interpretada pela artista, é, certamente, qualificada.

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