Francisco de Almeida Dias

Rubrica Portugal é mátria

Atravesso a passo estugado o bairro de Alvalade, em Lisboa, e entro na estação de metro que traz o seu nome, pela Avenida de Roma, mesmo em frente àquele Santo António que o escultor António Duarte ali plantou no meio, a indicar, com a sua mão em bênção, um caminho para a fé dos homens, no cruzamento com a Avenida da Igreja. Superado a zona das bilheteiras, o ambiente surpreende, num gritante contraste profano: um rubro festim de sinuosas girls em trajos sucintos e atitude lânguida – são sete, agarradas a um grosso cabo, que puxam, mais em pose que em atlético esforço – tendo, do outro lado desse (pretensamente) infantil “jogo da corda”, um macacão em T-shirt , repimpado numa banqueta, e com a ponta da sua amarra presa a um peso de ferro: ele está garantido. Elas – quem sabe?

Do outro lado da linha avisto, sobre mais apaziguado fundo de tons azulados, uma donzela esperando o transporte, com a sua malinha de carneira – e evitando com o olhar uma imensa coruja à esquerda, que olha, gulosa, a sua saia curta, donde se lhe entrevê a liga; mais à frente um gigantesco símio toca viola, de olhar embevecido para duas meninas, que arredondam a saia, enquanto dançam ao seu ritmo; enfim, noutra secção da parede, uma femme fatale de salto agulha, espojada no chão sobre uma almofada, exibe na mão direita (entre um ar gozão e ameaçador) uma tesoura, evidentemente destinada à cauda empertigada do macaco que, entretanto esquecido do perigo, parece mais preocupado na perseguição de um inseto, à sua frente…

Sigo por essa “linha verde” na direção Baixa-Chiado e, algumas paragens mais à frente, salto do metro, subo as escadas e encontro-me, dentro em pouco, frente a um daqueles raros portões antigos de madeira, que resistiram aos desastrados restauros do centro histórico da capital. Toco à porta e quem me abre, sempre sorridente e sempre bela é Bela Silva, a contadora de histórias; Bela Silva, a autora da fantástica decoração do metro de Alvalade; Bela Silva a pintora, escultora, a ceramista; e mais…, e mais… – ela detesta “etiquetas”, e, de resto, muitíssimas teríamos de colocar a quem tão amplo e diversificado trabalho tem feito, atravessando quase todos os campos por onde se espraia a expressão plástica das artes.

Já não vive em Lisboa, mas, quando lho pergunto, diz-me que se re-conhece na cidade em que nasceu: há as cores avivadas pelo fôlego da luz solar e essa relação energizante com o mar (tão ligada esteticamente aos vidrados de algumas das suas peças); e, assevera, pensa tal e qual Fernando Pessoa: a língua portuguesa é MESMO a sua pátria. Regressa aqui periodicamente, vinda de Bruxelas, onde se estabeleceu há alguns anos: cidade afável, onde um céu plúmbeo a convida a estar mais fechada e mais concentrada no trabalho. A exuberância de Bela Silva contrasta, cheia de graça, com esses “tácitos” códigos que teve de aprender, uma body language contida, valã, contida, flamenga, contida – mas afável. A capital da Bélgica é, para além de tudo, o coração da Europa, onde as suas cores e o seu inquebrantável otimismo se colocaram geograficamente no centro dos circuitos da arte; onde se investe na cultura para qualificar o quotidiano, nessa tradição estética que vem dos tempos remotos daquela pintura, de verdes e vermelhos acesos, que tão grande influência teve, aliás, no Renascimento português.

Segue, natural, a pergunta: «Bela, sentes-te europeia?». A artista responde que sim, ela é também daquela Barcelona Arts and Crafts de Antoni Gaudí, daquela Madrid do Museo Nacional del Prado e daquela Londres di Victoria & Albert Museum. Mas eu sei que ela é, com a mesma verdade, norte-americana, indiana, latino-americana… Depois dos primeiros estudos em Lisboa e no Porto, partiu para Inglaterra. E daí seguiram-se cerca de oito anos entre Chicago e Nova Iorque, com os inebriantes os ritmos do Jazz e do Blues, que ainda hoje a encantam. Depois viajou, tem viajado muito…

Da sua recente estadia no México resulta o visceral encontro com o universo de Frida Kahlo, com a arquitetura de Luis Barragán, com a espantosa coleção do Museo Nacional de Antropología, no bosque de Chapultepec (considerada a mais vasta de objetos indígenas do mundo) e o mergulho de cabeça nas civilizações mesoamericanas pré-colombianas olmeca, teotihuacan, maia, zapoteca, mixteca, huasteca, purepecha, tolteca e asteca. Foram as fontes de inspiração para a recente exposição “Despierta Corazón Dormido”, que, desafiando estes tristíssimos tempos pandémicos, esteve patente, de março a maio últimos, na prestigiosa galeria Spazio Nobile, em Bruxelas. Ali se pôde apreciar a pessoalíssima homenagem e celebração de Bela Silva à cultura, à história e à tradição das artes aplicadas mexicanas, através de um ciclo de desenhos, vários trabalhos em cerâmica e o Codex Mexico, um livro-objeto, editado em série limitada e assinada.

Hoje a artista dedica-se, porém, menos a exposições e mais à integração da sua arte noutros projetos, algo especialmente importante para quem, como Bela Silva, vive apenas da arte que cria. Entre eles, as colaborações com arquitetos, em que sente o estímulo dos diálogos volumétricos da escultura com o edifício – tendo participado ultimamente em numerosas decorações interiores e externas de casas particulares. Mas também a indústria reconheceu o valor “comercial” do desejo que as suas formas e a suas cores, profundamente empáticas, despertam num público mais vasto que o frequentador das galerias.

Exemplos disso são as encomendas que Bela Silva executou, dentro do país, para a Vista Alegre e para a Vida Portuguesa, mas também em França, criando em 2018 um lenço de seda para a casa de moda Hermès, denominado “La Maison des Oiseaux Parleurs” ou, para a coleção primavera-verão 2020 dos grandes armazéns Monoprix, a aplicação de um bestiário, inspirado nas Fábulas de la Fontaine, a louças, toalhas de mesa, objetos decorativos, roupas e outros acessórios. São experiências preciosas para a artista, que adora sair do seu atelier, contactar com as pessoas e alargar os seus horizontes com essas derivações técnicas da sua criação artística. Aliás, confessa, este é um aspeto primaz da sua maturidade enquanto ser humano: saber aproveitar, como nunca, o momento presente e o aprender com quem se cruza no seu caminho e tem algo para lhe transmitir.

Essa curiosidade e excitação pelo que a vida oferece começou de pequenina, quando já se fartava de desenhar, de moldar o barro e de recortar tudo o que lhe aparecia à frente. Isto passava-se no ambiente caloroso e feliz em que nasceu, povoado pela juventude das tias (de quem a separam 6, 8 e 10 anos), com quem começou a ler precocemente, povoado pelo seu bom humor e pela sua feminilidade. Entre o número 25 e o 85 da mesma rua viviam os pais e a avó materna da artista, que lhe contava as histórias da “Bela Adormecida” – e que impressão lhe faziam as silvas a crescerem e a cobrirem o palácio! – e a de “Alice no País das Maravilhas” – onde os objetos até falavam!. Walt Disney juntava-se, assim, harmoniosamente, aos clássicos (que também lhe liam) de Hans Christian Andersen e dos irmãos Grimm e àquele fabuloso cinema de animação soviético, divulgado na televisão portuguesa pelo saudoso Vasco Granja.

É sempre uma alegria para os sentidos e para o coração reencontrar a Bela, amiga de há muitos anos, de quando tive a sorte de a poder apresentar ao público romano, com o pintor António Marques e a joalheira Tereza Seabra, na exposição coletiva “Gruppo di famiglia in un interno” (maio de 2009) – que contava ainda com o escultor italiano Fausto Maria Franchi. Deixo a artista aos seus afazeres domésticos, retomo o metro e, descendo no átrio sul da estação de metro de Alvalade, é como se o seu mundo encantado de meninas e animais, em fantásticas efabulações e improváveis diálogos, me restituísse – melhor, mais rico – ao mundo real.

Nota: Bela Silva inaugura dentro de dois dias, a 14 de novembro na galeria RUI FREIRE – FINE ART (Rua Serpa Pinto, 1C, em Lisboa) a sua próxima exposição portuguesa: «Bela Silva – Atelier» A não perder, para quem passe por Lisboa até dia 9 de janeiro do próximo ano. https://www.belasilva.com/

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *