Francisco de Almeida Dias

Rubrica Portugal é mátria

Procura-se a verdade entre espaços, nos intervalos do tempo, nos interstícios dos discursos, entre o som e a palavra, a imagem e a linha, entre o isto e o aquilo. Assim o faz Ana Luísa Amaral, lição marcada a fogo na sua mesma alma de menina, que de Sintra veio para Leça da Palmeira e muitas saudades sentiu dos cheiros do sul. A sua voz espraia-se por essa infância, onde vamos buscar tudo o que somos – é uma voz baixa, arredondada pelos muitos cigarros que tem fumado. A sua voz reevoca a “relação de inocência com a palavra”, que continua a chamar para si hoje ainda, poeta aclamada pelo mundo, voz entre as mais altas, as mais límpidas da língua portuguesa. E tudo está milagrosamente ligado entre si e em si, no seu ser e no seu estar no mundo. Tudo pura poesia. Há tamanha solidez na teia com que tece vida e arte, que a biografia perde expressão, para desespero dos voyeurs. Estamos perante um Clássico na contemporaneidade: Ana Luísa Amaral, a menina que encontra a verdade entre o norte e o sul e os outros pontos cardeais… e até “a leste do paraíso” («Antes ser tudo e livre / do que bom mas humilde (…)» in Ágora).

Foi com emoção que recebemos há bem pouco a notícia de que lhe fora atribuído o prémio literário espanhol Leteo, a cuja presença na entrega, realizada a 16 de outubro último, no Auditório Ciudad de León, a autora teve de renunciar, dado o novo agravar das circunstâncias pandémicas a que assistimos pela Europa. Nem sempre a estreiteza do presente compreende nos artistas aquela largueza de futuro que lhes dará futuro para além do presente, e é-nos grato verificar que, no caso de Ana Luísa Amaral, as contas começam desde já a ser acertadas: a sua obra é grande e como tal reconhecida em todo o mundo.

Veja-se, a propósito, a impressionante lista de países em que os seus livros estão traduzidos e publicados – Alemanha, Brasil, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, México, Reino Unido, Suécia e Venezuela, em diplomática ordem alfabética – e associe-se-lhe, antes do Leteo, o longo rol de premiações (para não mencionar as nomeações), a começar pelo Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas em 2007, o primeiro reconhecimento daquela que vem sendo considerada a sua magna opus, A génese do amor, e, vindo por aí fora, o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi (Itália), o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Rómulo de Carvalho/António Gedeão, o Prémio PEN de Narrativa da Associação Portuguesa de Escritores, a Medalha de Ouro de Mérito da Câmara Municipal de Matosinhos, a Medalha de Mérito – Grau Ouro da Câmara Municipal do Porto, o Premio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia e o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho.

Desta enumeração (quase maçadora pela extensão) se vê também que os méritos literários da autora se estendem da poesia, à narrativa e ao ensaio, a que devemos ainda juntar o texto dramático e os deliciosos contos para a infância. Mas nem a vastidão da sua obra, nem a docência universitária – e, portanto, mais e diversa produção e ação, académicas – nem a fama que logrou alcançar em vida, alteraram em Ana Luísa Amaral um olhar sempre inicial no seu chegar ao mundo, como que pela primeira vez, a cada instante. E tal espanto, tal maravilha renovada, tal frescura, são bem visíveis no livro que lançou, sob a chancela da Assírio&Alvim, em novembro último: Ágora, trinta e três poesias para aquilo que, de invisível, perpassa as obras de arte dos grandes mestres.

Logo na capa da publicação vemos a luta de Jacob com o Anjo de Bartholomeus Breenbergh, um outro artista entre espaços e tempos, como a poeta: pintor flamengo que viveu em Roma (um dos ditos dutch Italianates) e que atravessou a primeira parte de Seiscentos, dito “il secolo d’oro”. O tema da teomaquia – o conflito que tornou Jacob coxo, mas que lhe virá a merecer o nome de Israel, em hebraico, “o homem que viu Deus” – tão marcadamente tomado por outros autores portugueses (como José Régio, em 1940, na sua reflexão sobre o drama do ser humano, centrado na claudicante figura de Afonso VI de Portugal), é declinado em poesia por Ana Luísa Amaral, a partir do versículo:

«Até à madrugada

lutarei contigo

 

A percepção sentida por Jacob

de que esse que ali estava

não era só divino,

mas feito de matéria tão divina e igual

à sua própria carne

 

A agonia do espaço,

a tortura do tempo

e assim, a luta: longa necessidade

em sobressalto:

a alma

(…)»

 

Curiosamente, a um outro e mesmo Jacob – o do sonho contado no Génesis 28:10-22, com a tal escada que ligava o céu à terra – quis associar a lusitanista Livia Apa a voz poética de Ana Luísa Amaral, quando traduziu e publicou pela editora Manni de San Cesario di Lecce, logo em 2006, a Poesia reunida 1990-2005 da autora (que em Portugal viera a lume no ano anterior), com o título La scala di Giacobbe. Mas, para além do grande Livro, outros os tem a autora, a povoarem a sua imaginação e a sua cultura anglo-americana, in primis os de Emily Dickinson (1830-1886), às quase 2000 composições poéticas dedicou a sua tese de doutoramento, tendo deles traduzido primeiro Cem Poemas (Relógio D’Água, 2010) e depois Duzentos Poemas (Relógio d’Água, 2015):

«Crescendo de trovão até findar,

Depois o esboroar-se, grandioso,

Quando o Tudo criado era escondido

Isto – a Poesia –

 

Ou o Amor – os dois vêm coevos –

Ambos, nenhum provamos –

Um qualquer experimentamos e morremos –

Ninguém vê Deus e vive –»

 

Jacob viu Deus, lutou com Deus, viveu. À poesia (e certamente ao amor) tem sobrevivido Ana Luísa Amaral, como a sua irmã distante, Emily, nos intervalos do tempo, dos confins de Oitocentos – e encontrando nessa “vivência-sobre” a verdade entre espaços, nos interstícios dos discursos, entre o som e a palavra, a imagem e a linha, entre o isto e o aquilo. Do avô Shakespeare, às suas “tragédias de amor e da linguagem”, tem ido encontrar, completa, a sinfonia feita com os ecos das emoções e das fragilidades humanas; ao tio William Blake, às suas Songs of Innocence (1789) e Songs of Experience (1794) acrescenta o terceiro canto, o hino à Imaginação, nessa harmonização que procura (e alcança: Poesia) da contraditória alma nossa, com o universo de todos.

Ana Luísa Amaral, menina de Sintra em Leça da Palmeira, saudosa dos cheiros do sul… A sua voz espraia-se por esses tempos, onde vamos buscar tudo o que somos – é uma voz baixa, arredondada pelos muitos versos que tem escrito.

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