Francisco de Almeida Dias

AMÁLIA, 20 ANOS DEPOIS

Rubrica: Portugal é mátria

Assinala-se a 6 de outubro os vinte anos sobre a morte daquela que mereceu todos os epítetos – entre os mais, o de “embaixadora da alma portuguesa” – e cuja consagração internacional se fez em simultâneo com um erro de gramática que lhe estropiou nome, roubando-lhe o acento agudo que salvava a penúltima sílaba tónica antes do ditongo final, enquanto lhe retirava para sempre o apelido: AMALIA, em todo o mundo e sem necessidade de nenhum acrescento – é ela.

A parte que mais me impressionou e em que mais tenho pensado ao longo destes anos, daquele estupendo documentário de Bruno de Almeida de 1994, Amália, uma estranha forma de vida, foi uma das frases que o realizador escolheu para fechar a obra em que a Artista predizia que, quando morresse, se iria dizer muito acerca da sua vida, mas que tudo isso seria invenção, porque a sua vida tinha sido muito simples e as coisas simples não têm história.

É difícil pensar na mulher simples que necessariamente Amália também terá sido, sujeita aos mesmos maravilhamentos e paixões, sofrimentos e alegrias quotidianas, tragédias e milagres que cada um de nós traz consigo, o mais das vezes calados, porque são estórias demasiadamente universais para que façam a História. Mas é também evidente que a Artista, por muito que o desejasse, não se poderia nunca mais subtrair à sua própria máscara, à sua própria sombra, à consagração que, no seu caso, foi imediata à sua aparição pública.

Quem lhe chamou “embaixadora da alma portuguesa” referia-se ao facto de Amália ter levado o nome de Portugal e sua uma interpretação da cultura portuguesa, conquanto peculiaríssima, pelo mundo fora. Mas, nesta expressão, creio que cabe também aquele que é um dos seus legados fundamentais: a difusão dos maiores poetas da língua portuguesa através da sua voz, que chegava a todos, eruditos ou não. Assim, uma cultura de elite, destinada a priori a permanecer privilégio de alguns, democratizou-se efetivamente através da sua voz única, da sua expressão única, da grande inteligência com que teceu a sua milagrosa intuição tornando-a Única.

Tudo se torna ainda mais notável se pensarmos que esta mulher, contando apenas com a 3ª classe do ensino primário e que iniciou a sua carreira profissional aos 19 anos comprando, segundo o costume da época, letras de música para fados “a granel” a esfomeados poetas populares que farejavam os ambientes fadistas, em pouco mais de vinte anos e graças à inteligência com que conquistou amizades e companhias cultas, tinha os grandes poetas da sua época em casa e a escreverem para ela, iniciando logo a seguir a cantar também os clássicos da literatura portuguesa.

É conhecida e reconhecida a fundamental influência que nesse particular teve o encontro com Alain Oulman, que aconteceu em 1962 na Ericeira, através do diplomata e poeta Luís de Macedo. Nesse mesmo ano, a casa discográfica Valentim de Carvalho edita o famoso álbum Busto – o primeiro de uma extensa colaboração entre Amália e o compositor – em que para além das letras de Macedo, a fadista irá cantar poemas de David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello e uma poesia que sai do seu próprio punho, a celebérrima “Estranha forma de vida” com música de Alfredo Marceneiro. Em 1969, no álbum Com que voz, chegam também Cecília Meireles, Manuel Alegre, Alexandre O’Neill e Ary dos Santos e será ainda aqui que Amália irá cantar pela primeira vez Camões, outro encontro destinado a durar até ao fim, gerando à época uma polémica sem precedentes, por se entender que Camões era grande demais para ser cantado.

O que hoje nos parece óbvio – Camões e Amália unidos como dois dos símbolos maiores de Portugal e da cultura lusófona – gerou à época escândalo, debates públicos, opiniões discordantes dos vários setores da cultura publicadas na imprensa e até um programa de televisão em que se encenava um julgamento de Amália! Escreveu nessa ocasião, comprovando a sua visão de longo alcance, Alexandre O’Neill: «Isolar um génio na sua própria glória, torná-lo prisioneiro da sua própria complexidade, matá-lo aos poucos no hospital dos gramáticos ou na sonolência das sessões solenes é prática das sociedades basbaques. A dor, a alegria, o enlevo amoroso, a consideração melancólica do irremediável destino de cada um de nós, encontraram em Camões expressão universal. Ninguém tem o exclusivo desses sentimentos ou estados de alma, nem da sua expressão artística. Por isso eu acho ótimo o encontro de Camões-o-culto com Amália-a-fadista, para escândalo de certa bem-pensância e prazer dos que entendem que um poeta não é para sobreviver em pedra, nem uma fadista em navalha de ponta e mola.»

Mas, como se dizia, Amália escreveu ela própria poesia. Soube-se, aliás, que uma das suas últimas vontades foi a de que o “Grito” acompanhasse musicalmente o seu funeral. Gravado pela primeira vez no Japão e durante muitos anos inédito em Portugal, o emocionado poema, da autoria da Fadista, é dividido em duas metades especulares, que falam de silêncio e de solidão.

O silêncio é contido até ao limite das forças da Poeta, e só então explode num grito; um silêncio que não é só ausência de som – mas que é também uma sombra onde o céu se recolhe, onde em vão se procura uma estrela guia, um buraco negro onde o Eu poético se confunde com o nada; e nesse momento, em que o silêncio e a sombra se tornam pranto, a espera pela morte parece mais longa. E vem depois a solidão, apenas mitigada pela assídua presença da amargura e que quase a conduz à loucura. A composição, que termina com novo apelo à morte, contém um verso de um lirismo tão perfeito que se pode considerar, em si mesmo, uma pérola da poesia portuguesa contemporânea:

Do que já fui tenho sede

Amália encontrou, enfim, a paz para os seus sofrimentos, há vinte anos atrás. Os sofrimentos que burilaram a sua sensibilidade e a fizeram fadista. E, através do fado, a fizeram Poeta, nessa dupla      condição de ser-se poeta – a de amar a poesia dos outros e a de, eventualmente, sermos nós mesmos veículos dessa “mensagem imanente” (como diria Sophia, de quem o centenário do nascimento se assinala daqui a pouco). A sua boa estrela continua a iluminar este País e esta língua, que se alarga muitíssimo para lá dos confins da Europa.

 

Nota:
Francisco de Almeida Dias, Ph.D. (1980) é doutorado em Literaturas Comparadas pela Università degli Studi Roma Tre, e está ligado à Cátedra Pedro Hispano, Università degli Studi della Tuscia. “Amália e os poetas” foi tema de várias conferências que fez em Itália e de um conjunto de lições inseridas na cadeira de Literatura Portuguesa que lecionou na Universidade de Viterbo. Foi um dos convidados a participar nas cerimónias pelos 10 anos da morte de Amália Rodrigues no Auditório do Museo Nazionale degli Strumenti Musicali em Roma, com a conferência «Amália è poesia».

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