Francisco de Almeida Dias

Rubrica Portugal é mátria

No dia 14 de agosto de 1992, um menino tímido entrava por um dos apartamentos do Clube de Campo do Gerós. Levava nas mãos um livrinho quadrado e o coração aos pulos. Alguém abriu a porta e o encaminhou para a sala, que ficava mesmo em frente, alinhada com a entrada da rua. E ali encontrou, de pé, o mito que estava prestes a tornar-se realidade para essa criança de 12 anos incompletos.

Eunice não era o monumento extraterreal que a fotografia de capa do livrinho quadrado retratava, não era aquela Fedra, de braços muito abertos, de olhos muito pintados e escancarados, os dedos das mãos esticados até ao lugar da tragédia, a tiara e o trajo de gosto clássico.

Fora assim que a atriz se apresentara, pela primeira vez, no Teatro Experimental de Cascais, a 8 de setembro de 1967. A produção era luxuosa: desde a tradução do texto de Racine, da responsabilidade do poeta António Barahona da Fonseca, à época marido de Eunice, à cenografia e figurinos do pintor Júlio Resende (1917-2011). A atriz, na protagonista, contracenava com Amélia Rey Colaço (Enone), Mário Pereira (Hipólito) e Maria do Céu Guerra (Arícia), entre outros. No programa, o então jovem encenador Carlos Avilez, escrevia: «Para a Fedra, para os seus mais altos papéis femininos, não sonhei outras que Eunice Muñoz e Amélia Rey Colaço. Vieram até mim com simplicidade.»

Dedicatória

Para lá da máscara sacra do ator, Eunice aparecia àquele menino tímido com a mesma simplicidade com que se deslocara até Cascais, vinda do Teatro Nacional Dona Maria II com a sua mestra, Amélia Rey Colaço (1898-1990) – com quem se estreara profissionalmente, havia 26 anos. Talvez que a precocidade da admiração e do interesse pelo teatro que podia intuir nesse pré-adolescente a fizessem pensar nela própria, a menina prodígio que, com apenas 13 de idade, fora a Isabel da peça Vendaval de Virgínia Vitorino, ao lado de Palmira Bastos e Maria Lalande, João Villaret, para além da grande Amélia, naturalmente.

Figura afável, jovial, Eunice demonstrava toda ela ser acolhimento – os gestos, a própria morfologia do corpo, o sorriso doce, o olhar meigo – como uma avó que recebesse, com surpresa e imponderável amor, um neto cuja existência desconhecera até então. Conduziu o menino até ao sofá, sentou-o a seu lado, esqueceu-se que ele vinha para ela e quis saber dele, o nome e a idade e o porquê daquele encontro tão extemporâneo, a meio da estadia termal que gozava com os seus amigos do coração: os escultores Lagoa Henriques (1923-2009) e Carlos Amado (2936-2010).

Era de Mestre Lagoa a maravilhosa poesia que introduzida o livrinho quadrado que trazia nas mãos -e que era Eunice Muñoz, 50 anos da vida de uma atriz, o catálogo da exposição que Vítor Pavão dos Santos fizera no seu Museu, para homenagear aquela que, por direito próprio (e quase divino) era então, e continua a ser, a primeira Dama do Teatro português:

EUNICE / EU DIGO/ EU DISSE // AS MÃOS DE EURÍDICE/ A VOZ / A NOZ / O CÉREBRO / O SER BELO // O BELO GESTO // A PALAVRA / O SILÊNCIO/ O SILÊNCIO // ANCESTRAL / REENCONTRADO (…)

Arte de palavras e de silêncios é o Teatro, arte de gestos e de contenções, mão e cérebro – como os do Escultor. Talvez tenha sido por essa via intuitiva, por esse caminho extravasante que irriga os canais e elimina os confins, restabelecendo, consciente, o Todo inconsciente, que Lagoa Henriques alcança de forma tão magistral o perfeito retrato de Eunice. Nestas coisas, a amizade pode ser nociva, pode falsear, por via afetiva, a objetividade do artista. Aqui não, não há interferência: são duas almas a nu que se conhecem e comunicam entre si e uma delas retransmite a imagem, manda-a de reflexo para o mundo, em discurso poético.

Mas a composição não tem só de introspetivo. Ela é também, na verdade, factual e biográfica. “O silêncio ancestral reencontrado” fala dessa menina que nasceu entre telões de teatro de feira: Eunice do Carmo Muñoz, vem ao mundo em Amareleja (Moura), de uma família de atores ambulantes, com ligações às artes circenses. Recordá-lo-á em entrevista a Tiago Bartolomeu Costa, publicada a 20 de fevereiro de 2011, no Público: «Mas eu sempre tive um instinto enorme para saber o que era uma boa atriz. Herdei-o de várias gerações da minha família e muito do lado da minha mãe. Tive uma avó extraordinária, chamava-se Augusta do Carmo, que me inquietava imenso. Causava, ao mesmo tempo, tanto terror como gargalhada. Ainda hoje a lembro com muita saudade e profunda admiração. Ela era uma atriz extraordinária.» Mas, prossegue, a ode de Mestre Lagoa Henriques:

(…) A VIRGEM // E OS MENINOS // E OS MARIDOS // A ÁSIA / A ÁFRICA / A AMÉRICA / A AMARGA // E DOCE // MEMÓRIA // DO TEMPO // SEM TEMPO (…)

Eunice e Amélia em Fedra de Racine TEC 1967

O que de mais forte se sente, observando a vida de Eunice – 92 anos que irá completar a 30 de julho próximo – é a de uma mulher completa, para além de todas as coroas de glória, quer as oficiais, quer aquelas, mais espontâneas, oferecidas pelo público, que a sua carreira teatral lhe ofereceu. Uma mulher combatida entre a herança desse verdadeiro mester artesanal que é o palco e o amor profundo e pessoal pelo teatro que reconheceu dentro de si muito mais tarde, após uma interrupção de alguns anos que atuou uma década depois da sua precoce estreia. Uma mulher que, entre peças, fez também três casamentos, foi também mãe de seis filhos, que depois lhe haviam de dar os netos e bisnetos que hoje tem.

Na já mencionada entrevista, Eunice recorda a Mestra: «Pessoalmente nunca fui muito ambiciosa. Com as personagens sim, sou. Eu considero a ambição um defeito, não uma qualidade. (…) Mas eu tive uma mestra, que foi a Amélia Rey Colaço, que me deu muitos ensinamentos importantes, um deles foi a relação com a ambição. Eu nunca lutei por um papel. Quando fiz grandes papéis, como a Mãe Coragem (1986) ou a Zerlina (1988), foram os encenadores que acharam que aquela peça era própria para mim, e eu disse-lhes que sim.» Há em Eunice essa naturalidade, essa “conformidade” com o Destino lhe apresenta. Era isso mesmo, embora não o pudesse então verbalizar, aquilo que passava pela cabeça daquele menino tímido, enquanto falava da sua paixão pelo teatro com a encarnação viva do Teatro português.

Gerós, 14 de agosto de 1992

Quase trinta anos passaram sobre esse encontro e o tal menino tímido – naturalmente, o autor destas linhas – continuou a seguir e a admirar Eunice Muñoz, que, entretanto, participa pela primeira vez numa telenovela (em 1993 foi a D. Branca em A Banqueira do Povo, de Walter Avancini), interpreta A Maçon, que Lídia Jorge escreve para ela, e inaugura em 2006 o Auditório Municipal Eunice Muñoz, em Oeiras, com a peça Miss Daisy; é agraciada pelos poderes públicos e recebe prémios e sai ainda vencedora, há sete anos, de um cancro na tiroide. Em 2021 serão oitenta os anos de carreira e atividade, raro exemplo de fidelidade a uma vocação (re)conhecida, mas também de persistência num país que nem sempre trata bem os seus artistas e em que imposições censórias pré-25 de abril a mantiveram afastada de algum repertório para que era congenialmente talhada, até perto dos seus 50 anos de vida. Verdadeira força da natureza, Eunice é agora Cacilda da telenovela Quer o Destino, transmitida pela TVi, desde 23 de março deste ano.

No fim do nosso encontro, Eunice agarrou no meu livrinho quadrado e ofereceu-me a mais bela das dedicatórias, gravada no fundo da minha alma muito jovem, em que repetiu duas vezes a palavra “ternura” – o elemento que perpassou toda essa tarde e que foi, de facto, aquilo que dela mais me marcou: «Para o Francisco, meu jovem admirador, meu terno admirador, meu sensível admirador, a quem desejo o melhor pela vida fora. Com um terno abraço da sua Eunice Muñoz.» Saúde e alegria, querida Eunice. Que sorte temos todos de a poder chamar nossa e que alegria podermos continuar a vê-la trabalhar! Bem haja!

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