Francisco de Almeida Dias

Rubrica Portugal é mátria

Nenhuma delas me prendeu

Deixá-las eu, era canja

Até ao dia em que apareceu

Essa traidora da franja…

 

Bêbado como um cacho, grafitando na parede uma caricatura franjada e não imaginando que estaria prestes a tornar-se no célebre médico-fadista “Vasquinho da Anatomia”, criador do Fado da Febre Tifoide, aí o temos sentado nas escadas do Retiro do Alexandrino, entoando melancolicamente a sua (triste) sina de estudante cábula e estroina – e eterno apaixonado pela menina Alice Costa, aprendiza de alfaiate na loja de seu pai, ao Largo das Conchas, no Bairro dos Castelinhos. Esta cena é apenas um dos tantos momentos que ficaram na memória comum dos portugueses e, por essa via, passaram à história da nossa cultura no século XX. Devemos ao filme A Canção de Lisboa, lançado a 7 de novembro de 1933 e única realização cinematográfica do arquiteto Cottinelli Telmo (1897-1948) – daí a 6 anos nomeado arquiteto-chefe da Exposição do Mundo Português e nessa qualidade projetista do icónico Padrão dos Descobrimentos – não só expressões e temas que resistem passados 90 anos, mas também aquela que porventura é a melhor (e uma das raras) atuações cinematográficas de um mito absoluto das artes performativas portuguesas: Beatriz Costa (1907-1996).

 

Alguém disse que a coisa mais maravilhosa e mais terrível do teatro é ser sempre uma memória, pois não importa quantas vezes se faça uma cena ou se interprete uma canção, elas viverão apenas uma vez. Esse é o problema que se põe quando se evoca a performance lírica de uma Luísa Todi (1753-1833) que, durante 22 anos, encantou toda a Europa antes de regressar ao torrão natal, deixando no seu rasto o aplauso apaixonado dos críticos e dos connaisseurs ou a notícia da magnética presença cénica de uma Rosa Damasceno (1845-1904), que da opereta passou ao Teatro Nacional (e daí, diz-se, ao real leito de Sua Majestade Fidelíssima El-Rei D. Luís I). A fragmentária arqueologia do teatro encontrou no cinema, a partir do fim do século XIX, um vívido eco, que nos permite hoje avaliar o calibre de certos animais de palco, como o da franjinha mais catita dos anos 30 portugueses – penteado à la Louise Brooks (1906-1985), operação de marketing que, aliás, nada deveu à espontânea ingenuidade que aparenta.

Antecipando de quatro ou cinco anos aquela que seria uma das mais amadas duplas do teatro ligeiro português – Vasco Santana (1898-1958) e Mirita Casimiro (1914-1970), casados e empresários das várias produções teatrais que protagonizaram com incrível sucesso – eis um primeiro esboço dos Bucha&Estica nacionais: Beatriz franzina, olhar inteligente e sorriso maroto, expressão corporal a transbordar de graça no frenesim da vida e Vasco ora surpreendendo aquela pachorrenta corporeidade com a agudez do espírito irónico, ora sublinhando comicamente o desajeite, bamboleando-se pelo Jardim Zoológico e gritando para quem o quisesse ouvir, no desespero do rapaz falido que perdeu o seu “palhinhas” para um paquiderme atrevido: «Chapéus há muitos!». “Barriga de bicho”, “urso” e “seu palermão” são os epítetos com que Beatriz/Alice o apupa, enquanto lhe prega com a massa tenra nas ventas, no rescaldo do arraial da véspera, em que Vasco não só esbofeteia Quinquinhas, pretenso rival no namoro, como, para lhe acicatar a ciumeira, vai de braço dado na marcha ao filambó («toca o fungagá, toca o solidó»…) com a vizinha cantadeira, “a Greta Garbo do Bairro dos Castelinhos”.

Olh’ó balão na noite de São João

Para não andar maçado da pequena me livrei

Ò i, ó ai, não sei com quem ela vai

Ca por mim estou governado

Com uma outra que eu cá sei…

 

A entrada de Beatriz Costa em cena (ou em plano-sequência) definirá imediatamente a sua personagem: uma metralhada de acusações do postigo para a janela de Vasco, descrito como um “Don Juan da Moita”, que replica, apontando-a como a sedutora de «dez aspirantes da Escola de Guerra», entre outros. Na alfaiataria paterna sucedem-se confissões entre lágrimas, contas às fortunas das tias, o pânico que a atravessa quando tem de inventar um lugar onde esconder um homem tão grande, na iminência da entrada do progenitor (personagem interpretada por António Silva, 1886-1971), e um romântico devaneio, cantado de olhos em alvo, enquanto passa a ferro e se imagina, recém-casada, saltitando pela Serra de Sintra, contando as ameias do Castelo dos Mouros ou dançando de cartola (tendo cedido a grinalda ao marido) sob o fundo da Pena – que acaba naturalmente em desastre cómico: as calças do Vasco queimadas pelo ferro esquecido  e a sua expressão marota, aflorando da cratera criada na parte posterior dessa imensa peça de tecido.

Note-se que os autores da música e dos diálogos – Raul Ferrão, Raul Portela e José Galhardo –  eram os mesmos que, por esses anos, faziam furor no teatro de revista; assim, transposta cinematograficamente, aqui podemos encontrar esse mesmo tipo de comicidade: o romântico desmascarado em cómico – como na sequência de abertura, em que, da beleza lisboeta cantada por um soprano aflautado se passa, sem transição, ao quarteto masculino em ritmo ragtime que serve de fundo à correria trôpega de Vasquinho, atrasado para o exame na Faculdade de Medicina (exame de que, naturalmente, sairá reprovado). Mas há ainda os amores cómicos das velhas tias provincianas levadas no engodo do Sapateiro e do Alfaiate, que sabem da sua fortuna e desejam dar o golpe («ou comem todos, ou há moralidade»…), o jogo de enganos – quando Vasco é confundido com o seu sósia, veterinário do Zoo de Lisboa e acaba a pentear macacos perante o choque das tias, que se iam finalmente convencendo de que ele era “doutor” – ou a camuflada sátira política desse início de ditadura salazarenta – o capote alentejano que o alfaiate tenta vender à velha avarenta e que se trata de uma absoluta ocasião, custando apenas 95 escudos em “ESTADO NOVO”…

Mas a mais evidente homenagem deste filme ao teatro de revista é declarada e protagonizada por Beatriz/Alice. Desenrola-se no “Concurso para Rainha das Costureiras” que o pai, Presidente do Júri e Ensaiador da Academia Recreativa Dr. Barbosa Girão, manipula convenientemente. Quando, perante a apatia das dez concorrentes, inclusivamente a sua, é declarada vencedora, tem enfim oportunidade – e muito a contragosto – de se exibir num número que o Alfaiate a obrigara a estudar por semanas, “A agulha e o dedal” «da célebre revista O pastel de bacalhau» (espetáculos com títulos assonantes, como Pão-de-ló, Pé-de-Salsa e Água-Pé, tinham sido levados a cena poucos anos pela Companhia Satanela-Amarante, que estreara também a peça O Doutor da Mula-Ruça, uma das alcunhas atribuídas ironicamente a Vasquinho). De coroa à banda e com a faixa de “Miss Castelinhos” – com que Almada Negreiros (1893-1970) a retrata num dos cartazes publicitários do filme – ei-la aflitíssima, não conseguindo chegar aos agudos, desequilibrando-se nos malabarismos coreográficos e vexada pelas graçolas que o público lhe vai atirando: Beatriz Costa é perfeita, caricatura de si mesma e do mundo de que fazia parte havia dez anos, desde que se estreara como bailarina na revista Chá e Torradas e onde se popularizara com Pó de Maio (1929) e, em particular, travestida de miúdo de rua em É o Mexilhão (1931). Antes do fim dessa década, em verdadeira homenagem à sua origem saloia, regressará ao cinema como a fresca e espertíssima Gracinda de Aldeia da Roupa Branca. Nesse mesmo ano de 1939 partirá para o Brasil, onde cria a sua companhia teatral e onde permanecerá durante dez anos. Um mito do teatro português que atravessou o Atlântico e que vive ainda, graças ao cinema.

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