Francisco Almeida Dias
Rubrica Portugal é mátria
É costume dedicar os livros que escrevemos. Podia dedicá-lo a todos os meninos e podia dedicá-lo a todos os animais abandonados. Prefiro dizer-lhes que estas “Histórias do Quinas” falam de um cão que vivia na rua e que foi adotado pela nossa família.
É neste tom maroto e terno que inicia a história literária do cão que andava à solta por Santa Cruz e levou três meses até se decidir a entrar em casa de Violante e de Danilo. Era dezembro de 2009, os filhos do casal regressavam para as férias de Natal e o “Branquinho” – como então era conhecido – deixou-se enfim conquistar pelo fascínio da Ana. Mas do que ele gostava mesmo era de morder as rastas da namorada do Tiago, que o levou consigo para Utreque, onde estudava, batizando-o então com um nome mais patriótico, colhido diretamente da bandeira nacional…
Violante Saramago Matos em Roma, 11.04.2019
Depois da romagem aos Países Baixos, o Quinas já viveu na fronteiriça São Pedro de Rio Seco, passou por Faro e por Lisboa e regressou há algum tempo à ilha da Madeira, inspirando aventuras que os sobrinhos da Autora insistiam para que escrevesse. Hoje tem 11 anos e seis histórias publicadas entre 2015 e 2019 (a sétima sairá em novembro pelas Edições Esgotadas), que acabam de chegar a Itália na tradução editada em Viterbo pela Settecittà, com o título Le avventure di Quinas e ilustrada por Elisa Ansuini: um projeto singular, porque partiu de um grupo de oito alunas de Língua e Tradução Portuguesa, orientadas pela Doutora Angela Fedele, no âmbito das atividades da Cátedra Pedro Hispano (Camões I. P.), dirigida pela Profª Doutora Cristina Rosa: doze mulheres, ligadas pelo fio rubro da sensibilidade feminina ao universo da infância.
Quando temos de frente Violante Saramago Matos, parece-nos olhar para uma garota, a quem escapa sempre, para lá da seriedade de menina bem-comportada, um ar brincalhão e divertido, que adivinha uma meninice feliz, reconvocada pelo nascimento dos filhos e pela chegada, há três anos, de Ari – o primeiro neto, de quem diz, com espírito, que algures no seu nome deve estar inscrita a pergunta “- Porquê?”. No mesmo comprimento de onda estarão ainda a vocação para o ensino, a que dedicou parte da sua vida profissional, assim como a escrita para crianças (escrita e não literatura, corrige-nos com imensa humildade), confessando a grande falta que lhe faz, nestes tempos de pandemia, o contacto e o confronto com os seus pequenos interlocutores. Na atitude física e na expressão das crianças, encontra sempre uma avaliação frontal do seu desempenho e o estimulante desafio de lhes conquistar a atenção, o entusiasmo, a simpatia.
Teve uma infância feliz, na ingénua convicção de que todas as crianças viviam uma vida leve e sem grandes problemas como a sua: filha única de dois pais que a amavam, numa casa onde havia livros nas estantes e quadros nas paredes. Tinha 13 ou 14 anos quando o pai lhe ofereceu o célebre Cuore de Edmondo De Amicis (em 2011 prefaciará a tradução de Laura Moniz), romance “tristíssimo, mas muito intrigante”, como o caracteriza, bem diverso daquele que também ainda hoje conserva, A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia de Selma Lagerlöf – outra história de amizade entre um menino e um animal, um ganso à boleia do qual viaja pelos céus da Escandinávia.
Violante confessa que hoje lhe custa ter sido filha única, por não ter quem partilhe consigo as memórias desse tempo, dos cuidados dos pais atentos e sensíveis, grandes espíritos que qualificaram estética e intelectualmente a sua vida desde o início: a artista plástica Ilda Reis e o Nobel português José Saramago. Em depoimento publicado a 16 de outubro de 2016 no jornal Público refere: «É coisa boa quando a herança do nome dos pais nos enche o coração, mas é coisa difícil quando o tamanho do nome dos pais nos abafa o ser. Então é preciso saber emergir das águas daqueles dois caudais de talento, saber quem somos para além da grandeza deles, saber em que cruzamento — das duas ruas por onde correm dois nomes maiores da nossa cultura — fica a nossa esquina.» All’angolo delle strade / Na esquina das ruas foi, aliás, o título da sua segunda exposição individual de pintura e escultura inaugurada em Roma em 2019.
Apesar de se dizer apenas alguém que gosta “de jogar com formas e palavras, para dar corpo a ideias”, Violante é uma artista plástica que se tem afirmado publicamente nos últimos anos, participando desde 19 de abril na 4ª Bienal Internacional de Arte de Gaia (até 10 de julho), na exposição dos Artistas convidados. A sua pintura não vai beber diretamente à infância, tal como a outra parte da sua escrita, mais devedoras da profunda consciência social que desenvolveu desde a adolescência, quando se apercebeu que a vida das colegas do Liceu de Oeiras não era exatamente igual à sua e iniciou a participar no Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa. Os livros Na Primeira Pessoa e A História num Instante, e o mais recente Quando o verão amadurece são testemunhos dessa sua reflexão cívica e política, que em breve encontrará continuação num novo volume de crónicas “a caneta e pincel”, sobre o ano da pandemia e as ideias, as figurações, as ansiedades e as perguntas que a situação lhe suscitou.
Dirigente da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências, participando na luta e em manifestações contra a ditadura e a guerra colonial e tendo cumprido três meses de prisão em Caxias, durante parte dos quais teve a sua filha de pouco mais de um ano consigo, continuou a militância política e ação cívica depois do 25 de abril, juntando a sua voz a grandes causas nacionais e internacionais e combatendo pelos seus ideais, na Assembleia Legislativa da Madeira e na Câmara Municipal do Funchal, onde reside. Consciente da profunda responsabilidade ética que é escrever para crianças, a de transmitir conceitos verdadeiros de forma simples e clara, continua a relevar a importância da memória histórica, e ei-la que conta aos mais novos, através de um mistério resolvido por um divertido grupo de cães e gatos, a Revolução de abril, em Pintas e Pirata, Detetives de pata cheia, publicado no ano passado.
Uma das satisfações que tem tido desde janeiro de 2020 é a participação no programa radiofónico sobre temas da atualidade, transmitido pela TSF/Madeira: “Mulheres com Palavra”, em que Cátia Pestana, Elisa Seixas e Luísa Paolinelli (amiga e colaboradora em diversos projetos) conversam com uma convidada semanal e em que a Autora remata com “O minuto de Violante” (disponível em https://www.facebook.com/watch/tsfmadeira/).
O embate, aos 73 anos de vida, com o ineditismo da crise social e emocional instaurada pela Covid-19, levam-na a refletir sobre o que o tempo suspenso e a falta de proximidade física veio retirar a uma vida plena, feita de cinco sentidos, incontáveis sensações e imponderáveis sentimentos. Mas mais que estancar no medo ou na dor, uma artista e uma mulher de ação cívica renova-se na possibilidade de repensar a vida e de fazer para melhorar o mundo. Vem daí talvez esse seu eterno ar de garota, brincalhona e feliz, para lá da seriedade de menina consciente.
29/04/2021
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