*Fernando Luís

COISAS E GENTE DA MINHA TERRA - Grande produção de António Nazaré de Oliveira

Quando meia dúzia de amigos, não levando na devida conta a inexperiência inerente à idade, me convidou para primeiro Director deste jornal, logo me arranjaram a primeira dor de cabeça: conseguir colaboradores para compor a Redacção. Com maior ou menor dificuldade, lá fui preenchendo as diversas secções, da agricultura à religião, da opinião ao desporto.

Para a história regional, o primeiro nome que me sugeriram foi o do Dr. Nazaré de Oliveira, nome, na altura, ligado à concorrência, à Tribuna de Lafões. Optei então pelo Dr. Alberto Poças que infelizmente teve colaboração limitada devido aos poucos anos que permaneceu entre nós.

Ora, quis o destino, como que satisfazendo a minha primeira vontade, que o Dr. Nazaré, nos últimos tempos, viesse a publicar, na Gazeta, belíssimas crónicas a que deu o título genérico de Coisas e Gente da Minha Terra.

Confessou o autor que a motivação próxima para deixar, por escrito, a sua lembrança das coisas, dos lugares e de pessoas da sua terra, foi a leitura do livro Revisitação do Dr. António Moniz, também conhecido colaborador deste jornal.

Parabéns aos dois.

Dos muitos pormenores, das múltiplas e diversificadas crónicas, de um todo admirável, realço aqui apenas alguns quadros e personagens pelo muito que me sensibilizaram e que tenho o dever de partilhar com os leitores. Será assim como um sumário e revisão de matéria dada por tão ilustre professor.

Então, a primeira crónica situa-se numa das leiras da Casa Moniz, lugar cedido para o ensaio da banda e que trouxe à memória os familiares do autor com muita aptidão para a música. O pai no clarinete e na flauta, um tio no trompete, os primos no saxofone e na caixa. Tudo sobre a regência do tio e padrinho. Pelos vistos, o único da família que não tocava qualquer instrumento era o sobrinho e afilhado.

Não tocava, mas apreciava, como o comprova a sua escrita que nos chega em melodiosa prosa.

Ora, na apreciação dos ensaios da banda, o autor não estava só. Havia outro melómano, o Abel, como se tivesse vindo do nada, um homem sem história e sem família.

O Abel era uma daquelas figuras típicas que, como outras, sobressaem na geografia humana de qualquer lugar.

Mais que as nomear, difícil é retratar, pela escrita, a sua feição e maneira de ser, como, muito bem, o Dr. Nazaré o faz. Qual pintor que fixa, na tela, em cores vivas, o lado positivo de cada personagem deixando o resto esvair-se em fundo branco ou cinzento.

Deste modo também se pintou o Abel, acolhido no seio da banda em que o seu ser era o não ser, o seu nada era o seu tudo.

Um outro naturalmente com aptidão para a música, débil de cabeça, ignorante, analfabeto e bisonho era o Nascimento, hábil na flauta. Sem saber uma nota, a música estava nele e a flauta falava por ele.

Nas Termas, depois da actuação, permanecia imóvel enquanto recebia as moedas dos aquistas, que nunca agradecia.

Do seu bairro da Negrosa, onde também se situava a escola que já tinha motivado referências elogiosas à inovação pedagógica do Prof. Metelo, imortaliza agora algumas almas que bem conheceu.

Figura muito popular teria sido certamente a vendedeira de rua, a Eva, mãe de um rancho de filhos. Simpática, alegre, comunicativa, sem papas na língua. Esta maneira de ser nunca limitava o seu afinco no trabalho. Nunca estava parada, botava a mão ao que calhava...

Era a Eva que, como irmã mais nova, anunciava e promovia os espectáculos do irmão, António Fonseca, por alcunha, o Porrinhas, que trouxe do Brasil o gosto pelo teatro e, no largo, montava os seus espectáculos, os entremezes. Era o verdadeiro show-man, o cabeça de cartaz.

A Micas Gralheira que, como parteira, ajudou muita gente a vir ao mundo dando assim vida a um bairro onde não faltava a mulher de virtudes que o autor retrata de um modo sublime. Na escrita do Dr. Nazaré só não há lugar para bruxas más.

Olhando genericamente para a gente do seu bairro, é sempre muito comedido nos elogios, ainda que merecidos, de quem lhe é próximo.

Está neste caso o Manuel das Horta, respeitável e respeitador, trabalhador e conhecedor do seu ofício ao cuidar do quintal dos patrões. Arguto, perspicaz, bom conversador, repentista na resposta.

Nas suas crónicas, para além do bairro da Negrosa, Nazaré de Oliveira vai até à vila, agora cidade, onde destaca outras figuras populares.

O Colombo que, como o Abel, era outro que também ninguém sabia de onde veio. Com um traje característico que passava pelo sobretudo no inverno, e a camisa esbarrigada, se estava calor, recebia um simples cigarro, como dádiva divina.

Fala também do Quinato, o Joaquim Latoeiro, homem dos sete ofícios. No cine-teatro era porteiro e fiscal com ar disciplinador quase inquisidor. No Café Edgard, mais urbano e comunicativo. Pontual tinha que ser sempre no acerto do relógio da praça.

Ainda na vila, leva-nos a percorrer, do cimo ao fundo, a rua Direita e aí coloca, em cada porta, os oficiais de todos os ofícios, dos anos quarenta a cinquenta: sapateiros e alfaiates, marceneiros e merceeiros, tanoeiros e funileiros, relojoeiros e chapeleiros…

Havia figuras que pareciam sair da tela do cinema. Está neste caso o João Rodrigues que parecia um rancheiro fanfarrão do faroeste. Palrador, alegre, de gargalhada espontânea, como carreteiro, ele, o carro e os bois formavam uma trindade. Menos conversa e mais sabão no eixo…  o raspanete oportuno do Presidente da Câmara, na altura, o Dr. Ferreira de Almeida.

Dionísio Vilamaior, músico exímio da Banda Filarmónica e do Orfeão seria uma outra personagem com ar cinematográfico. Figura distinta, de cabelo branco, um verdadeiro senador romano, foi o pai das Festas da Vila.

Em todos, Nazaré de Oliveira realça os dotes, algumas virtudes e aligeira os defeitos.

Esta benevolência de quem escreve apercebe-se bem quando se refere à Liberata, modista de anjinhos nas procissões, mas amiga de, em tudo, meter o bedelho. Ao vê-la partir, não deixou de recomendar aos outros anjinhos, que não as crianças, um bom lugar para quem passou na terra como reconhecida bisbilhoteira.

A Liberata, como outros e outras da sociedade civil, vivia também de algum serviço que não existiria sem cerimónias religiosas.

Acontecia o mesmo com o sacristão Amaro Mendes, o ardina da terra e que, nesta profissão, ficou conhecido pela alcunha de Mário Batata.

Nesta ligação à igreja, não faltam referências às inevitáveis beatas que tanto podiam fazer do padre um santo como um pecador, como hoje ainda acontece.

Ainda neste âmbito, é referido o seminarista Flávio que embora fisicamente franzino, não deixou de abusar da autoridade na examina da doutrina. Como director da Gazeta ainda o conheci tendo este jornal publicado alguma da sua obra poética que aqui assinava como Gouveia Osório.

No que toca ainda à Igreja, o clero também não foi esquecido. Desde o padre Carola de quem lhe falava o avô até ao Cónego Isidro, artista da palavra e malabarista nas ideias.

Recorda os excelentes sermões que deram fama ao vigário da Vila e descreve, ao pormenor, um 15 de Agosto onde acompanhou o pregador desde Negrelos (Senhora do Livramento), passado por Sá de Carvalhais (Senhora das Chãs), Manhouce, terminando na Junqueira já no concelho de Vale de Cambra mas ainda diocese de Viseu.

Na Quaresma, no Sermão do Encontro, em sexta-feira santa, fazia tremer de emoção a multidão que enchia a praça, junto da igreja matriz.

Também não esquece o pároco que antecedeu o cónego Isidro, o Padre João Rodrigues Pereira, de Cambra, tratado simplesmente por Senhor Vigário.

Aos olhos do autor, ainda criança, se Deus tinha figura, deveria parecer-se com o Sr. Vigário…

Destacou-se no campo social e cultural. Foi o fundador da Filarmónica.

O Dr. Nazaré de Oliveira, para além de obra publicada em livros, enriqueceu a Revista Beira Alta, com rigorosos e profundos trabalhos sobre a história local e regional.

Com estas crónicas deixa-nos agora mais um legado precioso.

Por tudo isto, era minha obrigação passar ao papel este testemunho de admiração para com este sampedrense, nome grande das nossas letras e da nossa cultura.

Tenho esperança que todas estas crónicas, venham a ser publicadas em livro. Uma sugestão para o pelouro da Educação e Cultura da Câmara Municipal de S. Pedro do Sul.

Até lá, faça como eu, recorte e guarde estas páginas que vale sempre a penas reler. Uma interessante literatura realista que fala da nossa gente, do nosso povo. De homens e mulheres, mais ou menos letrados, que habitaram as nossas casas e calcorrearam os nossos caminhos.

Bem-haja Dr. Nazaré.

*(Neste texto, o autor optou por não seguir as normas do novo Acordo Ortográfico)

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