Entrevista ao Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô

“O ano de dois mil e dezasseis foi um dos grandes marcos na história do nosso Rancho.  Foi o ano da inauguração da nossa sede, o ano que fez chorar lágrimas de alegria àqueles que antes as tinham chorado com muita tristeza e desânimo.”

 • Paula Jorge

Paula Jorge (PJ) – O Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô nasceu há quantos anos e pelas mãos de quem?

Celeste Almeida (CA) – Quase todos os Ranchos ou Grupos Folclóricos existentes, inspiraram – se nas vivências das comunidades rurais, tendo como objetivo principal, preservar os alicerces identitários das gentes e lugares, onde estão inseridos.   Todos eles representam a tradição cultural da sua região. Focando – me no Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô com os seus genes que caracterizam a sua identidade cultural, um grupo de pessoas no ano de mil novecentos e oitenta e nove, decidiu   preservar as tradições e saberes do povo, dignificando a forma de ser e de estar dos seus antepassados, criando este Rancho. Permita – me, que destaque uma dessas pessoas por razões sentimentais. Falo do senhor Orlando, infelizmente falecido precocemente, um homem com quem tive o privilégio de trabalhar, pois foi Vice-Presidente, aquando eu assumi a Presidência do Rancho. Um senhor de uma educação extrema que ambicionava o melhor para a sua terra.  Juntos, orgulho-me de algumas conquistas e tenho a certeza, que juntos, muito mais iriamos fazer. No entanto, partiu cedo para tristeza dos seus.  Digo muitas vezes, que o Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô, existe também para homenagear os que estiveram connosco e estão agora noutra dimensão. Infelizmente, são muitos, alguns deles na flor da idade e quão dificil foi aceitar a morte de quem tantos sonhos tinha por viver. São feridas que todos nós temos na alma, feridas que nunca irão cicatrizar.

 

PJ – Como e quando apareceu Celeste Almeida neste Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô?

CA – Na vida tantos muros derrubamos, tantos caminhos cruzamos, tantas pessoas encontramos!  Costumo dizer, que na vida existe uma linha invisível, que une aqueles que estão destinados a se encontrar.  Tudo tem uma razão de ser e nada acontece por acaso e minha vinda para o Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô, não foi uma mera coincidência. Pelo menos, é esta a minha convicção. Estávamos no ano de mil novecentos e noventa e nove. Eu, já na altura fazia Rádio, uma outra minha paixão e o programa da minha autoria, naquela altura, era feito nas aldeias do concelho. Chamava – se “Saberes da Nossa Gente “um dos programas que mais prazer me deu fazer.  Percorri, com a Rádio “às costas” levando sempre a equipa da parte técnica comigo, as vinte e duas freguesias que tinha Castro Daire.  A localidade escolhida para dar voz aos saberes da freguesia de Pepim, foi Mosteirô, precisamente, porque existia lá um Rancho e o programa seria muito mais rico, tendo momentos musicais.   Lembro como se fosse hoje e já passaram vinte e quatro anos. Nessa mesma noite, no final do programa, algumas pessoas, incluindo o senhor Orlando, pediram – me para “tomar conta” do Rancho e ajuda–lo a crescer. Aceitar de ânimo leve, jamais. Tinha que ponderar, porque a minha função de docente era a minha maior prioridade e ocupava outros cargos que exigiam bastante dedicação e empenho.  Além disso, era mãe e esposa e não podia descuidar estes papéis tão importantes na harmonia familiar. Era necessário pensar nas consequências daquela tomada de decisão.  A minha primeira e segunda resposta, foi não, justificando – me com a falta de tempo. Contudo, senti um vazio enorme, porque tinha virado as costas a quem me tinha pedido ajuda e isso, não estava na minha essência. Ao longo da vida, tinha aprendido, que cada vez, que me doava ao próximo me tornava um ser melhor. Quando, certo dia, voltaram a bater à minha porta, fazendo o mesmo pedido, minha resposta foi, “sim”. Estávamos no ano de mil novecentos e noventa e nove, final do século XX.

PJ – Como tem sido o percurso desta Associação, ao longo destes anos?

CA – Não foi fácil, de forma alguma. Muito trabalho, muita resiliência, muitas lutas, lágrimas e dores, para conseguirmos ser o que somos hoje.  O primeiro grande desafio, foi formar a Associação com a inscrição dos sócios e trajarmos os elementos do Rancho.  Falo no plural, porque eu nunca caminhei sozinha. Eu sou a Presidente, mas desenvolvemos o trabalho em equipa.   Para trajarmos os elementos do Rancho, houve uma recolha junto das pessoas mais idosas que, foram nossos Mestres.  Sem eles, não teríamos construído o nosso património etnográfico. Durante alguns anos, ensaiavamos nos palheiros, carência que me deu força para sonhar mais alto. Precisávamos de uma sede, um lugar digno de um Rancho que crescia ano após ano.  Que sonho tão alto! Um sonho que para alguns era inatingível, mas um sonho do qual eu nunca abdiquei, porque sempre acreditei que não existem impossíveis, quando estamos dispostos a lutar para quebrar barreiras e vencer qualquer obstáculo. Durante nove anos, sem interrupção, enviei o projeto da construção da nossa sede, à CCDRC, com a esperança de ser aprovado e termos alguma ajuda financeira.  Verdade, que esperávamos outro valor, mas, tal como diz o povo, “de grão a grão enche a galinha o papo” e o pouco que veio, após nove anos de insistência, foi importante.   A comunidade e todas as ajudas que tivemos foram preciosas e juntamente, com o dinheiro que o próprio Rancho conseguia juntar com atuações em festividades, o sonho tornou – se uma realidade.  O ano de dois mil e dezasseis foi um dos grandes marcos na história do nosso Rancho.  Foi o ano da inauguração da nossa sede, o ano que fez chorar lágrimas de alegria àqueles que antes as tinham chorado com muita tristeza e desânimo.    Temos um orgulho imenso na nossa casa, a nossa sede, uma verdadeira relíquia dos sócios, mas que pomos à disposição da comunidade sempre que precisam deste espaço.

 

PJ – Tem uma agenda de verão completamente cheia. Como se gere uma agenda destas com a vida familiar?

CA – Uma boa pergunta para uma difícil resposta.  Posso afirmar que nos meses de verão, me esqueço de mim própria. Eu não existo nesta estação, apenas existe o Rancho que eu presido. E, se eu não existo, a vida familiar está em segundo ou terceiro plano. Nunca deixei o “meu rebanho sem pastor”. Aliás, tenho algumas situações bem dramáticas, precisamente, porque gosto de cumprir com o meu dever de presidente. Recordo a morte da minha mãe, que estava quente na campa e eu fui apresentar o nosso Festival de Folclore e realizar todo o trabalho inerente ao evento. O mesmo aconteceu com a minha sogra e um cunhado meu, o luto ainda no coração, mas arranjei forças onde não as havia e juntei-me aos meus, porque sei o quanto a minha presença é importante para eles. Dou-lhes e inspiro-lhes segurança, por isso, falto a casamentos, a festinhas dos netos, a visitas dos filhos e tantos outros acontecimentos familiares, enquanto houver atividades do Rancho. Posso até, contar-lhe um episódio bem fresco! No dia vinte e três deste mês de julho, estivemos no Festival organizado pelo rancho de Fermontelos. Tenho dois netos em casa, sem os pais. Ficaram com o avô. Estava o meu Rancho no palco e o meu telemóvel não parava de tocar. Era o meu marido e eu não o podia atender. Consegui, enviar-lhe uma mensagem escrita. Ele só precisava saber como era com o jantar dos netinhos! Com compreensão, porque tenho a sorte de ser compreendida, meu marido fez o que lhe pedi e foi com eles jantar ao restaurante! Como vê, família vem sempre para depois, mas tenho responsabilidades que não posso olvidar de forma nenhuma! Seria uma indigna presidente e estaria a prejudicar uma Associação e um povo que tanto trabalha para dar vida a uma aldeia e não a deixar cair no esquecimento.

 

PJ – Por quantos elementos é constituído o Rancho e qual a média de idades?

CA – Neste momento somos quarenta e cinco pessoas, mas este número ao longo dos tempos oscila. Oscila em número e oscila em pessoas, porque a vida não permite que algumas se mantenham, por vários e diferentes motivos. A emigração, os estudos, os empregos, são alguns fatores que levam algumas pessoas a sair. No entanto, sempre que podem, regressam cheios de vontade e alegria. Quando assumi a presidência vi mulheres grávidas, vi crescer os filhos, vi darem os primeiros passos de dança agarrados às saias das mães ou às calças dos pais! Hoje, são o alimento deste Rancho e ouvir chamar pela avó, pelo avô, pelo pai, mãe, irmã, etc, é algo que me emociona e algo que mantém o cordão umbilical que me une a este Rancho, cada vez mais difícil de cortar. Sinto-me parte integrante de todas estas famílias. Temos várias idades, desde crianças com três anos a veteranos com setenta e mais anos de idade.

PJ – Fale-me do impacto que sente no público quando atuam e a recetividade que têm.CA – Todo e qualquer Rancho preserva as características essenciais e etnográficas da cultura popular do nosso povo.  Existimos para salvar o que ainda é suscetível de ser salvo para que as gerações atuais e vindouras conheçam as suas raízes culturais e todo o legado que nos deixaram os nossos antanhos.  Não podemos deixar perder os usos e costumes dos meados do século XIX e para que isso seja possível, temos que fazer uma investigação constante das tradições populares. São estas tradições populares que identificam um determinado lugar ou região que divulgamos pelo país fora e além-fronteiras. Os trajes, a música, as cantigas, os ritmos, as danças são o nosso estandarte que por onde passa é aplaudido entusiasticamente, porque é com estas manifestações culturais, que damos a conhecer a história do nosso povo e as nossas raízes.  Somos arte popular, somos povo que exaltamos o nosso país com orgulho de sermos portugueses. Os aplausos, os afetos, os sorrisos que ganhamos sempre que divulgamos a forma mais cristalina e pura da alma do povo português, são os mais preciosos louros que colhemos.

 

PJ – Enquanto presidente desta associação, o que mais almeja para o futuro?

CA – Como se costuma dizer, “o futuro a Deus pertence”, mas uma das minhas qualidades, ou defeitos, chamem – lhe o que vos aprouver, é que nunca me sinto realizada com os meus projetos. Quero sempre mais e mais.   No mês de março, o Rancho ficou a pertencer à Federação do Folclore Português. Sabemos que não é a Federação que define se o rancho é de qualidade ou não! Aliás, existem Ranchos que não pertencem à Federação e no entanto, são verdadeiras bandeiras da cultura popular. Por pensarmos desta forma, é que andamos tantos anos sem nos tornarmos sócios da Federação e a qualidade do nosso Rancho nunca a pusemos em causa, pois sabemos o quanto trabalhamos para representarmos com dignidade e verdade o folclore português. Tudo tem o seu tempo e achamos por bem, estarmos no tempo certo para este passo. Agora há que continuar a trabalhar com a mesma humildade e dedicação para continuarmos a merecer o respeito do público. Vamos continuar a fazer as nossas “investigações” junto das pessoas sábias, as pessoas idosas. Temos em aberto a recolha dos versos que outrora se cantavam na Amentação das Almas e os versos utilizados no Cantar das Janeiras.  São dois projetos que queremos abraçar, sem nunca descuidar o que já faz parte do nosso espólio. Orgulhamo-nos imenso, de ser o único Rancho Folclórico que todos os anos participa nas Marchas de S. Pedro, integradas nas Festividades de S. Pedro, aqui, em Castro Daire. Não é tarefa fácil, pois as marchas coincidem com as atuações do Rancho e temos que nos sacrificar para levarmos tudo a bom porto. Uma marcha exige muito trabalho e acima de tudo, muita resiliência, mas o nosso orgulho ao desfilarmos na Avenida enche-nos o coração e o peito de felicidade. Relevante também, é a festa de natal que todos os anos organizamos para juntar o nosso povo, com momentos de espírito natalício, mas também muito humor apresentado pelos nossos atores, culminando com a degustação de sabores levados pelos presentes. Outra tradição que faz parte das nossas atividades é o magusto tradicional. É apanhada a caruma nos pinhais e as castanhas são assadas como faziam os nossos antanhos no terreiro. A alegria mistura-se com as labaredas e poucos são os rostos que escapam intactos. Com as mãos passadas nas cinzas enfarruscam-se uns aos outros, provocando grande algazarra, principalmente nos mais jovens. Os jogos tradicionais são recriados no dia do magusto, como por exemplo, a corrida do saco, a colher e o ovo e os pés atados.

Somos o Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô que não vira as costas aos nossos antanhos. Costuma dizer-se que não se vive do passado, mas sim do presente e do futuro. Porém, para se compreenderem as transformações pelas quais a cultura de um povo passou com o decorrer dos tempos, é fundamental conhecer as suas origens. Nós existimos para as mantermos vivas.

Agradeço ao Jornal Gazeta da Beira o estar atento ao percurso do Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô. Com este gesto, o jornal Gazeta da Beira demonstrou, mais uma vez, estar atento ao empenho daqueles que fazem acontecer. O reconhecimento é uma das principais motivações do ser humano. Muito obrigada!

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