Entrevista a João Carlos Vale

Escritor

A entrevista que se segue é a um grande senhor que já, há umas edições atrás, tive o gosto de entrevistar. No entanto, o seu currículo é tão rico que senti urgente voltar a entrevistar. O senhor que se segue chama-se João Carlos Vale e vive em Tondela. Tem uma vasta obra publicada e é um apaixonado pela escrita.

A escrita é a minha forma mais genuína de falar. Ao escrever desnudo os meus sentimentos, sem filtros e sem o receio de juízos de valor por parte de quem lê o que escrevo.

Paula Jorge (PJ) – Quantos livros conta já o seu currículo literário e o que o motiva a não parar de escrever?

João Carlos Vale (JCV) – Permita-me que comece por agradecer a amabilidade desta entrevista, pois ela permite dar voz num palco magistral que é a Gazeta da Beira que permite a um simples aprendiz de escritor, dar azo à sua paixão pela escrita. Respondendo então à sua pergunta tenho até ao momento 9 livros editados. Quatro de poesia (Doação, Palavras Ditas pelo Coração, Eterno Romântico e A minha margarida e outras flores), três da série Divagações (livros de crónicas ou artigos de opinião se preferirem que complemento com um conjunto de 5 simples quadras e onde expresso a minha livre opinião sobre os mais díspares assuntos da nossa sociedade) e finalmente dois romances. O primeiro, “Ao sabor das armas” apresentado em 2020 que fala do Portugal dos anos 60 e 70 no Estado Novo e da Guerra do Ultramar, tema que é muito querido. Parte da ação desenrola-se em Moçambique, país onde nasci e que amo de forma total e incondicional. Neste meu primeiro romance tive o privilégio de ter a assinar o prefácio, um grande senhor da imprensa regional e que era uma verdadeira enciclopédia viva. O Sr. Amorim Lopes de Tondela, Homem que chegou a andar comigo ao colo, foi desde o primeiro segundo a minha primeira escolha. Infelizmente já não posso mais folhear as páginas da sua sabedoria. O segundo romance “Sobrevivi” aborda o famigerado tema da violência doméstica e tem tido felizmente algum impacto pelos poucos locais por onde tenho passado. Neste tive a mesma sorte da minha primeira e única escolha para assinar o prefácio. Estou muito grato à minha querida amiga, Sr.ª Dra.ª Paula Jorge. Além destes a título individual, participei também nas 3 coletâneas “Poemas de Hoje – Poetas da Beira” e até agora em 10 das 11 edições da Coletânea Mimos.

A escrita é a minha forma mais genuína de falar. Ao escrever desnudo os meus sentimentos, sem filtros e sem o receio de juízos de valor por parte de quem lê o que escrevo. Quiçá por isso é a minha escrita simples e honesta. Nunca fui um bom aluno a português, nem nunca tive formação específica na área. Sou no fundo um auto-didata e enquanto houver uma pessoa que leia o que eu escrevo, eu continuarei a escrever. No dia que ninguém o fizer, certamente continuarei a fazê-lo, pois no futuro quem sabe alguém irá ler o que eu escrevi e talvez até goste.

 

PJ – Da escrita para a vida real, há uns tempos esteve entre a vida e a morte. Como foi esta superação e que lições tirou dela?

JCV – Por vezes somos teimosos e não escutados os sábios conselhos das pessoas que nos amam e ficamos surdos e insensíveis aos alertas que o nosso corpo nos dá. Fruto da minha alimentação errada (almoços a correr), não tomando pequeno-almoço, nem lanche e comendo refeições ao jantar hipercalóricas, fizeram a par de situações de elevado stress pessoal, profissional e académico, com que o corpo me obrigasse a parar. A 1 de Março dei entrada no Hospital de Viseu, tendo sido operado às primeiras horas do dia 2, a uma úlcera duodenal perfurante que me “rasgou” o estômago, permitindo que os seus fluidos se espalhassem por todo o organismo. Depois foram 11 dias de coma, mais Cuidados Intensivos, Cuidados Intermédios e recobro, durante dois meses e meio e mais dois meses de baixa, para depois regressar de novo ao trabalho. Seria injusto da minha parte não mencionar alguns dos anjos da guarda que estiveram ao meu lado. Começo pelos nomes da Susana Castro Dias e José Manuel Rebelo que foram a par da minha mãe as pessoas que mais insistiram comigo para eu ir ao Hospital. Ciente da minha teimosia, a Susana liga-me a dizer “Prepara-te. Chamei a ambulância e ela já vai a caminho.”, não me deixando assim alternativa. Em boa hora o fez. Durante todo o período em que estive no Hospital foram outros os anjos da guarda que me apoiaram e que aqui recordo: As minhas irmãs Paula e Tininha e as minhas amigas Rute Coelho, Sandra Cabaças, Tânia Arvela e Ana Portugal, além da minha ex-mulher Marilene (foi incansável no apoio) e dos meus filhos Luís Filipe e Carlos Daniel.

De igual forma quero aqui deixar uma palavra de carinho e de eterno agradecimento pela forma como fui tratado e como de mim cuidaram, tanto no Hospital, como na Casa de Saúde S. Mateus, onde estive em convalescença. Foram raríssimas as situações negativas que vivi durante estes dois meses e meio e reforcei a convicção que há muito tinha: Se o Serviço Nacional de Saúde, não funciona como todos nós o desejaríamos, a culpa não pode ser atribuída aos seus excelentes e abnegados profissionais. Eles são a linha da frente do SNS e quantas vezes se sentem impotentes para ajudar quem deles precisa.

Hoje encaro a vida da forma que sempre devia ter encarado. Evito ao máximo cometer erros ou extravagâncias, ainda que estas possam ocorrer pontualmente.

 

PJ – Acha que escrever sobre si próprio e especificamente sobre tudo aquilo que passou seria algo a considerar?

JCV – Sim. Apropriando-me das palavras da minha querida amiga a brilhante psicóloga, Professora Doutora Catarina Martins, estas vivências “vão desaguar em livro”. Esse livro já está em elaboração e tenho previsto apresenta-lo no dia um de março de 2024, dia em que se completa um ano sobre o meu internamento hospitalar. A minha ideia, caso consiga concretizar este objetivo, passa fundamentalmente por pois aspetos, além da óbvia partilha de factos. Um primeiro que é alertar quem possa ler este livro, para os erros que não se devem cometer e para os riscos inerentes às nossas escolhas. Um segundo aspeto prende-se como o meu intuito de homenagear, ainda que de forma muito simples, todos aqueles que estiveram ao meu lado neste difícil período da minha vida. Médicos, enfermeiros, auxiliares e família. Família de sangue e família que foi escolhida pelo coração, a quem chamamos amigos. Há dois “pormenores” que foram para mim um precioso aliado no meu bem-estar além das pessoas anteriormente referidas. Durante todo o processo não tive dores e estive sempre de bom humor, brincando com diversas situações. Devo frisar que durante este período de tempo, decidi continuar os meus estudos, ainda que tivesse escutado diversos conselhos para suspender a matrícula para o próximo ano. Teimosamente não o fiz e felizmente consegui alcançar os meus objetivos, embora com imensa dificuldade. Posso desde já aqui divulgar o nome desse livro “Bando de asas brancas – Uma história de superação”. Espero conseguir publicá-lo.

 

PJ – Que outros projetos ao nível da escrita e pessoais tem que possa partilhar connosco?

JCV – Enquanto tiver forças e criatividade, quero continuar a escrever. Tenho prevista a apresentação do meu 10º livro ainda este ano, no início do mês de dezembro. O livro irá chamar-se “Soldado da Guerra e da Paz” que é uma singela homenagem aos combatentes no Ultramar e aos nossos bombeiros. É inspirado na vida, enquanto militar, do meu amigo José Manuel Rebelo que combateu na Guiné e também no meu saudoso pai na sua passagem pelos Bombeiros Voluntários de Tondela. Na apresentação deste livro parte das receitas reverterão a favor dos Bombeiros e da Associação Nacional dos Combatentes do Ultramar. Sei que irei ter muito mais dificuldades em cobrir o investimento, mas é esta também a minha forma de agradecer estes heróis.

O projeto Divagações foi “desenhado” para 12 exemplares e apenas o último está para concluir. Tenho já completos mais dois livros de poesia e um terceiro quase concluído. Em mente tenho igualmente a apresentação de um novo romance em 2024 e outro em 2025 que prevejo seja um pouco polémico, mas mais uma vez reitero que escrevo o que penso e não o que outros possam querer que eu escreva.

PJ – Qual a sua posição sobre as editoras que acompanham os pequenos escritores?

JCV – Sou bastante crítico não só de editoras, mas também de livreiros e de muitas bibliotecas municipais, mas explicarei cada um dos casos. As editoras são empresas com fins lucrativos e assim a vertente económica é certamente a mais importante de todas. Mas porque não ajudarem a promover novos escritores – e há aí tantos com imenso talento – cobrando-lhes margens mais curtas de lucro, de modo a que esses escritores possam ver realizado o seu sonho. Sei por experiência própria quanto custa editar um livro. Os livreiros (à semelhança das editoras) poderiam ajudar a divulgar esses novos autores. O mesmo se aplica às bibliotecas municipais. Cheguei a sugerir a uma dessas bibliotecas que ao convidarem um escritor conhecido, convidassem um menos conhecido de forma a ajudar a divulgar o seu trabalho, à semelhança do que vemos em alguns concertos musicais, onde um grupo menos conhecido atua antes do grupo consagrado. Além disso é muito complicado, escritores do interior profundo do país serem vistos pelas editoras. Eu não trabalho com editoras por esses motivos e obviamente por motivos económicos. Sei de escritores que quase mendigam na praça pública a venda das suas obras e outros que recebem apenas migalhas pelo seu trabalho, vendo a editora a ficar com a maior parte. Mantendo-se este cenário, comigo não contam.

 

PJ – Que conselhos aqui nos deixa para quem, no mundo das Letras, quer tentar a sua sorte?– Não sinto que tenha muito a aconselhar, além de dar o meu próprio exemplo. Antes de editar um livro, devemos usar a técnica do merceeiro. Quem se recorda dos antigos merceeiros, aqueles que guardavam o dinheiro numa gaveta de madeira por debaixo do balcão, sabe que as suas contas eram feitas a lápis numa simples folha de papel. Nessa folha eram colocadas receitas e as despesas e assim se apurava o lucro. Simples contabilidade de merceeiro que ainda hoje uso. Aquando do meu primeiro livro (Doação em 2015), eu fiz essas contas a lápis no papel, mesmo já tendo acesso a computadores e a folhas de cálculo. Procurei alguém que já tivesse livros editados para escutar os seus doutos conhecimentos. Contactei várias editoras, pedindo orçamentos para várias quantidades de exemplares, sabendo que o preço por unidade diminui quanto maior for a quantidade. Depois vi quanto me iria custar cada livro e de novo me aconselhei com quem tinha mais conhecimentos sobre o preço de capa que deveria praticar, para assim saber que quantidade de livros precisava de vender para haver um retorno do investimento. Basicamente a quem se queira “aventurar” no mundo das letras, dou estes conselhos simples: Escutar quem já anda no terreno, pedir vários orçamentos e analisar custos.

PJ – Em relação ao tema “Família”, como vê a família na sociedade atual?

JCV – O conceito família tem sofrido bastantes alterações nos últimos tempos, fruto da escravidão que estamos sujeitos e que nos é imposta pela sociedade e pela voracidade dos acontecimentos. Aquela família tradicional hoje é uma quase raridade. Há famílias que agora existem após uma primeira ter “falhado”. São também cada vez mais as famílias monoparentais, fruto de opções pessoais ou das vicissitudes da vida. Hoje vemos igualmente a proliferação de famílias lideradas por casais homossexuais que quantas vezes optam por aumentar a família, adotando uma criança que tantas vezes foi abandonada por um casal heterossexual. Mas para mim a mais bela e perfeita família é aquela que o nosso coração escolhe: Os nossos verdadeiros e sempre presentes amigos, onde, no meu caso particular, incluo a autora desta entrevista.

 

PJ – Quem é o João Carlos Vale?

JCV – A resposta mais simples que poderia dar seria: Sou eu! Sinceramente não gosto de falar de mim. Prefiro que outros o façam. O João Carlos é alguém que acredita na vida, nas amizades e no amor. Sou um eterno romântico e sonhador e, alguém que tem permanente objetivos traçados que pretende alcançar, num constante fervilhar de ideias e de projetos. Não sei qual será a razão, mas sou alguém em quem as pessoas por norma confiam as suas mágoas e as suas alegrias e com quem tantas vezes partilham segredos ou ambições. Creio ter um espírito solidário e altruísta, fazendo da modéstia a minha maneira de ser, não sendo por isso materialista. Sei que poderia já ter escalado mais a montanha do sucesso, mas sei que tal só seria possível recorrendo a subterfúgios que repugno totalmente. Tento ser ao máximo responsável em todos os meus atos, pensando sempre nas consequências das minhas escolhas. Dou este simples exemplo. Tenho um carro com quase 26 anos e até poderia ter um carro mais recente, mas se o fizesse iria colocar em risco algumas das obrigações que tenho. Prefiro ter pouco a ter muito e ser apontado por outras pessoas.

Podem usar milhentos adjetivos quando se referem a mim, mas há dois que particularmente me agradam: Amigo e Cavalheiro (neste está patente a minha costela de romantismo).

Permita-me terminar com um eterno agradecimento à Gazeta da Beira pela honra que mais uma vez me dá em publicar uma entrevista minha. Quanto a si, minha querida e boa amiga Paula Jorge, faço minhas as palavras de Lord Byron “A amizade é o amor, mas sem as asas deste”.

OBRIGADO

28/09/2023


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