Entrevista a João Carlos Gralheiro

“Gente Que Ousa Fazer”

 • Paula Jorge

Olá! Estarei convosco para responder a mais um desafio. Espero não vos desiludir.

A rubrica “Gente Que Ousa Fazer “será assente numa entrevista a alguém que tenha algo válido no seu percurso de vida. Gente que sabe o que quer e, acima de tudo, que luta por aquilo que quer. As entrevistas serão sempre encaminhadas de forma a mostrar o lado melhor que há em cada um de nós e, dentro do possível, ousar surpreender o leitor. Serão entrevistas com a marca das nossas gentes, da região Viseu Dão Lafões, de todos os quadrantes e faixas etárias. Vamos a isso!

 

Ficha Biográfica

Nome: João Carlos Marques da Costa Gralheiro, filho de Maria Margarida Coelho Marques da Costa Gralheiro e de Jaime Gaspar Gralheiro, porque sem eles nem eu nem o meu nome existiriam.

Idade: E isso pergunta-se? A partir de determinado momento da nossa vida a idade só serve para provar que já não temos a que queríamos e já temos a que não desejávamos. Mas há o lado positivo: já cá chegamos e são-nos abertas as portas para dizermos o que efetivamente nos vai na alma: 60 anos.

Profissão: Se profissão é sinonimo do que fazemos para obter rendimentos que paguem as despesas, sou Advogado. Se for caracterizada por aquilo que melhor sabemos fazer, sou Advogado. Se estiver relacionado com o que desejaríamos, então, pensador. Se tiver a ver com o que somos: um chato que gosta da perfeição!…

Livro preferido: Eina cum caraças…. Eles são tantos!…. Romance, ensaio, ficção, prosa, poesia, teatro, técnicos. Eu sei lá!… Para mim basta serem bem escritos. É uma paixão. Mas já que a pergunta me é feita, aí vai: “Girassóis Cegos”, de Alberto Méndez (Sextante Editora), talvez o mais belo livro de amor que alguma vez li.

Destino de sonho: Ops … Agora é que me lixaram!… Para quê o destino, se o sonho se faz de nós com os outros? O mais paradisíaco dos destinos, sem que o “eu” o possa partilhar com os “outros”, rapidamente se tornará no inferno na terra. O “destino” para ser de “sonho” depende de quem nos acompanha, o fim a que se destina e o concreto tempo em que ele possa ser por “nós” (“eu” + “outros”) vivenciado. Neste preciso momento, quiçá algures num monte alentejano com quem mais quero e mais me quer bem, a degustar um “suchi” alentejano, regado com um bom tinto daquela região.

Personalidade que admira: meus Pais, minhas Irmãs, minha Mulher, minhas Filhas, meus Sobrinhos (1ºs e 2ºs), meus Tios, meus Primos. Fora deste núcleo mais íntimo, e referenciando apenas portugueses, na política, Álvaro Cunhal, Vasco Gonçalves; na literatura, Camões, Gil Vicente, Aquilino Ribeiro; nas ciências, António Damásio. Como meus Professores, Martins da Costa e Orlando de Carvalho.

 

Muito obrigada, Dr. João Carlos Gralheiro, por mostrar disponibilidade para esta entrevista da rubrica “Gente Que Ousa Fazer”. Comecemos pelo princípio.

Paula Jorge (PJ) – Pode descrever-nos o seu percurso académico?

João Carlos Gralheiro (JCG) – Foi na Vila de S. Pedro do Sul que fiz a Escola Primária, com o Prof. Lourenço. A Profª Isabel Silvestre e um outro prof. de cujo nome já não me recordo, também me deram aulas, quando o nosso Mestre Escola ia a “águas” para umas Caldas. Tenho boas memórias da candura da Profª Isabel Silvestre, mas péssimas recordações do outro prof., que “arreava” em nós com inusitada, e quiçá sádica, violência.

Terminado o 1º ciclo, e porque em S. Pedro não houvesse Escola Pública, fui inaugurar o Ciclo Preparatório de Viseu, à data denominado de “António Oliveira Salazar”.

Sobre a minha passagem por aquela Escola guardo uma interessante estória.

Certo dia, na aula de Português, o prof. da disciplina ordenou que fizéssemos uma redação subordinada ao tema: A Nossa Escola.

Meti mãos à obra e rabisquei um texto onde tecia laudatórias referências ao edifício, criticando, contudo, o nome que havia sido dado à Escola, que era de um homem muito mau, que metia na prisão quem não concordasse com ele e impunha uma guerra que feria e matava muitos jovens.

Aquele prof. ao ler a minha redação, temeroso dos poderes de então, caninamente foi entregá-la ao diretor da Escola, “para os efeitos tidos por conveniente e a bem da nação”.

À data era Vice-Diretor daquela Escola o saudoso Prof. Nelas que ao saber do sucedido perscrutou que se nada fizesse, mais dia menos dia o meu texto iria parar às mãos dos facínoras esbirros da PIDE/DGS, com o que isso poderia acarretar de perigo para a liberdade de meus Pais. Então, em boa hora, aquele Bom Homem o fez desaparecer, para sempre.

Feito o Ciclo Preparatório, e porque não houvesse Liceu em S. Pedro, continuei por Viseu.

Após ter sido inaugurada a denominada Secção Liceal de S. Pedro do Sul, tornei a estudar na vila.

A minha experiência de quase 4 anos a estudar e viver em Viseu redundou numa relação de absoluto descrédito com aquela terra.

Em 1970 Viseu era uma aldeia grande que vivia quase exclusivamente do comércio, implantado em pouco mais do que uma rua, onde os patrões eram donos dos estabelecimentos e os trabalhadores pensavam ser os donos dos balcões. Às 19:00h deixava de haver pessoas nas ruas.

Na Secção Liceal, em S. Pedro, cruzei-me com um sr. que vendia aulas de matemática, cujo nome se me varreu (esta capacidade de me esquecer dos nomes!…), que na primeira aula a que assisti me perguntou o que é que estava a fazer ali, pois já estava reprovado. E fazendo jus à ameaça, deu-me um “6” (classificação de 0 a 20) no 1º trimestre.

Era o ano letivo de 1973/74, e no dia 25 de Abril de 1974 ocorreu a madrugada que os portugueses há muito ansiavam, e Livres, os Alunos daquela Escola, habitando a substância do tempo, disseram àquele sujeito: o sr. pode ir-se embora, pois já está saneado.

Fiz os 6º e 7º anos (hoje 10º e 11º) em S. Pedro, tendo tido a sorte/privilégio de ter tido Professores que lograram obter a perfeita síntese pedagógica entre a Escola e a Vida/Revolução.

Por não ter tido professor a disciplina nuclear, no 7º ano, não me pude candidatar ao Ensino Superior.

Exatamente por isso decidi propor-me à Escola do Magistério Primário, de Viseu, para o que fiz o exame de acesso, tendo sido admitido.

A minha relação de desprezo relativamente a Viseu manteve-se, agravada com a reacionarísse que caracterizava a vida naquela ainda aldeia grande.

Porque assim era, nunca admiti ficar a viver ali, passando a ir e a vir, todos os dias, à boleia. Para lá, quase e sempre com o saudoso Sr. João Pinheiro, para cá, com quem ma desse…

Andar à boleia implicava, por vezes, não conseguir cumprir integralmente os horários.

Um dia houve que cheguei atrasado a uma aula que era dada por mais um prof. cujo nome se me varreu. Ao abrir a porta, ele disse que eu tinha falta.

Na semana seguinte eu cheguei a horas e quando ele entrou na sala já tinha dado o 2º toque, que significava falta para ele.

Sem se justificar, pretendeu iniciar a aula, como se nada tivesse acontecido.

Foi então que o interpelei, pretendendo saber se ele iria sumariar a aula no Livro de Sumários ou se, reconhecendo que se havia atrasado, não o faria, arcando com as consequências da sua falta.

O que eu fui dizer!… Que mais isto e mais aquilo. Que era cinturão não sei quê em karaté que me dava cabo do canastro etc. e tal …

– O sr. prof. faça o que quiser, mas se eu tive falta o sr. também terá de ter. Retorqui-lhe. Aquilo é que foi bonito vê-lo sair, esbaforido, porta fora, a barafustar contra tudo e contra todos.

Mais tarde foi-me contado que na reunião de final de ano, no fim de curso, para fixação de notas, havia sido proposta a minha reprovação, não com base em critérios pedagógico-científicos, antes porque eu não necessitava do curso, tendo sido um “submarino” ali colocado pelo PCP para destabilizar a vida da Escola. Essa proposta acabou por ser rejeitada pela maioria do corpo docente, tendo, por isso, concluído o curso.

Terminei o Magistério em julho e em setembro estava a candidatar-me ao Ensino Superior.

Somente no guichet de Viseu, dos Serviços do Propedêutico, é que decidi o curso e a Universidade que iria frequentar: a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

E porquê Direito?

Porque juntava o útil ao agradável: gostava de fazer o que o meu Pai fazia, e tinha-o para me ajudar.

Em Coimbra estudei que nem um “louco”, tinha um horário diário de estudo que nas alturas de frequências e exames era superior a 10h, embora, confesse, fazia amiudados intervalos.

Reconheço, hoje, que a opção que tomei de primazia pela vida na academia (organismos autónomos: TEUC; e secções: Centro Experimental de Rádio e Centro Experimental de Fotografia, da Associação Académica de Coimbra), em detrimento da vida académica (frequência às aulas) a isso me obrigou. Se tivesse ido às aulas, quiçá teria feito o curso com menos esforço e, provavelmente, com melhores notas. Mas não me arrependo de ter vivido Coimbra com a intensidade da academia e do que a rodeava (política partidária, campanhas eleitorais, participação nos órgãos de gestão da Faculdade, Clepsidra, República Ay-Ó-Linda), como a vivi.

Podia ter tido melhores notas? Podia. Mas não tinha tido melhor vida do que aquela que levei!

Depois, há mais vida para lá das notas, nunca tendo deixado de dar primazia na minha formação contínua.

Foi assim que fiz pós-graduações em Direito das Empresas, com a defesa da tese “Da Usucapibilidade das Quotas Socias”, e em Direito da Medicina, defendendo a tese “O Ato Médico é uma Empreitada?”.

Para além disso, continuo a ser participante regular de cursos vários ministrados pela Faculdade de Direito, de Letras (Filosofia) e pelo Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra.

PJ – Nesta sequência, Dr. João Carlos Gralheiro, fale-nos do seu trajeto profissional.

JCG – Tendo acabado o curso em julho de 1985, logo nesse ano iniciei o estágio para advogado, sendo meu Pa(i)trono talvez o melhor Advogado com quem alguma vez trabalhei e/ou conheci, meu Pai.

Cumprido o Serviço Militar Obrigatório e feito o estágio, coloquei “tabuleta” de Advogado na porta do escritório que passei a partilhar com meu Pai, em janeiro de 1988, com ele tendo trabalhado até ter decidido deixar de advogar, quando fez 80 anos.

Desde aí, até ao presente, continuo a exercer esta nobre profissão de defender quem dessa defesa necessita, e nesse sentido me contacta.

Enquanto Advogado fui Presidente e, depois, Tesoureiro da Delegação de S. Pedro do Sul, da Ordem dos Advogados, tendo integrado, também, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.

 

PJ – Muitas histórias terá guardadas durante todo o seu percurso profissional.

Quer partilhar connosco aquela que mais o marcou?

JCG – Pois sim, então lá vai uma.

Já lá vão muitos anos, certo dia entrou no meu escritório uma Srª, funcionária pública reformada, à data casada com um Sr., reformado de uma força policial.

Cada um dos cônjuges era pessoa para ter para cima dos 65 anos de idade, vivendo numa pequena vila da região centro.

Na perspetiva da minha cliente a vida do casal havia chegado a um ponto de rutura, sem possibilidade de retorno, apesar da fortíssima formação religiosa que a havia formatado.

A minha cliente, que padecia de patologias graves, sentia-se abandonada pelo marido, tendo de suportar não só as dores dos males de saúde que a afligiam, acrescidas das que lhe advinham da indiferença do seu marido.

Nessa altura o divórcio, para ser decretado, se não houvesse mútuo consenso dos cônjuges, teria de ser litigioso.

Ora, perante a situação em concreto, e sabendo que o Sr. Juiz que poderia vir a julgar aquela ação era um homem de fortes convicções católicas apostólicas romanas, para quem, em regra, o casamento era um contrato para toda a vida, sugeri que ela abandonasse a casa de família, indo viver para outro sítio.

A Srª ficou em pânico com aquela minha sugestão, pois receava poder vir a perder direitos.

Acalmei a Srª, informando-a de que, com a separação, direito algum perderia, antes pelo contrário, demonstraria ao Tribunal não era possível a manutenção da vida em comum.

A Srª saiu de casa, indo viver para uma outra casa.

Intentei a ação.

Citado, o marido contestou a ação e requereu o arrolamento dos bens comuns do casal e, na qualidade de cônjuge mais velho, a administração dos mesmos, que lhe deveriam ser entregues.

O Tribunal deferiu o arrolamento e ordenou a entrega dos bens ao marido da Srª. De entre os bens arrolados e entregues ao marido estava toda a roupa da Srª.

Recorri daquela decisão, por motivos que para mim eram, e continuam a ser óbvios, tendo, contudo, o Tribunal da Relação confirmado a decisão da 1ª Instância (por isso os Tribunais da Relação cada vez mais são meros tribunais de confirmação).

Por causa dessa decisão a Srª teve de entregar a administração das suas cuecas e sutiãs, de toda a sua roupa, ao marido!…

Felizmente a Srª tinha capacidade económica para suportar, o que para mim era, e é, uma decisão errada, comprando nova roupa para si.

Infelizmente o quadro clínico da Srª agravou-se, acabando por falecer no decurso da lide.

Já na parte final da sua vida, numa reunião que tivemos, ela disse-me que podia ter ficado sem a roupa que era dela, e sem o dinheiro que foi obrigada a gastar para comprar roupa nova, mas se não tivesse sido a minha sugestão de abandonar a casa, o marido ter-lhe-ia tirado, também, a liberdade, a felicidade e o sossego com que pode passar a viver aqueles últimos momentos da sua vida, o que só havia sido possível pela coragem que eu lhe tinha incutido, o que me agradeceu.

PJ – Publicou dois livros que alcançaram e continuam a alcançar um enorme sucesso, nomeadamente: “Dos Baldios, até à Lei 75/2017, de 17 de Agosto” e “O Ato Médico é Uma Empreitada?”. Porquê estas duas temáticas?

JCG – Como tive oportunidade de referir, não descuro a vertente da formação contínua, pois que o melhor que o Homem tem é a sua inata capacidade para se “deslumbrencantar” (deslumbrar, encantar).

A rotina do dia-a-dia, na resolução dos casos concretos com que somos bombardeados, tem como consequência o aprisionamento dessa alegria da descoberta. Vamo-nos tornando burocratas que para a situação “x” aplicamos acriticamente a solução “y”, deixando de perceber por que é que tem de ser assim e não de outra forma.

Transformamo-nos em meros repositórios de fórmulas resolventes.

A beleza da descoberta, de dobrar o cabo, de levantar o véu e de ver para lá, é algo que me fascina.

Todos nós, quando vimos ao mundo, não é para sofrer (o tempo das trevas já passou), antes para cada um percorrer o seu caminho, na busca da sua Felicidade.

Em mim, esse caminho é o estudo, e a felicidade é conseguir chegar lá, àquele local que almejamos atingir, o local onde concluímos que o esforço do nosso trabalho deu fruto que vale a pena ser partilhado, pois que, como já disse, sem os outros o “eu” de nada vale.

“O Ato Médico é uma Empreitada?” é o resultado gestacional de uma frutuosa fecundação originada pela frequência na pós-graduação em Direito da Medicina, no Centro de Direto Biomédico, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, dirigido pelo Sr. Prof. Doutor André Dias Pereira.

O zigoto, por incrível que pareça, adveio da fecundação do gameta do “deslumbrencantamento” com o da provocação. Na verdade, num dos seminários, o palestrante aventou a hipótese de se poder regular o ato médico (a relação contratual entre o médico e quem o procura na busca da prestação dos seus serviços) por recurso ao regime legal do contrato de empreitada. A imagem que imediatamente me surgiu foi a de me ver, como consumidor de serviços médicos, à frente de um homem gordo, camisa aberta, peito à mostra ostentando enorme crucifixo dourado. E ri-me para mim.

Foi nesse momento em que me ri que se deu a fecundação. Depois, foi deixar as células multiplicarem-se até atingirem a forma de livro.

Já no livro “Dos Baldios, até à Lei 75/2017, de 17 de agosto”, o gameta da provocação veio da Federação Nacional dos Baldios, na pessoa do seu Diretor, o Sr. Mestre Eng. Armando Carvalho, quando me lançou o repto para fazer a apresentação do que à data ainda era o Projeto de Lei, que viria a dar a Nova Lei dos Baldios, na VI Conferência Nacional dos Baldios, no Verão de 2017, em Vila Real. Já o gameta do “deslumbrencantamento” veio da espontânea vontade de aproveitar o ensejo para homenagear o Jurista que tanto havia dado do seu saber e vida profissional na defesa dos Baldios, meu Pai.

Acontece que aqui a fecundação daqueles dois gametas, que formou o zigoto que haveria de vir a dar naquele livro, não se deu em ambiente académico, foi heteróloga, porque no meu escritório, fruto de um saber, e de um saber fazer acumulados ao longo de 30 anos de profissão.

Relativamente ao que apelidou de “êxito”, agradeço a adjetivação, mas, sem falsas modéstias, parece-me exagerada. Diria que estes meus dois “filhos” atingiram a maioridade com a 2ª edição, estando, cada um deles, a fazer o seu caminho. Não posso, contudo, deixar de estar orgulhoso por terem sido apresentados, nas várias sessões que ocorreram, de Lisboa a Vila Real, passando pelo Porto, Coimbra, Viseu, Miranda do Corvo e Gerês, por prestigiados Professores Universitários, o que, pelo menos, indicia terem alguma valia dogmática.

 

PJ – Quais os sentimentos que o dominam quando escreve? Como se revê nesta faceta de escritor?

JCG – A imagem da fecundação que usei na resposta anterior acaba por ter mar para desaguar na resposta a esta pergunta.

No livro “O Ato Médico é uma Empreitada?” depois de se ter dado a fecundação, a gestação passou por mergulhar na leitura de variadíssima literatura técnica sobre o assunto; por participar em diversas conferências onde, direta ou indiretamente o tema era abordado; por ter reuniões com especialistas de vários saberes e saberes fazer correlacionados com a questão. Sei lá… Foi um verdadeiro “encher do caldeirão”.

Depois, foi aguardar pacientemente que as dores de parto chegassem.

E chegaram!…

Andava a correr com a minha Filha mais velha, no areal de uma praia, quando senti rebentar o saco das águas: havia descoberto a estrutura que a obra iria ter.

De imediato fui para as instalações onde estávamos, peguei no computador e comecei a escrever. Escrevi ali, escrevi acolá, escrevi aculi, escrevi onde pudesse escrever. Escrevia, apagava, reescrevia, se necessário fosse tornava a apagar, para de novo escrever, sempre na busca da palavra correta, da adequada construção frásica, pois, como disse o Senhor Prof. Doutor Coutinho de Abreu, na apresentação do meu outro livro, na cidade do Porto, os livros de Direito não são apresentáveis, já que não são romances. Aqui, o autor promove a imaginação do leitor. Nos livros de Direito não há azo a essas tergiversações da mente, pois que cada palavra tem de ser usada com peso conta e medida, por forma a não ser passível de interpretações plúrimas, se assim não for, então o livro, pura e simplesmente, não presta.

No livro “Dos Baldios, até à Lei 75/2017, de 17 de agosto”, a gestação foi muito mais rápida, pois que haviam 30 anos de leituras, de discussões teóricas, de prática forense. A terra já estava devidamente trabalhada, pelo que as sementes que nela caíssem rapidamente deram o seu fruto.

Apesar disso foram horas e horas, dias e dias de leituras, de debates, de luta pela descoberta da forma correta de expor cada uma dos temas ali tratados. Depois, foram quase 2 meses de leitura e correção do texto.

O ato de o escrever foi sensibilizado pelo ambiente próprio do escritório que tenho na casa, que foi de meus Pais, local onde a memória de meu Pai está presente de forma muito impressiva. Senti que a obra ia nascendo a 4 mãos, era como se meu Pai ali estivesse, sempre, a meu lado para comigo discutir cada “novidade” que eu trazia ao estudo que ele preteritamente houvera feito.

Foi uma experiência muito intensa.

Por fim o livro foi editado.

Sobre a questão daquela experiência, deixem que vos conte mais uma estória.

Quando meu Pai faleceu, estava eu, à noite, sentado numa cadeira da plateia do Cineteatro que tem o seu nome, a olhar para féretro onde Ele estava, que se encontrava na esquerda baixa do palco, quando senti uma intensa pulsão interior para escrever um texto.

Vim para casa e só parei quando o findei. Senti que meu corpo houvera sido usado por meu Pai para dizer as palavras que gostava que fossem ditas no decurso das suas exéquias fúnebres.

No dia seguinte, quando os Amigos se vieram despedir Dele, ao Cineteatro, subi ao palco e li aquele texto.

Pela reação das pessoas, que me disseram terem gostado do que haviam ouvido, ao ponto de mo pedirem, pareceu-me que ele teria alguma qualidade.

Uma pessoa houve que me perguntou: – Quem é que escreveu o texto? Perante os elogios que tinha ouvido, à defesa, respondi-lhe: – Foi o meu Pai. Retorquiu-me ela: – Bem me parecia que tinha sido ele!…

Na apresentação do livro “O Ato Médico é uma Empreitada?” que ocorreu no Auditório do Museu Grão Vasco, em Viseu, quando cheguei fui surpreendido com a presença, à porta, de um Sr. Juiz Conselheiro, do Supremo Tribunal de Justiça, que tinha vindo, propositadamente, de Coimbra, para me dar um abraço de parabéns. Quando acabo de agradecer a amabilidade daquele Sr. Juiz, sinto uma mão no meu ombro, era um Sr. Prof. da Faculdade de Direito que também tinha vindo propositadamente de Coimbra para me dar os parabéns e um abraço. Entro dentro do auditório e dou com uma sala completamente cheia: familiares, amigos, colegas, juízes, procuradores, médicos, eu sei lá, um mar de gente. Pouco depois, quando estou junto da mesa onde iriam ser proferidas as intervenções, vi à porta um ex-Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra.

Disse para comigo, mas que raio fiz eu para merecer tanta consideração, tamanho carinho? Será que estarei à altura de responder condignamente a tão grande reconhecimento?

Confesso que as pernas começaram a tremer.

Não estava a contar com aquela adesão à iniciativa e senti o peso da responsabilidade cair sobre mim.

A Drª Teresa Adão, representante da editora, Edições Esgotadas, disse que eu deveria ter sido o único autor que ela tinha conhecido que passou pelo seu livro e não parou para pegar nele, para o ver, abrir e cheirar.

É verdade. Foi exatamente isso que aconteceu. Os nervos eram tantos que eu nem dei conta que ali, à entrada, numa mesa, estava a ser vendido aquele meu livro.

Dito isto, convenhamos, eu não sou um “escritor”!

Serei um “rabiscador” de reflexões sobre temáticas de Direito, que fiz plasmar em livro.

Ser-se Escritor é incomensuravelmente muito mais do que isso. É conhecer-se de fio a pavio, por se ter lido e estudado, a literatura clássica e a contemporânea, é dominar-se a fonética e fonologia, a ortografia, a morfologia, a sintaxe, as figuras de linguagem, a pontuação, isto é, a gramática da língua portuguesa, que se tem de saber na ponta da língua.

Ora, eu estou longe de ter tamanhos predicados.

Contento-me se reconhecerem que o que escrevo não ofende a língua pátria e tem valia técnica.

 

PJ – Por falar em livros e em leitura, acredita que a sociedade em geral dá a devida importância ao setor da cultura?

JCG – O meu Partido, o Partido Comunista Português, há muito que luta para que sejam canalizados para a Cultura 1% do Orçamento de Estado. 1%!…

Para tapar os buracos da má gestão dos bancos há sempre dinheiro. Para a cultura, nem 1% do orçamento.

Houve um oficial das forças hitlerianas que disse que sempre que ouvia falar de cultura lhe apetecia tirar a arma do coldre. Ao que parece Bolsonaro não quererá assinar o Decreto que atribui a Chico Buarque o Prémio Camões 2019.

O mundo vive hoje um perigoso recrudescimento de movimentos de extrema-direita, racistas, xenófoba, no fundo, fascista. Nalguns países esses movimentos já são poder.

Um jovem licenciado em Direito, por uma Universidade Pública, contava-me, não há muito, que havia colegas que questionavam a admissibilidade de acesso do PCP à Assembleia da República.

Nas redes sociais tenho visto gente, que tenho por bem formada, a tecer juízos laudatórios ao candidato eleito da CMTV.

Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, muito má gente a dizer que fascismo e comunismo é a mesma coisa….

A história está a ser reescrita. Logo a seguir ao fim da II Guerra Mundial a maioria dos franceses afirmava que o fim do nazi-fascismo se devia à intervenção da URSS. Hoje a maioria dos franceses diz que foram as forças aliadas dos EUA, Canadá e Reino Unido.

A Comunicação Social portuguesa diz que os manifestantes na Venezuela são pela democracia e os do Equador são desordeiros.

A Cultura é a melhor arma para defender o frágil cravo da democracia, e por isso os poderes de facto, do capital, que efetivamente controlam os poderes de direito em Portugal, e os órgãos de comunicação social, que pagam, não querem que sejam dados apoios à Cultura, pois bem sabem que quanto mais culto for um povo, mais dificilmente se deixará enganar.

 

PJ – Ao longo da sua vida, o Dr. João Carlos Gralheiro tem abraçado inúmeros projetos. Quer falar-nos de algum projeto já realizado que não tenha sido aqui lembrado ou de outros que estejam para acontecer a curto ou médio prazo?

Dos projetos que abracei e que aqui não foram, ainda, falados, o mais importante foi, sem dúvida, o Teatro.

Com 14 anos pisei, pela 1ª vez, o tabuado de um palco, fazendo o papel de Charlie Chaplin, numa peça do Dramaturgo comunista Espanhol, assassinado pelos esbirros fascistas de Franco, Frederico Garcia Lorca: A Sapateira Prodigiosa.

A última vez que representei foi na Quinta da Comenda, em Arcozelo, há um ano, se a memória não me atraiçoa. O Cénico levou à cena um antigo espetáculo seu, “A Revolta de Arcozelo”, um texto de meu Pai, por ele encenado.

Não sei se alguma vez fui um Ator, mas confesso que tentei não desmerecer o público que nos ia ver, e os outros atores e demais técnicos que compunham a companhia.

Guardo como grandes momentos de realização artística a minha participação nos espetáculos “Onde Vaz Luís?” e “Canto da Terra”, este em conjunto com o Grupo Vozes de Manhouce e o Rancho Folclórico de Manhouce. Ambos os espetáculos tinham textos de meu Pai, que também os encenou.

Fiz rádio, quer no Centro Experimental de Rádio, da Associação Académica de Coimbra, bem como, na altura das rádios piratas, na Rádio Livre e Internacional (aqui, enquanto num qualquer quarto de uma qualquer casa da Alta de Coimbra uma equipa fazia rádio, havia mais dois ou três que vigiavam o exterior contra eventuais surtidas da polícia) e, por fim, na Rádio Lafões e na Rádio Vouzela.

Tive uma crónica no Jornal do Centro e na Gazeta da Beira.

Integrei, com os meus Amigos João Cerveira e José Roque, o “Palavrares”, que organizou uma série de palestras sobre temas variados, nas quais participaram oradores de indiscutível mérito intelectual.

Quanto ao “projeto” político, os eleitores disseram-me, de forma clara, que gostavam mais de me ver como Advogado.

A curto prazo o meu projeto é continuar a fazer aquilo que sei: ser Advogado.

A médio prazo, é reformar-me!…

Não para deixar de trabalhar, mas para ver se consigo fazer outras coisas que gosto, designadamente ler e passear.

Acontece que não faço a menor ideia quando é que me poderei reformar e, quando tal acontecer, se a segurança social dos advogados tem dinheiro para pagar a minha reforma, e, tendo, qual o valor líquido que irei receber, para saber se ele é bastante para tentar fazer essas outras coisas …

Como acredito que alguma ou todas as premissas poderão vir a não se verificar, continuarei a advogar … pois bem sei que não sou elegível para um “tacho” e, se o fosse, não o aceitaria….

 

PJ – Que outras paixões nutre que o completam enquanto pessoa?

JCG – A paixão, posso-a ver como uma emoção, logo, como algo que integra o nosso ADN, não sendo por isso adquirível, embora histórico-socio-culturalmente moldável.

A paixão é uma das vertentes do nosso instinto vital, na senda da busca da Felicidade.

É com paixão que o recém-nascido busca a mama da mãe, procurando o leite materno que lhe dará vida, vida saudável, mas também lhe dará prazer: Felicidade.

Neste permanente percurso na busca da Felicidade, cada tempo tem as suas formas de afirmação e de alcançar esse fim desejado.

Se estivesse no divã de um psicanalista talvez pudéssemos ter horas de conversa.

Como não é isso que acontece, e o arrazoado já vai longo, para cansaço de quem conseguiu levar a sua leitura até aqui, digamos que bons livros, boas companhias e uma democracia republicana, laica e socialista (não xoxialista!…).

 

PJ – Imagine a sua vida sem o Direito e a escrita, como seria?

JCG – Seria outra, mas seria vida, naturalmente.

O Homem tem essa maravilhosa competência da resiliência, que lhe abre portas para se adaptar a novas realidades e nelas desenvolver as suas capacidades. 

 

PJ – Apenas numa palavra, pode descrever-se?

JCG – Só um tolo é juiz de si mesmo. Mas ao que costumadamente me é dito, serei confiável.

 

PJ – Para fechar esta entrevista, o que me diz o seu coração?

JCG – Até agora, diz-me que está bem, com os aurículos, ventrículos e demais músculo cardíaco a funcionar como deve ser, e ao ritmo correto.

Não foram os porcos que andam de bicicleta e até tocam campainha, com os quais os Advogados são confrontados de quando em vez, o que, quando acontece, faz muito mal ao coração, pois que são obrigados a explicar aos clientes o que para eles é inexplicável e surge inesperadamente, ao arrepio de tudo quanto sabem sobre bicicletas, campainhas e porcos, não fora isso, repete-se, o que, confessadamente, já não é pouco, diria que o coração está bom e recomenda-se.

A minha Filha mais nova andava a chatear-me pois eu não tinha “barriga” e ela dizia que um homem sem barriga é um homem sem história.

Para lhe fazer a vontade deixei de executar muito do exercício físico que costumava fazer e a “barriga” acabou por aparecer.

Quando a minha Filha mais velha deu por isso insultou-me de barrigudo sedentário.

Como os Pais têm de fazer o que as Filhas querem arranjei um meio-termo e comecei a fazer yoga, que também faz bem ao coração.

E sobre coração fiquemo-nos por aqui….

 

PJ – Quero, em meu nome pessoal e em nome da Gazeta da Beira, dizer-lhe que foi uma enorme honra, Dr. João Carlos Gralheiro! Desejo-lhe a continuação de um excelente trabalho e MUITO OBRIGADA! Peço-lhe que deixe uma mensagem a todos os nossos leitores.

JCG – Duas:

1 – Que nunca, em circunstância alguma, desistam de lutar por aquilo que acreditam, pois que embora nem todas as lutas terminem em conquistas, as conquistas não se obtêm sem luta. E depois das lutas que redundam em conquistas, seguem-se as que visam a consolidação e melhoramento das mesmas, num percurso sem fim em busca da Felicidade, tudo isto, numa vida que são apenas 3 dias e, quando se finda: “memento homine quia pulvis es et in pulverem reverteris” (lembra-te, homem, que és pó e em pó te tornarás);

2 – Manter sempre a humildade crítica de reconhecer que não se sabe tudo, e a férrea vontade de querer saber, sempre, mais. Parafraseando Vladimir Ilyich Ulyanov (Lenin): “Aprender, aprender sempre”.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *