Entrevista a Celeste Almeida

“Gente Que Ousa Fazer”

• Paula Jorge

A rubrica “Gente Que Ousa Fazer “será assente numa entrevista a alguém que tenha algo válido no seu percurso de vida. Gente que sabe o que quer e, acima de tudo, que luta por aquilo que quer. As entrevistas serão sempre encaminhadas de forma a mostrar o lado melhor que há em cada um de nós e, dentro do possível, ousar surpreender o leitor. Serão entrevistas com a marca das nossas gentes, da região Viseu Dão Lafões, de todos os quadrantes e faixas etárias. Vamos a isso!

 

Ficha Biográfica

Nome: Maria Celeste de Jesus Fernandes Almeida

Idade: 64 anos

Profissão: Professora

Livro preferido: A Bíblia

Destino de sonho: Jerusalém

Personalidade que admira: Madre Teresa de Calcutá e Nelson Mandela entre outras da atualidade, tal como o Santo Padre

 

Paula Jorge (PJ) – Muito obrigada, Celeste Almeida, por mostrar disponibilidade para esta entrevista da rubrica “Gente Que Ousa Fazer”. Comecemos pelo princípio.

Pode descrever o seu percurso profissional?

Celeste Almeida (CA) – Como qualquer criança, frequentei a escola primária na minha aldeia, Canedo do Chão, freguesia de Mangualde. Vivi muito da minha juventude  no então sistema vigente, o Estado Novo, o que deixou marcas no corpo e na alma. Tenho bem vivas as memórias do quotidiano dos portugueses nos anos sessenta  e setenta.  A esperança que o povo português teve com o desaparecimento do Salazar na década de sessenta, desvaneceu-se de imediato. Politicamente, acreditou-se numa abertura de regime, a chamada “primavera marcelista”, mas esta expectativa de mudança não se concretizou. Isto tudo, para  falar no sistema de ensino  no meu tempo de criança. Turmas com sessenta ou mais alunos, manuais escolares únicos, aprendizagem conseguida pela força da memorização de conteúdos, da humilhação, intimidação e castigos corporais. Assim, foi o meu percurso como aluna. Feita a quarta classe, agradeço a meus pais a oportunidade que me deram de continuar os estudos. Frequentei o colégio de S. José e Santa Maria em Mangualde. Para ir para o colégio, diariamente, andava seis quilómetros a pé, debaixo de chuva ou sol, pois não existiam transportes públicos. Continuei os meus estudos até realizar o meu grande sonho: ser professora. Tirei o curso, no então Magistério Primário em Viseu, atualmente,  Escola Superior de Educação. Foi aqui que eu pude gritar, juntamente com todos os meus colegas, Viva a Liberdade! Aqui, desatámos amarras e demos voz às convicções pelo regime ditatorial silenciadas. Alguns anos mais tarde e porque fui sempre uma mulher de desafios, tendo predileção pelos mais exigentes, matriculei-me no Instituto de Educação e Trabalho no Porto, onde tirei uma licenciatura.

 

PJ – A Celeste Almeida tem já uma obra feita. Como começou esta paixão pela escrita?

CA – Desde que comecei a escrever, senti que as letras eram as flores dos meus dedos. A lousa era o meu jardim. Um jardim que eu renovava a cada momento. Muitas vezes, com as mangas apaguei para reescrever. Cadernos não tinha, daí os meus primeiros escritos não existirem. Nos meus tempos livres, fazia textos sobre a minha professora primária, sobre meus pais, meus irmãos e registava vivências agradáveis ou mesmo tristes. A lousa era a minha confidente. A ela contava os meus medos e os meus segredos. Era o baú da minha liberdade de pensamento, já que a liberdade de expressão era limitada por leis que nos condicionavam.  Mas, um dia, a lousa partiu… e tudo que ela ouviu se calou. Nada ficou, mas ficou uma paixão  férrea  pela escrita.

 

PJ – Pode falar-nos do seu percurso ao nível da escrita enunciando os seus livros?

CA – Enquanto exerci a minha função docente, usava o meu “dote” para os alunos. Escrevi imensos textos, contos, peças de teatro no domínio da aprendizagem, tendo sempre o cuidado de despertar o gosto,  aos meus meninos, pela escrita e leitura.  Desenvolvi  nas salas de aula, a escrita colaborativa, dando às crianças estratégias criativas. Dedicava, uma vez por semana, uma tarde para  criarmos produções textuais. Era uma forma lúdica – pedagógica que incentivava  os meninos nesta dimensão de aprendizagem, de cariz descritivo, narrativo  e interpretativo.

Depois que me aposentei, pude dar mais tempo à minha criação literária. Comecei por participar em antologias e coletâneas. Digamos que foi  o meu “motor de arranque”. Perdi-lhes o conto, mas mais de meia centena de livros tem a minha co-autoria.  No ano de 2015 surge o meu primeiro livro “As Nossas Raízes o Passado e o Presente”, no ano de 2017 o meu segundo “A Alma de um Povo” e em 2018 o livro de poesia “Silêncios de Espuma”. Nos dois primeiros inspirei-me na relação de proximidade que há entre  mim e o  Povo do Montemuro. Este  Povo é meu mestre e as minhas palavras são pedras alisadas no rio Paiva que dão voz a tantos silêncios. Silêncios das gentes oprimidas pela ditadura política e que com o suor do rosto sobreviveram e lutaram por uma vida melhor. O livro “A Alma de um Povo” espelha  uma geração passada e mantém viva a sua memória com o legado que nos deixou.  A morte os levou, mas o  que é do chão da serra, não subiu às estrelas. Ficou nesta obra que manterá para sempre vivas as estórias mais inexplicáveis, fascinantes e maravilhosas.  Estórias que se perderiam no tempo, porque as pessoas mais idosas da serra do Montemuro não são eternas. Tenho a certeza que levariam com elas este espólio tão rico, se eu não o perpetuasse nesta obra. Ao Povo o que é do Povo é o lema da minha escrita.

 

PJ – Quais os temas que mais gosta de abordar quando escreve e quais os géneros literários que mais gosta de escrever?

CA – Tal como acabei de afirmar, vagueio à procura das gentes simples, humildes e genuínas do Montemuro.  Gosto de pegar numa enxada e ir descobrir na terra lavrada o que tantas vezes lá foi enterrado. As lágrimas que regaram as sementeiras, o pó que lavou tantos rostos, os calos que desbravaram caminhos virgens, mas também as canções e as rezas  que secaram dores. A minha fonte de inspiração encontro-a nas fontes de água cristalina, onde bebo a magia desta serra que desde o ano de 1975 me prendeu com  tanto amor e carinho.  Posso dizer que este chão e estas gentes vivem em mim e, sem elas,  eu não teria o ar que respiro. Nada sou… sou aquilo que me deixarem ser, mas sinto um orgulho imenso, ter levado à CMTV, à SIC, à RTP, à TVI, à Kuriacos TV e a muitas estações da Rádio do país, o concelho de Castro Daire, graças ao livro “A Alma de um Povo”.

 

PJ – Gosta de ler? Considera importante ler para se escrever bem?

CA – Sempre gostei de ler. Recordo, quando jovem, repetir a leitura de alguns livros, como por exemplo o “Amor de Perdição” porque não tinha acesso a outros. Eram tempos de censura e até os livros eram “racionados”.  Ninguém pode escrever sem antes ser  leitor. A leitura atravessa fronteiras e leva-nos a descobrir novos universos sem sair do mesmo lugar.  Um leitor assíduo percorre novos trilhos que contribuem para o crescimento e expansão dos seus  conhecimentos. É com a leitura que desenvolvemos o nosso sentido crítico que  permite analisar de forma racional os factos que acontecem à nossa volta. Para quem escreve, a leitura dá a conhecer novas palavras e novos termos que enriquecem o vocabulário. Em poucas palavras, concluímos que a  escrita melhora à medida que desenvolvemos o hábito da leitura.

 

PJ – Faz também dois programas na Rádio, um na Rádio Lafões e outro na Rádio Limite. Há quantos anos colabora com estas Rádios locais?

CA – Tenho várias paixões. Aliás, sou uma mulher apaixonada pela vida. Ser professora foi a minha paixão maior. Uma função difícil, mas muito apaixonante. E quando o que fazemos tem como principal ingrediente a paixão, tudo acontece. A paixão pela escrita anda, no fundo, de mãos dadas com a paixão pela  Rádio. Ambas libertam as minhas emoções, os meus sentimentos, os meus  sossegos e desassossegos, os meus amores e desamores. Fazer rádio é criar laços entre as pessoas, o que é verdadeiramente maravilhoso. Sempre que falo nesta caixinha mágica, sinto que meu coração está ligado a um número incontável de corações. Os ouvintes chegam até mim, tal como eu chego até eles, e os laços ligam-se pelos afetos.  Os ouvintes, para mim, são a minha maior família, porque não preciso de parentesco para me identificar com alguém. Não preciso ser da família para amar e ser amada. Esta é a magia da rádio. Na Rádio Limite comecei no princípio dos anos noventa com algumas interrupções pelo meio e na Rádio Lafões, impulsionada pelo meu amigo Fernando Morgado e acarinhada pelo diretor Paulo Fernando, sou colaboradora há dois anos. Tanto numa estação radiofónica como na outra, os meus programas são culturais. Abordo diversos temas: cultura e sabedoria popular, factos históricos, património… enfim, sou um emissor de conhecimentos, de sentires, saberes e sabores.

 

PJ – Qual o sentimento que a domina quando faz um programa de Rádio, sabendo que chega a tantos ouvintes?

CA – Quando me sento e me projeto para o mundo, é uma sensação indescritível. Sei que me estou a dar, mas também sei que muito estou a receber. A rádio é um elo de ligação que desempenha um papel fundamental entre as pessoas. A rádio fala e tenho a certeza que sempre que alguém me ouve, envolve-se comigo e interagimos, através da emocionalidade das palavras.

 

PJ – Muitas histórias terá guardadas durante todo o seu percurso de vida, quer ao nível da Rádio, quer ao nível da escrita. Quer partilhar connosco uma das histórias que mais a marcou?

CA – Não chegaria todo o jornal para falar de vivências marcantes. Mas, vou contar uma que nunca me cansarei de a dar a conhecer. No ano de 1975 dava eu aulas em Pimeirô, uma das aldeias montemuranas, onde a existência do nada enchia o coração das pessoas. Quando as pessoas matavam o porco, faziam questão de me dar sempre algo e ai de mim que recusasse! As pessoas ficavam tristes e bastava dizerem-me “a senhora professora tem nojo“ para eu pegar, de imediato, naquilo que eu sabia estar a fazer falta a quem me dava. Nesta aldeia, havia uma família, mais pobre que outras de grande pobreza. Nada tinham, nem o porquinho para matarem. Um dia, o Adérito, meu aluno, apareceu-me na escola com uma dúzia de ovos. Conhecendo eu, a fome que passavam,  fiz de tudo para que o menino levasse os ovos para casa. À minha insistência a criança chorou e eu aceitei para lhe ver um sorriso ténue no rosto. No dia seguinte, encontro a mãe, a dona Madalena e agradeci-lhe os ovos. “Senhora professora, eu nem galinhas tenho, como lhe podia dar os ovos! Já sei o que aconteceu! O meu filho foi roubar os ovos  que estavam a chocar no galinheiro da vizinha! Ela disse-me que a raposa lhos tinha comido!” Conversei com o “meu” Adérito e chorei abraçada a ele, ouvindo as suas palavras. “Senhora professora, os outros meninos têm alguma coisa para lhe dar e eu nada tenho…”. Que coração de professora consegue ter palavras no momento? Eu não! Tive sim, um enorme abraço que dei àquele menino! Só passados alguns dias, lhe fiz ver que ele tinha agido mal…

 

PJ – Que lições tirou desta marcante experiência?

CA – Com este menino, eu reforcei a ideia que já tinha: eu tinha encontrado no povo da serra, as pessoas mais maravilhosas do mundo. Pessoas que eram felizes sem nada e mesmo esse nada partilhavam com coração. Gente que agradecia a Deus todos os dias, o pão que não tinham na mesa, os socos que não tinham para os pés descalços, o azeite que não tinham para a luz da candeia… Mas, agradeciam o pão nosso de cada dia, todas as  noites, à volta da mesa vazia! Hoje, há famílias que tanto têm e mesmo assim, ainda tiram o sol dos outros!

 

PJ – Tem algum ritual que faça antes de entrar num direto de Rádio?

CA – Sim, tenho, um ritual de fé e oração que guardo para mim. Um ritual que só Deus conhece e com Deus, em momento algum, me senti sozinha. Faço-o nos programas da rádio e em todos os momentos que precisem da ajuda e colaboração divina. Divulgá-lo, seria perder a força divinal que este ritual exerce em mim.

 

PJ – Quer falar-nos de algum projeto, ao nível de escrita, em que esteja envolvida?

CA – Em parceria com a escritora Dulci Ferreira andamos a escrever um livro sobre as bandas filarmónicas do concelho de Castro Daire. “Memórias daqui e de além-mar” é meu outro projeto. Este já poderia estar terminado, mas escolhi fixar-me num outro tipo  de escrita, a escrita infanto-juvenil  que precisa de  ser atraente  para atrair o interesse deste público tão exigente.  O primeiro desta trilogia já está na chancela da “Lugar da  Palavra Editora” a ser ilustrado e brevemente será dado a conhecer.

 

PJ – Sei que muito em breve vai ter uma apresentação de um dos seus livros em Penalva do Castelo. Pode falar-nos dessa apresentação?

CA – Ir a Penalva do Castelo é, no fundo, o continuar a caminhada do livro “A Alma de um Povo”. Apesar de dois anos se passarem desde o lançamento desta obra, ela continua a ser solicitado nas escolas, em lares , em associações  e em vários concelhos. Depois do evento na papelaria Adrião em Mangualde, recentemente, vamos em maio à biblioteca municipal de Penalva do Castelo dar a conhecer estórias de outro tempo, estórias de bruxas, lobisomens, diabos…etc, contadas pelas pessoas mais idosas da serra do Montemuro. Foi esta recolha que deu corpo ao livro “A Alma de um Povo”.

 

PJ – Acredita que a sociedade dá a devida importância ao setor da cultura?

CA – A cultura perdeu-se nos livros que se não leem, ou nos idosos que se não ouvem. Causas? Seria um bom tema para uma mesa redonda num dos meus programas da rádio! Vou pensar nisso e desde já fica convidada para ser uma das intervenientes.

 

PJ – Para além da escrita e da rádio, que outras paixões nutre, que a completam enquanto pessoa?

CA – Como sabe, o Povo é o meu património. E falar do Povo é falar da nossa matriz e identidade. O folclore é um conjunto de manifestações de cultura popular que as pessoas passam de geração em geração. Sendo eu uma preservadora do legado que os nossos antepassados nos deixaram, não poderia distanciar-me destas expressões culturais populares que englobam aspetos da nossa identidade. Fui há 23 anos convidada para ser presidente do Rancho Flores da Aldeia de Mosteirô e, até hoje, me mantenho, tudo fazendo, para juntamente com um grupo de pessoas darmos  vida a  esta associação  e com o nosso empenho e dedicação sermos  a força que a movimenta. O rancho Flores da Aldeia de Mosteirô é, talvez, o meu maior orgulho!

 

PJ – Imagine a sua vida sem a escrita e sem a rádio, como seria?

CA – Não seria! Sem a escrita, sem a rádio e sem o “meu” rancho eu não seria, pois não me vejo existir sem estas três árvores que me dão o ar que respiro.

 

PJ – Apenas numa palavra, pode descrever-se?

CA – Uma palavra? Dê-me duas, por favor! “Sou nada e tudo!”- Eu explico: sou nada, porque o meu eu isolado de tudo e de todos não existiria, sou tudo… porque, com Deus, no meu nada, tudo sou!

 

PJ – Para fechar esta entrevista, o que me diz o seu coração?

CA – O que diz o meu coração? – Vou responder-lhe citando Charles Chaplin, “a vida é maravilhosa se não se tem medo dela”. Então, saibamos viver, mas semeando o amor para podermos colher outro amor ainda maior.

 

PJ – Quero, em meu nome pessoal e em nome da Gazeta da Beira, dizer-lhe que foi uma enorme honra, Celeste Almeida! Desejo-lhe a continuação de um excelente trabalho e MUITO OBRIGADA!

Peço-lhe que deixe uma mensagem breve a todos os nossos leitores.

CA – O que posso deixar aos leitores do Gazeta da Beira? – Estamos a preparar-nos para vivermos o espírito pascal. Então, sejamos capazes de seguir o exemplo de Jesus Cristo: saber amar incondicionalmente, aceitando as diferenças que nos tornam todos iguais. A todos vocês, deixo os meus votos de uma Santa e Feliz Páscoa e que Jesus Cristo Ressuscitado nos dê sabedoria para crescermos em perfeição!

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