Entrevista a António Bica

“Gente Que Ousa Fazer”

 • Paula Jorge

Olá! Estarei convosco para responder a mais um desafio. Espero não vos desiludir.

A rubrica “Gente Que Ousa Fazer “será assente numa entrevista a alguém que tenha algo válido no seu percurso de vida. Gente que sabe o que quer e, acima de tudo, que luta por aquilo que quer. As entrevistas serão sempre encaminhadas de forma a mostrar o lado melhor que há em cada um de nós e, dentro do possível, ousar surpreender o leitor. Serão entrevistas com a marca das nossas gentes, da região Viseu Dão Lafões, de todos os quadrantes e faixas etárias. Vamos a isso!

 

Ficha Biográfica

Nome: António Bica

Idade: 81 anos

Profissão: advogado

 

Livro preferido: Destaco o D. Quixote de la Mancha de Miguel Cervantes contemporâneo do nosso grande épico Luís de Camões, embora mais novo cerca de 25 anos. Mas gostaria de ler todos os livros que foram e continuam a ser publicados, embora seja impossível lê-los todos. Os que posso sempre li e vou lendo.

 

Destino de sonho: Todos os lugares do mundo, que todos têm o seu encanto, em primeiro lugar Portugal com a Madeira e os Açores, que é o país onde nasci e vivo, sendo parte de mim.

 

Personalidade que admira: Das vivas nenhuma, que só depois de cada um morrer se sabe se as suas virtudes não foram apagadas pelos seus erros.

A nível universal das que morreram destaco Fidel Castro, que liderou com inteligência, ousadia e êxito a emancipação política e económica de Cuba dos EUA em 1959.

Em 1898 os EUA obrigaram-se a respeitar a independência e soberania de Cuba, que pouco antes se emancipara da Espanha.

Pouco depois, em 1903, os EUA forçaram Cuba a arrendar-lhes a Baia de Guantânamo, com 117 km2 de superfície, na costa norte da ilha, para instalar aí a conhecida base naval americana transformada em prisão, que aí se mantém. O arrendamento, pela renda de 4.085 dólares, só cessa quando os EUA entenderem.

Mas continuam com vontade de voltar a subjugar Cuba como fizeram desde os finais do século 19 até 1959, mais de meio século. Logo depois atribuíram-se o direito de tutelar o governo cubano, o que fizeram até ao ditador Fulgêncio Batista , que governou Cuba às ordens dos EUA, vindo a ser derrubado pela insurreição popular cubana de 1959 dirigida por pouco mais de uma dezena de patriotas comandados por Fidel Castro.

Os EUA continuam a querer recuperar a tutela sobre o governo cubano, como tiveram durante mais de meio século.

 

A nível da minha família admiro e admirei muitos e muitas, destacando a minha mãe pela inteligência, sensatez, solidariedade e respeito em relação a todos, incluindo pelos animais.

 

Paula Jorge (PJ) – Muito obrigada, Dr. António Bica, por mostrar disponibilidade para esta entrevista da rubrica “Gente Que Ousa Fazer”. Comecemos pelo princípio.

Pode descrever-nos o seu percurso académico?

 

António Bica (AB) – Vou alargar-me para além do académico, que se a escola é muito importante, o que se vive é muito mais, se se está nela com todos os sentidos abertos e espírito de boa vontade em relação a todas as pessoas e a todos os seres vivos.

Fiz a instrução primária em Paços de Vilharigues, terra que dá continuidade ao povoado pré-romano instalado no cimo do monte conhecido por Cabeço do Castro. Nasci aí, na Touça, tendo entrado para a escola das Lombas em Outubro de 1945. Depois de a ter acabado, em 1949, a minha mãe, que o meu pai já tinha morrido, decidiu, pouco depois, mandar-me para o Liceu de Viseu, apesar do baixo rendimento da pequena exploração agrícola que ela e os meus irmãos asseguravam. Por isso só em 1950 vim a fazer o exame de admissão ao liceu. Nesse ano iniciei o ensino secundário, que continuei até ao 7º ano, equivalente hoje ao 12º ano, no Liceu Nacional de Viseu. Concluí-o em 1957. Matriculei-me então na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que estava instalada no Campo de Santana.

Por dificuldade económica da minha família para suportar as despesas de alojamento e refeições em Lisboa ingressei na Força Aérea como aluno cadete piloto aviador, com o soldo de 600 escudos mensais, depois de superar, em dezembro de 1957, os necessários e exigentes exames físicos e psicológicos. Iniciei, em Fevereiro de 1958, no aeródromo militar de S. Jacinto, em Aveiro, aulas teóricas e práticas de pilotagem do avião de hélice Shipmunk. Foi nesse aeródromo que comecei a pilotar sozinho um avião. Não resisti, poucos dias depois, a sobrevoar a aldeia onde nasci, durante um voo de treino sem o instrutor.

No verão desse ano prossegui, na Base Aérea de Sintra, além das aulas teóricas as práticas de pilotagem no avião, também de hélice, Harvard T6. Concluí o curso de pilotagem de aviões de hélice no verão de 1960, tendo sido promovido a aspirante piloto aviador miliciano com o soldo correspondente, que era bem melhor. Na segunda metade desse ano, porque a Força Aérea Portuguesa tinha, pouco antes, decidido equipar-se com aviões a jato, fui para a Base Aérea de Tancos para fazer a adaptação aos aviões a jato, tendo começado a tripular, como aluno, o avião a jato T33. Foi meu instrutor o capitão Humberto Delgado, filho do candidato, em 1958, a Presidente da República, general Umberto Delgado. Em setembro desse ano de 1960, na sequência de forte gripe, adoeci com tuberculose pulmonar. No fim de 1960 fui mandado para o Grande Sanatório do Caramulo para tratar a tuberculose. Em agosto de 1961 fui considerado curado e passado ao regime de convalescença no domicílio, mantendo o meu soldo de aspirante a oficial. Matriculei-me então na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sem encargos para a minha família. Decorrido um ano de convalescença, em 1962, com o primeiro ano de direito concluído, fui chamado a fazer médicos exames para verificar se estava fisicamente apto a prosseguir a pilotagem dos aviões a jato.

Na conferência médica final fui declarado curado. Os médicos alertaram-me para a forte probabilidade de, em vez de voltar à Base Aérea de Tancos para concluir adaptação aos aviões a jato, ser enviado para Angola a pilotar os aviões a hélice Harvard T6, que eram os usados em missões de bombardeamento. Deram-me a possibilidade de optar por ser declarado incapaz, não indo, nesse caso, para a guerra.

Tinha começado, em fevereiro de 1961, a guerra em Angola contra a sua população, que queria tornar-se independente, guerra com que não concordava. A política salazarista de resistência ao reconhecimento do direito à independência dos povos colonizados contrariava a Carta da Nações Unidas de 26 de junho de 1945, que no seus capítulos XI e XII tornou imperativo internacional promover o autogoverno dos povos submetidos a regime colonial, como era o caso de Angola e das outras colónias portuguesas, que foram mascaradas de províncias depois da aprovação da Carta das Nações Unidas. Após breve reflexão decidi: Prefiro ser declarado incapaz e deixar a Força Aérea.

Durante algum tempo, frequentei a Faculdade de Direito de Coimbra em regime de não assistência às aulas. Depois fui combinando esse regime com trabalho a tempo parcial em Coimbra e depois na direcção da Cooperativa Agrícola de Lafões, até concluir a licenciatura em 1967.

O meu trabalho na Cooperativa Agrícola de Lafões foi o mais desafiante que tive. Tinha então 27 anos. A avicultura de tipo industrial havia surgido em Portugal na região de Besteiros (Tondela) por volta do fim da década de 1940 e início da de 1950. O italiano casado com portuguesa do Campo de Besteiros, Eng. Morelli, adoeceu em Itália de tuberculose e veio tratar-se no Caramulo.

Trabalhara, no fim da Segunda Grande Guerra, na produção de ovos de ovos de galinhas poedeiras na Itália, segundo método industrial, ao serviço dos Americanos que haviam ocupado o país em 1943 na guerra contra os Alemães nazis.   Em Besteiros (Tondela) o Eng.Morelli usou os seus conhecimentos de avicultura industrial, dando origem à avicultura em Portugal segundo esse método. Criou galinhas poedeiras em pequeno aviário, compondo ele a ração. A separação das fêmeas para produção de ovos era então feita quando os machos, crescendo, se distinguiam das fêmeas. Os machos, depois de criados eram vendidos como frangos para carne, sendo sobproduto avícola. Em poucos anos os pequenos agricultores de Besteiros seguiram o exemplo o exemplo do Eng. Morelli.

De Besteiros a avicultura de tipo industrial passou para o outro lado do Caramulo, entrando Lafões pelo fim da década de 1950, e depois em outras regiões do país. Assim surgiram pequenos aviários para produção de ovos e o pequeno comércio de venda de pintos e de rações (que eram inicialmente comprados em Besteiros). Esse pequeno comércio também adquiria os ovos e os frangos.

Em Oliveira de Frades, onde a população mais modesta tomara gosto pelo comércio, vendendo pelas aldeias o peixe chegado da bei mar pelo caminho de ferro do Vale do Vouga, surgiram pequenos comerciantes ligados à avicultura. Num deles, Carlos Alberto, com estabelecimento perto do Tribunal, começou a vida profissional, como motorista, o seu empregado, Manuel Almeida, que veio a ser industrial do ramo e presidente da Câmara de Oliveira de Frades depois do 25 de Abril de 1974.

Diversos pequenos agricultores procuraram então, na região de Lafões, ganhar dinheiro com a avicultura, em pequenos aviários de 250 a 500 galinhas. Era bom complemento para a pequena agricultura, que, para se fazer avicultura, não era preciso ter muita terra nem trabalho árduo, embora sendo exigente em cuidado. Se fosse bem gerida a actividade, obtinha-se rendimento modesto, mas razoável e o esterco dos aviários era útil na cultura do milho e dos pastos, substituindo os adubos comprados.

Nos anos 1963 e 1964 houve forte crise na venda dos ovos. Estudava eu em Coimbra, na Faculdade de Direito, onde também estudava o hoje advogado em Viseu, Dr. José Lopes Ribeiro, que então tinha aviário no Crasto de Campia. Como na minha casa, em Paços de Vilharigues, também se explorava pequeno aviário de 250 galinhas, decidimos convencer avicultores de Lafões (todos pequenos) a associar-se em cooperativa para comprar em conjunto rações nas fábricas, pintos nos aviários reprodutores, e vender, também em conjunto, os ovos e os frangos produzidos nos mercados de Lisboa e Porto.

A Cooperativa começou a sua actividade no início de 1965 com cerca de 60 agricultores avicultores. A primeira direcção foi composta pelo Dr. José Lopes Ribeiro, então ainda estudante, que presidiu à direcção, o Sr. José Bastos de Paredes Velhas, e o Sr. Cândido de Alcofra.

O primeiro ano de actividade, 1965, não correu bem. A Cooperativa encerrou a actividade do ano com 300 contos de prejuízo.

Por insistência do Sr. José Bastos, apesar de eu continuar a estudar em Coimbra, substituí o Dr. José Lopes Ribeiro na direcção da Cooperativa. Em vez de ler tratados ou manuais de gestão, procurei agir racionalmente e com bom senso. Pensei na maneira de pôr a estrutura comercial da Cooperativa a funcionar de modo a não haver perdas de mercadoria, a interessar os trabalhadores no trabalho que faziam, em criar controlos de execução das tarefas e evitar pedir dinheiro aos associados, porque o não tinham.

Considerei que entendendo bem cada uma das tarefas da actividade da cooperativa e ganhando o apoio dos trabalhadores que as executavam e dos associados que produziam os ovos e os frangos, conseguiria criar organização que garantisse o seu bom funcionamento.

Para isso decidi haver um único armazém para o armazenamento, que até então era disperso, das mercadorias da cooperativa, em Vouzela, na casa arrendada em frente ao então Tanque Público do Seixo, que o executivo municipal presidido pelo Prof. Paulo Figueiredo, de Vouzela, mais tarde erradamente mandou destruir. Situava-se junto à estrada da Foz, em frente do espaço onde hoje estão, em Vouzela, as instalações da GNR.

Contratei para assegurar o controlo das mercadorias em armazém o Sr. António Almeida, de Vilharigues (conhecido por António Alho), tendo-lhe dado instruções rigorosas, para todas as mercadorias serem verificadas à entrada no armazém e sempre registadas as sua saídas, devendo as entradas e as saídas ser registadas em de ficha sempre actualizada por cada tipo de mercadoria, nada saindo nem entrado no armazém sem verificação da respectiva guia de transporte ou fatura. No fim de cada dia de trabalho as mercadorias levantadas no início dele para serem entregues aos associados ou para seguir para o mercado deviam ter sido facturadas aos associados ou aos clientes e as excedentes, se houvesse, tinham que regressar ao armazém. Se alguma faltasse era debitada ao motorista do camião e descontada no ordenado. Aleatoriamente eu entrava no armazém, pedia uma ou mais das ficha das existências de mercadorias e verificava. Se houvesse faltas eram debitadas ao armazenista. Deste modo nunca mais faltaram mercadorias na cooperativa.

Além disso reunia periodicamente com os trabalhadores para conhecer as dificuldades do trabalho que faziam, ouvir as suas sugestões para se remediarem e segui-las se me parecesse serem as melhores, discutindo com eles soluções alternativas melhores até os convencer ou eles a mim da melhor solução. Se não conseguia convencer os trabalhadores da solução que eu entendia ser a melhor, sempre decidia fazer-se como eles consideravam melhor.

Procurando que os trabalhadores, cujo trabalho era principalmente transportar mercadorias para os associados e deles para os mercados, se empenhassem no seu trabalho, apurei em reunião com todos eles as quantidades médias de mercadorias normalmente transportadas em cada mês e decidiu-se que passavam a receber acréscimo ao salário correspondente ao custo líquido em trabalho por cada unidade transportada acima das quantidades médias assim estabelecidas por acordo.

O rigoroso controlo das mercadorias fez com que deixasse de haver perdas. E o prémio pelo acréscimo das quantidades transportadas no mesmo período de tempo fez aumentar a produtividade em 50%. Como a Cooperativa estava a ter cada vez mais associados, este acréscimo de produtividade evitou a compra de um camião em cada 3 que seria necessário ter com o sistema anterior de salário sem prémio, evitando-se também a contratação de pessoal (motorista e ajudante) para esse camião assim dispensado. Como se estava em período de grande crescimento da Cooperativa, evitou-se a compra de alguns camiões.

Antes desse prémio passar a ser dado, aos motoristas e aos ajudantes agradavam os tempos livres que tinham quando os camiões tinham que ser postos nas oficinas da vila para mudar pneus, óleo e outros trabalhos de manutenção. Pouco depois de o prémio ter sido criado os trabalhadores sugeriram que houvesse na Cooperativa oficina mecânica a abrir ao meio-dia e fechar pelas 11 horas da noite para não perderem tempo com as paragens dos camiões em manutenção. Queriam poder deixar os camiões no fim do dia de trabalho para no dia seguinte de manhã poderem trabalhar. Essa função de mecânico de manutenção dos meios de transporte foi durante muitos anos exercida pelo Senhor Torres, bem conhecido em Vouzela.

Além do controlo rigoroso das mercadorias comercializadas na Cooperativa, fazia aleatória e pessoalmente a conferência do cofre por onde passavam os registos de todos os pagamentos e recebimentos.

Como regra não se pagavam refeições mediante factura (para evitar fraudes), pagando-se, em vez disso, montante acordado em reunião com os trabalhadores a quem tivesse que se deslocar em trabalho a distância superior a 50 km, e instalou-se na sede da Cooperativa bomba de gasóleo em que os camiões se abasteciam (também para evitar fraudes). Passou-se a fazer isso depois de ter verificado ser frequente empregados de restaurantes e das bombas de venda de combustíveis perguntarem aos motoristas qual o valor que queriam que fosse posto no documento de venda, prática por vezes incentivada pelos patrões para fidelizar o cliente.

O cofre da Cooperativa, onde se guardavam os documentos do caixa, era também aleatoriamente conferido por mim, sendo debitadas ao responsável as falhas, se houvesse, não me recordando de terem acontecido.

Com a gestão assim feita a Cooperativa acumulou reservas suficientes para alargar as instalações a oficina na sua sede, nas Chãs, em terreno comprado ao Sr. Manuel Vitória, que foi Carteiro de Vouzela, tendo-se mandado fazer nele, para isso, os edifícios onde hoje funciona a Escola Profissional de Vouzela. O mecânico contratado foi o Sr. Torres, de Vouzela.

Quanto ao financiamento dos investimentos a fazer pela Cooperativa não foi necessário sobrecarregar os associados. A ração era comprada à CUF que a vendia com crédito de 90 dias. Era tempo suficiente para fornecer também a crédito os associados as rações e os pintos e fazer os investimentos necessários, que eram amortizados anualmente por valores prudentes.

Pouco depois de a Cooperativa ter começado a ter actividade os pintos passaram a ser separados por sexos à nascença. Assim, em consequência do melhoramento genético das aves, e da evolução dos métodos de identificação dos sexos, imediatamente depois da eclosão dos ovos, dos pintos comprados resultavam só galinhas poedeiras, ou só frangos de carne.

Os frangos destinados a carne criavam-se então em 60 dias. Assim, com o crédito de 90 dias na compra de ração, passou, com a eficiência dos trabalhadores e a eliminação de perdas de mercadorias, a deixar de ser preciso que os associados pagassem à Cooperativa os pintos e a ração, compensando esse crédito com a entrega, que era obrigatória, dos seus produtos (ovos e frangos) à Cooperativa, que os comercializava nos mercados de Lisboa e do Porto.

Os preços creditados aos associados pelos frangos e pelos ovos entregues eram fixados anualmente pela Assembleia Geral da Cooperativa de modo a compensar, embora modestamente, os preços de custo da produção. No fim de cada ano, encerradas as contas da Cooperativa e feitas amortizações prudentes dos investimentos e as provisões para investimento, distribuía-se o excedente por cada associado em função das quantidades de frangos e ovos entregues na Cooperativa para comercialização. E também se debitavam os prejuízos do ano na comercialização dos frangos e dos ovos, se o ano tivesse corrido mal nos mercados, o que por vezes acontecia.

Só para os poucos produtores menos cuidadosos na criação dos frangos ou das galinhas poedeiras é que o crédito feito com as entregas de frangos ou ovos que faziam não chegava para cobrir o crédito em rações e pintos que lhes era feito.

Procurava-se que a Cooperativa entregasse dinheiro aos associados, não que estes o entregassem à Cooperativa.

A Cooperativa Agrícola de Lafões foi exemplo de que o trabalho eficiente (conseguido com o empenhamento dos trabalhadores) e a gestão sensata em organização de economia social bem estruturada e bem gerida pode beneficiar os pequenos agricultores nela integrados e os trabalhadores que nela trabalham.

A boa gestão da Cooperativa fez evoluir os pequenos comerciantes de Lafões ligados à avicultura, que vieram (na maioria) a agrupar-se na UNIÁVILA, em Oliveira de Frades.

O desenvolvimento da avicultura desde o início da década de 1960 até ao 25 de Abril contribuiu para que os pequenos agricultores mais activos na região vivessem melhor, não tendo tido por isso a emigração para a França e a Alemanha o forte peso social que teve em outras regiões do interior do país.

A Cooperativa cresceu em número de associados (no fim de 1973 eram cerca de 350) e em área (tendo passado a abranger agricultores (para além da região de Lafões) dos concelhos de Castro Daire, de Viseu, de Vila Nova de Paiva, de Tondela e de Santa Comba Dão). A Cooperativa tornou-se empresa de notável relevo no distrito de Viseu e das que pagavam melhores salários. Os seus trabalhadores empenhavam-se na execução das tarefas e eram por isso melhor remunerados do que os de empresas semelhantes, Porque os trabalhadores sempre se empregam para ganhar o mais possível, cabendo a quem dirige organizar, coordenar e fiscalizar inteligentemente o trabalho de modo a satisfazer ambas as partes: A empresa que quer o máximo de trabalho feito e bem tem que pagar aos seus trabalhadores bons salários.

Depois de consolidada a reorganização da Cooperativa na segunda metade da década de 1960, de construída a primeira fase das novas instalações nas Chãs, junto ao Campo de Futebol de Vouzela, e de iniciada a sua expansão para os concelhos vizinhos de Lafões, entraram na direcção dela dois jovens técnicos agrícolas, o Eng. João Maia, de Oliveira de Frades, e o Eng. Manuel Gusmão, a viver em Viseu.

Iniciou-se então o abate de frangos em instalações adaptadas nas Chãs com destino ao mercado da beira-mar até ao Porto, e a classificação de ovos para o de Lisboa, onde já se vendiam, pagando-se a classificação a terceiros.

As boas perspectivas de desenvolvimento da Cooperativa baseadas no empenho e na produtividade dos seus trabalhadores e no grande número dos associados exigiam novo passo em frente, passando-se à produção de pintos do dia para carne, à construção de instalações para classificação de ovos e o seu armazenamento em frio, de fábrica de rações para fornecer os associados sobretudo para assegurar a sua constante boa qualidade, e à edificação de matadouro mecanizado para frangos e galinhas equipado com armazenamento frigorífico.

Para isso, pelo fim da década de 1960, adquiriram-se terrenos: a Quinta de Asneiros, entre Fataunços e Vouzela; terreno de cerca de 10.000 m2 no Faraz, entre Vilharigues e a Touça; e 7 lotes de terreno na Penoita (Ventosa) para construção de 6 conjuntos de aviários para galinhas reprodutoras distanciados entre eles para evitar contágio de doenças e de um centro de incubação dos ovos.

Por essa altura havia-se constituído a União de Cooperativas Agrícolas, a Uniagri, em Macieira de Cambra (Vale de Cambra) com fábrica de rações para as cooperativas associadas e matadouro projectado, que eram de interesse para a Cooperativa.

Optou-se por negociar a adesão a ela na condição de em Lafões serem construídos centro de reprodução de pintos com incubação, centro de classificação e armazenamento de ovos e de se garantir o controlo técnico da fábrica de rações pelo Eng. Manuel Gusmão da Cooperativa para se assegurar a sua boa qualidade. Passou-se, nessas condições, a integrar a direcção da União, para que fui eleito.

Iniciou-se essa colaboração em 1970, sendo a ração produzida na fábrica da Uniagri destinada na maior parte à Cooperativa Agrícola de Lafões.

Avançou-se entretanto em Lafões com a construção pela Uniagri do complexo de reprodução de pintos na Penoita, do Centro de Classificação e Refrigeração de Ovos no Faraz (Vilharigues) e iniciou-se a construção do Matadouro em Macieira de Cambra, em que a Cooperativa projectava abater os frangos dos seus associados destinados ao mercado da beira mar e do Porto.

Era então Secretário de Estado da Agricultura do governo Marcelo Caetano o Eng. Leónidas, que tinha boas relações pessoais com o Eng. Zenhas, presidente da direcção da Uniagri.

Tinha-lhe prometido financiamento a longo prazo pelo governo para os investimentos previstos para a Uniagri com boa parte a fundo perdido.

Confiado nessa promessa, apesar de não formalizada, o Eng. Zenhas defendeu que se avançasse imediatamente com as construções com base crédito bancário a curto prazo, tendo tido o apoio maioritário da direcção, embora não com o meu voto, argumentando que o financiamento público seria dado em tempo de assegurar os pagamentos aos construtores. Mas não foi o que aconteceu.

Com as dificuldades financeiras resultantes das amortizações das letras com que foram sendo pagos os construtores e dos pagamentos dos correspondentes juros, o Eng. Zenhas, presidente da direcção da Uniagri, decidiu assumir as compras das matérias primas para as rações (a fábrica de rações era então a única fonte de receitas da Uniagri) e optou por comprar as de pior qualidade, por serem mais baratas, procurando assim erradamente conseguir os meios para resolver o problema dos pagamentos à banca, prejudicando a qualidade das rações.

Como a maior parte das rações era destinada à Cooperativa Agrícola de Lafões, a consequente má qualidade passou a causar fortes prejuízos aos avicultores associados na Cooperativa. Optou-se por isso por a desligar da Uniagri e iniciar em Asneiros a construção de um matadouro.

Em 1973 o Eng. João Maia veio a deixar a Cooperativa, tendo optado por ser funcionário público. Em 1974, em consequência do 25 de Abril e de eu ter passado a exercer funções políticas no Porto, depois em Coimbra e em Lisboa, houve recomposição da direcção da Cooperativa que fez significativas alterações à sua gestão.

Depois da efémera passagem pela direcção da Cooperativa do Dr. Coelho dos Santos, passaram por ela muitos directores, entre eles, sem indicação de ordem cronológica e sem se pretender ser exaustivo, o Sr. Figueiredo, de Sul, o Sr. Fernando Ferreira da Silva, do Caramulo, o Sr. Sílvio, de Caparrosa, Sr. Delfim, do Couto de Baixo, Dr. António Afonso Carvalho, de Cambarinho, Sr. Ricardo Costa, de Mundão, Sr. Coimbra, de Tondela, Sr. Alves, de Viseu, Sr. António Garcês, de Vouzela, de novo o Sr. José Bastos, de Paredes Velhas, Sr. Emídio de Oliveira Mendes, de Mosteiro de Frágua, Sr. Acácio Carvalho, de Paços de Vilharigues, Sr. Pina, de Viseu. Alguns destes novos e efémeros directores eram grandes produtores de frangos.

Em consequência da imprevidente gestão a Cooperativa, depois de Abril de 1974, perdeu progressivamente eficiência por a produtividade ter decrescido fortemente com a eliminação dos prémios anteriormente criados em função da quantidade de trabalho feito, que haviam dado excelentes resultados no incremento da sua eficiência; por ter deixado de haver controlo exigente das tarefas e das despesas; e por os créditos feitos aos associados pelos frangos e os ovos entregues terem passado a ser significativamente superiores aos correspondentes custos de produção, o que beneficiava os directores maiores produtores, contrariando a política de créditos anteriormente seguida, sem os prejuízos anuais disso decorrentes serem sido cobrados aos associados.

Apesar de o tempo que decorreu depois de Abril de 1974 ao meio da década de 1980 ter sido o mais favorável à avicultura e em geral aos agricultores em Portugal, a Cooperativa, em consequência dos erros de gestão referidos, foi acumulando prejuízos que os directores não propuseram às assembleias gerais se repercutissem nos associados com compensação por eles desses prejuizos, talvez por muitos deles serem grandes produtores. Com a acumulação das dívidas decorrentes da errada gestão tornou-se necessário que a cooperativa recorresse ao crédito bancário, o que mais a desequilibrou.

Por isso, nos cerca de 10 anos decorridos desde Abril de 1974, a Cooperativa Agrícola de Lafões entrou em falência. O processo de liquidação judicial decorreu no Tribunal Judicial de Vouzela.

 

PJ – Neste seguimento, Dr. António Bica, fale-nos do seu trajeto profissional.

AB – Enquanto assegurei a gestão da Cooperativa Agrícola de Lafões exerci a minha profissão de advogado, tendo escritório e habitação em Oliveira de Frades, na Feira, no edifício que é hoje sede da ASSOL.

Como advogado o que considero mais marcante, durante o tempo de menos de uma década, de 1967 ao verão de 1974, foi o acompanhamento e aconselhamento da população da freguesia das Talhadas, concelho de Sever do Vouga, que em 1969 se ergueu unida contra a prepotência dos Serviços Florestais, actualmente integrados no ICNF, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

Os seus baldios, de mais de 2.000 hectares, haviam sido retirados à posse comum dos povos da freguesia pelo regime político autoritário salazarista por submissão ao regime florestal, com fundamento da lei nº 1.971 de 15 de junho de 1938.

No início do Verão de 1969 o presidente da junta de freguesia das Talhadas, no concelho de Sever do Vouga, António Afonso de Pinho, o pároco da freguesia, padre Celestino, o dono do café das Talhadas e também do carro de aluguer, António Pinto, e Silvestre Vilar, funcionário dos serviços públicos de geologia e minas, foram, pelo fim da tarde, no carro de aluguer ao meu escritório de advogado de Oliveira de Frades para falar sobre a vontade dos habitantes da freguesia das Talhadas de recuperar os baldios ocupados pelos Serviços Florestais na década de 1940 contra a vontade do povo. A escolha não foi ocasional. Eu era activo oposicionista ao regime de Salazar que a Pide tinha procurado, sem sucesso, isolar social e economicamente, fazendo correr na região ser comunista.

Essas pessoas chegaram antes do advogado. O presidente da junta de freguesia até à morte de Salazar, António Afonso de Pinho, integrava o partido único, União Nacional, e depois passou a integrar o novo partido único de Marcelo Caetano, o novo chefe do governo, a Acção Nacional Popular.

Decidiu, com os que o acompanhavam, falar com o advogado por lhes constar opor-se ao governo. Cheguei pelo pôr do sol. Depois de inteirado do que queriam, não perdi tempo. Pus no escritório pão, vinho e queijo e todos foram acalmando a fome e conversando sobre as razões da vinda.

Relataram a chegada dos Serviços Florestais, na década de 1940, aos baldios da freguesia das Talhadas, com mais de 300 famílias, quase todas a viver da agricultura de subsistência. Com esforçado trabalho cada família tirava da pouca terra que trabalhava quase tudo o que precisava para viver. A área cultivada, que era quase toda de regadio, variava entre cerca de 5.000 e 30.000 metros quadrados. Era lavrada por uma ou duas juntas de vacas, que produziam cerca de 0,8 crias por ano e por animal para serem vendidas ao desmame, com cerca de 6 meses de idade, para as cidades mais próximas, sendo o restante trabalho feito à mão. Da terra saía quase tudo o que se consumia: o milho para ser moído nas ribeiras próximas e com a farinha se fazer o pão para a casa, se criar os porcos e as galinhas. O rebanho de ovelhas e cabras pastava os matos dos baldios e dos terrenos de monte particulares. Da lã das ovelhas, depois de fiada, era tecido o burel da roupa exterior e as mantas de cama. As crias eram vendidas ou destinadas às raras refeições de festa ou dos trabalhos em que era precisa a cooperação dos vizinhos, como as ceifas e as malhas do centeio.

Todos os anos se semeava linho para, depois de tirada a baganha, ser alagado em água corrente dos ribeiros, depois de seco ser maçado, a seguir estrigado a separar as fibras da madeira do caule a formar estrigas, mais tarde fiadas as estrigas junto à lareira nas longas noites de inverno, depois tecido no tear de cada casa para fazer a roupa interior e de cama e os sacos para o milho e a farinha.

Os Serviços Florestais chegaram sem anúncio. Ninguém falou com a população sobre a sua entrada nos baldios da freguesia. Fizeram a demarcação do que passaram a chamar Perímetro Florestal. Os marcos foram postos até onde acabava o baldio, junto às casas das aldeias e sem respeitar os terrenos particulares existentes no interior do baldio, parte deles cultivados e com água de rega, outra parte semeada a pinhal por diversos moradores, desde antes de 1940, com consentimento da junta de freguesia segundo o antigo costume de cada morador poder ter árvores no terreno baldio, sendo dele as árvores, mas continuando o terreno a ser baldio. O ocuparam-nos como se não tivessem dono.

Foram muitos os abusos na demarcação do Perímetro Florestal. Mandava então no Perímetro Florestal, que incluía os baldios das Talhadas e de outras freguesias, o Eng. Delgado que não atendia as reclamações que lhe eram feitas nem pelos moradores das aldeias da freguesia nem pela junta de freguesia. Quando mandou pôr estacas a limitar o Perímetro Florestal à volta da povoação das Arcas só atendeu a reclamação da família de Graciete Ferreira, da Silveira, como declararam os moradores das Arcas, Joaquim Bastos, Bernardino Martins dos Santos, porque era criada dele. Na vizinha aldeia do Ladário, no concelho de Oliveira de Frades, foi posto marco do Perímetro Florestal a poucos metros de uma das casas da aldeia, estando presente o morador Cipriano Capela. Indignado quis opor-se à implantação do marco, do que foi dissuadido por morador mais velho: “Capela, és novo e tens filhos para criar, não te metas em encrencas.”

Nos terrenos particulares dentro do Perímetro Florestal, contra a vontade dos seus donos, foram construídas as casas para residência dos guardas dos Serviços Florestais. A casa do guarda de Santa Maria, Talhadas, foi feita em terreno de Joaquim Bastos, das Arcas. A casa do guarda florestal de Doninhas em terrenos de Lucinda Ferreira Duarte, Joaquim Ferreira da Cal, Augusto Nunes Ladeira e Avelino Veiga. De nada valeram os seus protestos.

Com a ocupação dos baldios das Talhadas e de outras freguesias vizinhas pelos Serviços Florestais, como o Préstimo (concelho de Águeda), Cedrim (Sever do Vouga), Arcozelo das Maias (Oliveira de Frades) e muitas outras, os donos dos gados foram proibidos de os pastorear nos baldios sob pena de pesadas multas. Em consequência tiveram os gados que ser vendidos com perda dos rendimentos que obtinham com a venda das crias e da lã das ovelhas, que eram parte significativa da sua economia. Essa perda foi agravada com a ocupação dos terrenos particulares agricultados no interior do Perímetro Florestal e a proibição do uso para rega das nascentes existentes nesses terrenos e no baldio, o que reduziu os rendimentos dos agricultores.

 

PJ – A reivindicação por escrito dos baldios das Talhadas foi em 3 de Novembro de 1970, assinada por todo o povo e enviada ao chefe do governo, Prof. Marcelo Caetano.

AB – O governador civil de Aveiro de então, Vale Guimarães, entendeu que o povo estava determinado e, ou por indicação do governo, ou por sua iniciativa, evitou a repressão violenta que seria inevitável se Salazar ainda governasse. Aos Serviços Florestais da região, dirigidos pelo Eng. Leitão, foi recomendado que deviam tomar medidas tendentes a satisfazer um pouco do reivindicado. A junta de freguesia das Talhadas insistiu na entrega imediata da parte do baldio, cerca de 300 hectares, prometida para uso exclusivo dos moradores. Mas o Eng. Leitão arrastou a entrega com pretextos múltiplos.

Com o acordo do advogado e o apoio do povo a junta de freguesia insistiu no seu direito, limpando com retroescavadora o mato à volta dos 300 hectares de baldio a afirmar o direito de uso dele. O Eng. Leitão não teve outra saída senão comparecer no local para de fixarem estacas onde seriam postos os marcos delimitadores dos 300 hectares. Assim o povo das Talhadas venceu uma das suas reivindicações e não esqueceu o mais reivindicado.

 

PJ – A reivindicação dos povos das Talhadas em novembro de 1970 foram seguidas pelos povos das freguesias do Préstimo em julho de 1971, do Candal em novembro de 1972, de Cabreiros em maio de 1973, de Albergaria das Cabras em junho de 1973.

AB – Em 25 de Abril de 1974, com a insurreição das Forças Armadas para pôr fim ao regime salazarista colonialista que impunham aos seus militares a guerra colonial nas três frentes (Guiné, Angola e Moçambique) e sem fim previsível, foram criadas as condições políticas e sociais para generalizadamente os povos espoliados da posse dos seus baldios , como legítimos possuidores deles, a sua devolução.

Para expressar essa vontade, reuniram-se em Sever do Vouga, 11 em Agosto de 1974, comissões eleitas para reivindicar a recuperação do uso dos baldios usurpados pelos Serviços Florestais. Nessa reunião foi aprovado e enviado ao governo texto reivindicativo que concluiu:

– Os baldios ocupados pelos Serviços Florestais e todo o pais deverão ser restituídos à administração das juntas de freguesia em cuja área se situam.

– Devem igualmente ser restituídas à administração das juntas de freguesia as áreas de terreno que foram baldio até há menos de 50 anos, pelo menos até 28 de Maio de 1926, e que foram adquiridos posteriormente por particulares por ocupação, por arrematação, ou por qualquer outra forma, mas por processos que hajam impedido a generalidade do povo de concorrer a essa aquisição. Deverá estabelecer-se presunção de que as áreas contínuas superiores a pelo menos 5 hectares estão nessas condições. Deverão todavia ser restituídas as quantias efectivamente pagas pelos actuais donos dessas áreas, com direito a compensação pela desvalorização da moeda.

– As ocupações de terrenos baldios feitas até pelo menos ao 25 de Abril por parte dos moradores das freguesias com respeito pelos conceitos de justiça e de equidade das populações interessadas deverão ser legalizadas e tituladas pelas respectivas juntas de freguesia.

– Deverá ser promulgada legislação que defina as normas básicas a que deve obedecer o povoamento florestal, o regime de cortes e obrigatoriedade de plantação, replantação ou sementeira das áreas que devem ser cultivadas com floresta, devendo também as matas particulares ficar sujeitas a esse regime, estendendo-se a segurança social a toda a população agrícola, visto muitas vezes as matas funcionarem como reserva de capital para tratamento de possíveis doenças graves.

– Deve ao mesmo tempo proceder-se ao ordenamento da ocupação florestal do país, quer relativamente aos terrenos colectivos, quer em relação aos privados.

– Os serviços florestais devem ser reorganizados com saneamento dos seus quadros que hajam cometido flagrantes injustiças, de modo que passem a ter apenas funções técnicas. Deverão ter em especial a seu cargo a investigação florestal, o estudo e a planificação da prevenção contra fogos, a manutenção de viveiros e campos de recolha de semente, o estudo das medidas a tomar para a conservação da flora e da fauna naturais e para a conservação do equilíbrio ecológico.

– Deve ser criado serviço nacional coordenado de combate aos fogos florestais com base nos corpos de bombeiros voluntários, nos cidadãos a prestar serviço militar e nas populações das áreas florestais.

– Há que converter o actual corpo de guardas florestais em corpo de guardas de montes, rios e incultos para a protecção da caça, da pesca, das florestas e de todas as espécies de fauna e flora protegidos por lei, quer relativamente aos terrenos particulares quer aos colectivos, devendo ainda competir-lhe o serviço de detecção e alerta contra fogos em todos os terrenos florestais, quer colectivos quer particulares.

23 de Agosto de 1974

Em consequência desta luta, em 19 de janeiro de 1976, foi publicado o decreto lei nº 39/76 que devolveu o uso, a fruição e a administração dos baldios aos povos que sempre os possuíram em comum, esse o decreto lei e a lei 68/93 designaram “compartes” e pela lei dos baldios actual, lei 75/2017 de 17/8, designados mais correctamente “comunidades locais”.

 

PJ – Em 1975 desempenhou o cargo de Secretário de Estado da Reestruturação Agrária. Como foi assumir estas funções?

AB – Sobre esse assunto haveria que ser longo para que os leitores da Gazeta da Beira tivessem informação suficiente. Mas há que abreviar muito:

Em 26 de Março de 1975 tomou posse o quarto governo provisório mantendo-se o general Vasco Gonçalves como primeiro-ministro. O Prof. Fernando Oliveira Baptista foi nomeado ministro da Agricultura, o Prof. Agostinho Carvalho secretário de Estado da Estruturação Agrária e o Eng. Agr. Henrique Seabra Secretário de Estado da Agricultura.

Pouco depois, em 15 de Abril de 1975, foi publicado o D.L. 203-C/75 de 15/4 com normas programáticas do Conselho da Revolução visando superar a “deficiente utilização da capacidade produtiva do país”, reconstruir a “economia por uma via de transição para o socialismo”, consolidar “os primeiros passos concretos da nossa revolução socialista” com “novos avanços nessa direcção”. Entre essas normas programáticas constam as relativas ao “Programa da Reforma Agrária”.

No cumprimento delas o ministério da Agricultura, de que foi técnico jurista o Dr. Alberto Costa, mais tarde ministro e depois deputado do PS, promoveu legislação com medidas possibilitadoras de Reforma Agrária em Portugal:

Em 23 de Maio de 1975 foi publicado o D.L. 251/75 sobre crédito agrícola de emergência para os pequenos e médios agricultores, os exploradores directos da terra com o seu trabalho ou de familiares não remunerados. O crédito destinava-se a financiar “serviços de preparação da terra, aquisição de fertilizantes e correctivos, sementes e propágulos, pesticidas, rações e pequenos equipamentos indispensáveis à boa produtividade da exploração”.

Previa-se na lei o crédito ser concedido pela banca nacionalizada depois do 25 de Abril através das comissões liquidatárias dos grémios da lavoura e das cooperativas agrícolas, como mutuárias, que fossem indicadas ao Banco de Portugal pelo IRA (Instituto de Reorganização Agrária criado por transformação da Junta de Colonização Interna) dependente funcionalmente do secretário de Estado da Estruturação Agrária.

Os grémios da lavoura haviam sido extintos em 25 de Setembro de 1974 pelo D.L. 482/74 que os declarou extintos e as suas federações. A iniciativa para a sua extinção partira do advogado António Bica, que a propôs em 1974 ao secretário de Estado do Trabalho Dr. Carlos Carvalhas. A extinção efectivava-se por despacho dos ministros do Trabalho e da Economia com transferência, caso a caso, das respectivas funções para entidades existentes ou a criar, e dos seus activos, passivos, demais direitos, obrigações e trabalhadores.

O estudo e a promoção dessa acção foram cometidos a comissão coordenadora a nomear pelos mesmos ministros, que foi pouco depois nomeada e logo entrou em funções, tendo-as exercido nas instalações do ministério do Trabalho. A comissão coordenadora para a extinção dos grémios da lavoura e das suas federações foi integrada pelo referido advogado, o eng. Blasco Hugo Fernandes, o eng. Agostinho Pinto Cardoso e mais um ou dois membros, tendo ela nomeado as comissões de extinção de cada um desses organismos, acompanhado a respectiva actividade, e proposto aos ministros o despacho de extinção de cada organismo. Desse despacho resultava a passagem para organização cooperativa já anteriormente existente ou entretanto criada na área geográfica correspondente das respectivas funções dos trabalhadores, do património e de todos os demais direitos e obrigações dos organismos corporativos da lavoura por ele extintos.

A organização cooperativa da agricultura foi desse modo significativamente reforçada com o processo adoptado para a extinção da organização corporativa da lavoura. A estrutura cooperativa de recolha, industrialização e comercialização de leite foi muito desenvolvida sobretudo com a transferência das correspondentes funções para as uniões de cooperativas leiteiras de Entre Douro e Minho e da Beira Litoral.

Com base neste condições então já criadas, embora seu só tenha exercido o cargo de Secretário de Estado para a Reestruração Agrária de meados de Sembro de 1975 a meados de janeiro de 1976, pouco depois da acção militar de direita em 25 de Novembro de 1975, foi possível dar aos trabalhadores agrícolas assalariados o apoio necessário para, de cerca de 300.000 hectares a ser cultivados por eles em Setembro de 1975, se terem passado para cerca de 1.100.000 hectares por eles cultivados em meados de janeiro de 1976.

Pouco depois o Ministério da Agricultura passou a ser controlado pelo Partido Socialista, que assumiu o objectivo de desmantelar a Reforma Agrária, que os governos do PSD e do CDS concluíram.

 

PJ – Muitas histórias terá guardadas durante todo o seu percurso profissional.

Quer partilhar connosco aquela que mais o marcou?

AB – Com a minha actividade política procurei contribuir para que os trabalhadores agrícolas das regiões do latifúndio acedessem à cultura, pelas suas mãos, das muito grandes propriedades agrícolas, tendo passado a administrar mais de um milhão de hectares desde o fim do ano de 1976, que depois foram progressivamente perdendo até ao fim da década de 1990. Foi luta com êxito breve. Cerca de 25 anos depois toda a grande propriedade agrícola e florestal do país foi devolvida aos anteriores donos das grandes propriedades expropriadas.

Antes dessa luta, como vai acima referido, procurei com êxito, desde 1969, contribuir para que os baldios do país, cuja área é de cerca de 500.000 hectares, de que o regime autoritário salazarista tinha expulsado os pequenos agricultores que os possuíam comunitariamente, tivessem regressado à posse comunitária dos povos a que sempre pertenceram. Esta luta foi em grande parte conseguida apesar de o ICNF, que integra os antigos Serviços Florestais a que o salazarismo entregara os baldios, continuar a resistir a que os povos passem a assumir plenamente a gestão dos seus baldios. É tarefa política que não pode abrandar. Espero que os mais novos continuem essa luta.

 

PJ – Publicou sob o nome Bernardo Figueiredo “Cada noite a Manhã” a primeira edição de “Os Dias e as Sombras” “Baldios Quadro Histórico e Legal” e o “Controlo dos Cidadãos pelo Grande Capital”, entre outros.

Quais os sentimentos que o dominam quando escreve? Como se revê nesta faceta de escritor?

AB – Escrevo para transmitir aos outros o que penso e sinto. “Os dias e as Sombras” são histórias do Portugal rural da primeira metade do século 20 em que nasci e em boa parte vivi. Ouvi-as aos mais velhos na aldeia onde nasci, à volta da lareira, nas longas noites de inverno, e, mais tarde, a outras pessoas. Dei-lhes o título que o livro tem para evidenciar que nas vidas humanas quase sempre convivem os lados luminosos com os escuros.

Em “Cada Noite a Manhã” procurei recriar a história de uma mulher, Xarazade, que, corajosa, inteligente e de coração macio, assumiu com êxito a luta pela salvação das mulheres do seu país, no distante Médio Oriente, contando sempre nova história, durante mil e uma noites, para que o seu rei, que frequentemente se casava, deixasse de mandar matar cada uma das mulheres na manhã seguinte a ter-se casado. São histórias de sabedoria de vida património da Humanidade criadas sobretudo no Médio Oriente.

De “Baldios Quadro Histórico e Legal” consta a história dos baldios desde tempos anteriores à independência de Portugal, com as lutas dos pequenos agricultores pela sua defesa contra a avidez dos mais ricos que sempre os cobiçaram. Defendiam-nos, porque precisavam deles para pastorear os seus gados, para roçar mato e para conduzir as águas neles nascidas para os seus campos.

No “Controlo dos Cidadãos elo Grande Capital” procurei racionalizar a eterna luta dos humanos pela igualdade, o progresso e a justiça. É longa luta que vai continuar por largo tempo.

 

PJ – O Dr. António Bica foi também director da Gazeta da Beira. Como foi assumir esse cargo e durante quantos anos.

AB – Comprei o capital da sociedade editora da Gazeta da Beira nos fins da década de 1980 para ter voz escrita em Lafões. Uma amiga minha passou, por isso, a chamá-la “Corneta de Beira”. Cerca de 10 anos depois passei-a à Maria do Carmo Bica, minha sobrinha. Não foi difícil administra-la. Obrigou-me a escrever muitos dos textos publicados quase sempre sob pseudónimos. Não era feita censura aos textos que os leitores mandavam para publicação, desde que com o escrito não se cometesse ilegalidade.

 

PJ – Por falar em livros e em leitura, acredita que a sociedade em geral dá a devida importância ao setor da cultura?

AB – O conceito de cultura é vasto. Não se resume a ler livros e outros escritos, a ouvi-los, a escrevê-los; a ouvir, produzir e compor música; a desenhar e pintar; a conceber edificações e paisagens e construí-las; a viajar pelo mundo para o conhecer e aprender com o que assim se conhece.

Cultura é sobretudo a construção de sempre mais harmonioso relacionamento com todos os outros humanos e os demais seres vivos, para o que poderosamente contribui a relação ter boa qualidade estética. Integrando nós a comunidade universal da vida, o mau, deficiente e desarmonioso relacionamento com qualquer um dos seres humanos e dos outras seres é, em bom rigor, também auto-agressão. A construção da cultura, tal como a entendo, é trabalho nunca acabado.

 

PJ – Ao longo da sua vida, o Dr. António Bica tem abraçado inúmeros projetos. Quer falar-nos de algum projeto já realizado que não tenha sido aqui lembrado ou de outros que estejam para acontecer a curto ou médio prazo?

AB – A minha mais recente luta é convencer os políticos e a população urbana do país de que o fim da pequena agricultura de subsistência é devida ao desaparecimento dos que sempre viveram dela muito pobremente desde antes do princípio da nacionalidade, senão antes. Foram obrigados a abandonar as suas terras para viverem melhor, sendo para isso forçados a emigrar para além dos Pirinéus. A esse abandono seguiu-se a venda do gado que pastoreava as serras e assim as mantinha limpas de mato. O mato que o gado não pastava era roçado para ser curtido nos curais e depois, com ele, se fertilizar as terras de lavoura. A isto seguiu-se o encerramento de serviços públicos essenciais em quase todos os concelhos do interior norte e centro, como escolas, porque cada vez nasciam menos crianças, serviços de saúde, porque, com a emigração, cada vez havia menos gente, serviços postais, tribunais e outros pela mesma razão.

O flagelo dos fogos nos terrenos a mato e a arvoredo florestal só pode ser combatido eficazmente se se atacar na sua origem, que foi a fuga dos que viviam pobremente da pequeno agricultura de subsistência no centro e norte do país.

Para isso é preciso criar polos de desenvolvimento empresarial distribuídos pelo centro e norte interior capazes de atrair pequenas e médias empresas que ofereçam trabalho aos jovens aí nascidos e aos que quiserem para aí ir viver e trabalhar. Esses polos de desenvolvimento têm que ser dotados com serviços públicos tão bons como os dos centros urbanos.

Os terrenos já anteriormente a mato, os espaços agrícolas que passaram a mato, os terrenos a arvoredo florestal, todos os terrenos que, antes da grande emigração para fora das regiões do minifúndio do norte e centro do país, estavam ou cultivados ou limpos de mato, porque os pequenos agricultores pastoreavam neles os seus gados e o roçavam para os currais do gado e depois fertilizar as terras .

Com a emigração para além dos Pirinéus a partir do início da década de 1960, esses terrenos tonaram-se selva cada vez mais percorrida por javalis, onde a vegetação arbustiva e herbácea cresce sem controlo economicamente viável, que periodicamente são pasto de incêndios ocasionais ou intencionais, que queimam toda a vegetação, a fauna que nela vive e têm feito morrer pessoas em consequência desses fogos .

Para assegurar a limpeza desses largos espaços por acções economicamente viáveis há que criar adequados estímulos económicos ao seu pastoreio extensivo por gado ruminante, sobretudo cabras e ovelhas, confinando-o com cercas adequadas de modo facilitar o maneio.

O Governo e a Assembleia da República, que são integrados por gente que nasceu no cimento e no alcatrão dos centros urbanos, que desconhece o meio rural, tem dado prioridade ao combate direto ao fogo. Embora esse combate tenha que ser feito, a solução adequada é organizar a economia desses espaços rurais de modo que da sua organização económica resulte o controlo do desenvolvimento da vegetação arbustiva e da herbácea nos terrenos a mato e a arvoredo florestal, para que haja cada vez menor número de fogos, e os que surgirem sejam facilmente combatidos.

 

PJ – Que outras paixões nutre que o completam enquanto pessoa?

AB – Não tenho outros assuntos que me ocupem tão empenhadamente como os que vão referidos me ocuparam e ainda ocupam.

 

PJ – Imagine a sua vida sem o Direito e a escrita, como seria?

AB – O direito continua a ocupar-me, sobretudo no que respeita aos baldios, procurando, porque já tenho 81 anos, evitar a barra dos tribunais. Quanto à escrita continuo a escrever, actividade em que as modernas tecnologias electrónicas ajudam muito. Do que tenho escrito projecto publicar parte. Veremos.

 

PJ – Apenas numa palavra, pode descrever-se?

AB – Uma palavra só não chega, talvez poucas mais: Sou quem se interroga sobre o que está atrás do Céu.

 

PJ – Para fechar esta entrevista, o que me diz o seu coração?

AB – Que quero morrer como sempre tenho procurado viver: atento, modestamente, sem medo.

 

PJ – Quero, em meu nome pessoal e em nome da Gazeta da Beira, dizer-lhe que foi uma enorme honra, Dr. António Bica! Desejo-lhe a continuação de um excelente trabalho e MUITO OBRIGADA! Peço-lhe que deixe uma mensagem a todos os nossos leitores.

AB – Que cada um nós sempre pense pela sua cabeça e não pela dos outros, sem deixar de os ouvir, procurando sempre reflectir para reduzir as possibilidades de erro, lembrando-se do ensinamento dos clássicos romanos: “errare humanum est” (errar é humano); e do que está escrito no evangelho de S. Mateus, capítulo 15, versículo 14: Se um cego conduzir outro cego, ambos vão cair no barranco. Cegos somos todos, entendendo-se por isso, que todos sempre estamos sujeitos a errar.

Em relação a todas as pessoas há que sempre procurar agir com inteligência e espírito de boa vontade; cada um esforçando-se para contribuir para que o mundo seja melhor, pelo menos um pouco.

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