COISAS e GENTE da MINHA TERRA por Nazaré Oliveira

O DR. MARQUES GUIMARÃES - O ORFEÃO

Conheci o Dr. Marques Guimarães no início da década de 40. Era o Notário de São Pedro do Sul. Antes de ser homem de leis, era padre. E padre continuou a ser toda a vida. Não tenho conhecimento de que alguma vez tenha paroquiado uma freguesia. A única actividade que lhe conheci como padre foi a de Capelão do Hospital.

Era um homem conservador como era próprio da sua formação seminarística, com os seus complexos e tiques, gaguejava um pouco quando dava sinais de nervosismo.

O Cartório Notarial ficava na Rua Baronesa de Palme, num pequeno espaço enquadrado pela residência paroquial, tasca de comes e bebes do Zé Ratinho e a Pensão do Zé Caetano. Tinha o Notário dois ajudantes muito competentes: Manuel Neves e Luciano João Pedro; tinha ainda um terceiro funcionário, o Oliveira Pinto, de São Félix, músico exímio, que fazia gemer o violino nos espectáculos de teatro amador sampedrense, e transmitiu o seu talento musical ao neto, o professor de música José Fernando Oliveira, fundador do grupo de música tradicional Alafum.

Contava-se em São Pedro do Sul um episódio anedótico que se teria passado com o Dr. Marques Guimarães. A “estória” é conhecida e não garanto a sua veracidade. É talvez produto do humor popular concretizado no Dr. Marques Guimarães. Contemos o episódio como se com ele se tivesse passado. Um pouco de imaginação também não faz mal a ninguém. Um dia, compareceu no cartório um casal com uma filha em idade casadoira. Era gente da aldeia e de poucas letras. Iam fazer um acto notarial, talvez uma doação. Redigida a escritura, foi lida em voz alta, perante os interessados e duas testemunhas — o João Macarrão e o Vasco Badalo, “profissionais” do testemunho. Chegou o momento das assinaturas e o notário perguntou à moça: “A menina já tem o sinal aberto?” Pais e filha ficaram embatocados. Então o pai chegou-se discretamente ao Dr. Marques Guimarães e diz-lhe: “Saiba Vª Ex.ª que sim, mas o rapaz é de boa família e prometeu casar com ela”. Imagine-se a atrapalhação do bom Dr. Marques Guimarães! Esclarecidas as coisas, ultimou-se o acto e os três lá foram embora. A moça com o sinal duplamente aberto!

GRUPO ORFEÓNICO DE SÃO PEDRO DO SUL

Ficção é que não é a história do ORFEÃO. O Dr. Marques Guimarães tinha uma paixão: a música. Durante a vida académica em Coimbra, havia feito parte do Orfeão Universitário. Trouxe para o sua terra o gérmen da música coral. Motivou homens de diversas idades e fundou o GRUPO ORFEÓNICO DE SÃO PEDRO DO SUL, que ensaiou e regeu durante mais de três décadas. Ele próprio nos relata a história do Orfeão. Os primeiros ensaios fizeram-se em Ansiães, na casa da família Corte Real, então devoluta. Esta casa foi mais tarde adquirida por António Fernandes de Figueiredo e passou a ser conhecida por Casa do Figueiredo de Ansiães. Lembro-me de lá ter estado com meu avô, por volta dos anos 40. Mal pensaria eu que ali deu os primeiros vagidos o Orfeão sampedrense. Admirável o espírito de sacrifício daquele grupo de homens que, todas as noites — relata o Dr. Marques Guimarães — lá iam, à luz do candeeiro, em direcção à Negrosa, ladeando a quinta do Hospital, atravessando o regato do Reixemil, a caminho de Ansiães, onde, sempre à luz do candeeiro, se faziam os ensaios. Mas, como o local ficava longe da Vila e o caminho era incómodo, a família Moniz, sempre disposta a apoiar as manifestações culturais da terra, pela voz do seu patriarca António Cardoso Moniz, autorizou que os ensaios se fizessem na casa da Quinta da Caldeiroa, onde já ensaiava a Filarmónica. Foi por pouco tempo. Verificou-se que o espaço não era suficiente para os quatro naipes do Orfeão. Por autorização do Juiz e Delegado da Comarca, os ensaios passaram a fazer-se na sala do tribunal.

No dia 30 de Março de 1918» o Grupo Orfeónico de São Pedro do Sul apresentou-se pela primeira vez, juntamente com o Grupo Cénico ensaiado por António Nunes Sobreiro, chefe da Finanças de Concelho. O espectáculo foi no Teatro Gil Vicente, que funcionava no rés-do chão do Hotel Rodrigues, pertencente ao pai da D. Alda, que veio a ser esposa do Manuel Borges. O Teatro Gil Vicente acabou algum tempo depois, transformado em garagem e mais tarde em estabelecimento comercial. Também o Hotel Rodrigues acabou e passou a ser residência da família Borges até meados dos anos 40, altura em que tive algum convívio com esta família, devido à minha amizade com os filhos Tita e Manuel Pedro. O edifício, situado na Companhia, passou depois a ser residência e pertença do Dr. Pinho Bandeira.

Mas voltemos ao Orfeão. O espectáculo repetiu-se uma semana depois, 7 de Abril de 1918. O produto destas récitas foi para beneficência.

Passaram-se anos sem se realizarem novas récitas e o Orfeão esteve calado. Em 1926, o Dr. Marques Guimarães reuniu os “carolas” que restavam, aliciou outros e recomeçaram os ensaios. Em 8 de Março de 1927, o Orfeão, juntamente com o Grupo Cénico, voltou de novo à cena, agora no Teatro São Pedro, dois anos antes inaugurado. O programa era de luxo: Coral, de Bach; Rapsódia de Canções Transmontanas, de Pinto Ribeiro; Hino à Noite, de Beethoven; e Fuga, de Berlioz. Sobre este espectáculo, encontrei um relato pormenorizado no jornal Povo de Beira. Será objecto de futura crónica.

ORFEÃO DE SÃO PEDRO DO SUL

Depois deste espectáculo, o Orfeão calou-se de novo, até que, em 4 de Junho de 1933, voltou a ouvir-se em nova récita cujo programa hei-de publicar. Em 9 de Julho do mesmo ano, o Orfeão exibiu-se em Castro Daire. Novo silêncio de quatro anos. Em 6 de Junho de 1937, voltou ao palco, em espectáculo que se repetiu em 27 do mesmo mês. Em 4 de Julho exibiu-se nas Termas.

Grande parte destes dados foram colhidos de apontamentos do Dr. Marques Guimarães.

As minhas lembranças começam por alturas do espectáculo de 1937. Meu pai fazia parte do Orfeão e foi colaborador do Dr. Marques Guimarães, como ensaiador do grupo dos Baixos. Uma noite, levou-me ao ensaio. Tinha eu sete anos. Comecei por ficar admirado quando meu pai ensaiava os Baixos, porque alguns, como ele próprio, até eram altos. Depois, compreendi que era uma questão de tom de voz. Acabei por adormecer sentado na plateia, ao lado de alguns mirones. Acordei quando um grande coro cantava “Amen, Amen, Amen”. Julguei que estava na missa com os frades a cantar. Tomei consciência do lugar onde me encontrava e, mais tarde, vim a saber que o Orfeão cantava a Fuga de Berlioz, com que, aliás, terminava todos os espectáculos. Mas, naquela altura, sabia lá eu quem era Berlioz! Perdoe-se-me esta divagação pela minha infância e voltemos à história do Orfeão. Após o espectáculo de 1937, durante anos não houve récitas. A isso não é estranha a Guerra Mundial.

Por meados dos anos 40, o Teatro voltou a animar-se, com as récitas da Fernandinha Miranda, teatro juvenil em que também participei e hei-de desenvolver em futuras crónicas ilustradas com fotografias onde figura a juventude sampedrense da época. Depois, vieram os espectáculos ensaiados pelo Dr. Dionísio. Sobre eles também havemos de falar. O Orfeão preenchia uma boa parte dos programas. Em 3 de Maio de 1953 também actuou na Câmara Municipal, na inauguração do busto de Salazar, cantando o hino nacional. Como sempre, era dirigido pelo Dr. Marques Guimarães, sampedrense ilustre que hoje recordo nesta crónica.

Durante mais de 30 anos, DR. MARQUES GUIMARÃES e ORFEÃO, dois lados de um ângulo cujo vértice era a CULTURA MUSICAL.

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