Coisas e Gente da Minha Terra por Nazaré Oliveira

O Comboio do Vale do Vouga - O “Vouguinha”

Vindo das bordas do mar, “lá vem o comboio, lá vem a apitar”, com diz a cantiga. O rio Vouga lhe dera o nome: Linha do Vale do Vouga. De Aveiro a São Pedro do Sul, rio e comboio era um namoro pegado. Ora circundando os meandros do rio, ora correndo em paralelo ou atravessando-o pelas pontes, o comboio lá ia deslizando pelas encostas dos montes ou furando-os mesmo, sem se perderem de vista, como dois namorados ciumentos.

Ultrapassada a Ponte do Poço de Santiago, o comboio entrava na Região de Lafões, que atravessava por inteiro, parando em apeadeiros e estações. Passada a Ponte do Pego estava prestes a chegar à estação de São Pedro do Sul. O mais importante do dia era o COMBOIO DAS ONZE, que trazia os jornais e o correio. Algum tempo antes, a estação começava a sair do seu marasmo e a movimentar-se. Chegavam uns à espera de quem vem e outros para apanharem o comboio para Viseu.

No exterior, o Cantoneiro com a sua carroça tocada a mula e o Zé Roscas com o macho atrelado à traquitana, prontos para receberem a mercadoria para o comércio da Vila. Para os passageiros, a camioneta do Júlio de S. Joane, que fazia a ligação para Santa Cruz da Trapa e S. João da Serra, e a camioneta dos Guedes com ligação para Castro Daire e Lamego. Ao lado, um ou outro carro de praça. Se lá estava o Coca-Bichas, carro de Sul, era certo que no comboio vinham as duas Manas Lago, que tinham casa em Espinho. Dentro da estação, preparava-se tudo para receber o comboio. Eu e o Zé Dias íamos muitas vezes ver a chegada, porque o Zé andava a catrapiscar a azougada Irene, filha do Chefe Lopes, e eu servia de pau-de-cabeleira.

Onze menos uns minutos no grande relógio da estação e o Vouguinha — se não vinha atrasado — mostrava-se lá ao fundo, junto de Drizes. A primeira coisa que se via era a máquina, a apitar, largar fumaça e cuspir faúlhas. Ao aproximar-se, o comboio abranda a marcha, entra de mansinho, os freios gemem e a máquina pára a resfolegar como um touro cansado da lide e as carruagens, por efeitos da inércia, topam umas nas outras. E o “Vouguinha”, prenhe de gente e mercadorias, começa a despejar boa parte do seu recheio: pessoas com malas, malinhas, cestos, pacotes; o Mário Batata, ajudado pelo cauteleiro Arlindo Maneta, recebe os jornais; a carruagem do correio entrega os sacos com a correspondência e encomendas postais; cargas e descargas, com o “Número 1” (Fernando Porrinhas) a manobrar; novos passageiros entram com destino a Viseu, geralmente para uma ida ao médico ou visita a algum familiar internado no Hospital. Isto em tempos normais, porque, em tempos de Feira Franca, era uma enchente. No Domingo Franco, era preciso aumentar a composição; metia-se mais uma carruagem, as pessoa atropelavam-se para arranjar lugar e lá se encafuavam.

Mas voltemos aos tempos normais. Durante a curta paragem, era preciso preparar o comboio para o resto da viagem. A máquina precisava de recuperar forças. O fogueiro João Favais, que era sampedrense e meu vizinho, subia para uma plataforma que tinha o grande depósito da água, enfiava o cano nas goelas da máquina e enchia-lhe o bojo de água. Depois, entrava na máquina, abria a porta da fornalha e enfiava-lhe uma pazadas de carvão. Estava alimentado o bicho que havia de arrastar a composição até Viseu. Entretanto, o gordo maquinista, a brilhar de suor, desce da máquina e, com uma grande almotolia lubrifica as rodas e as bielas. Sobe para a máquina, enrola um cigarro, risca um fósforo, acende a tocha e lá fica chupando o paivante.

O Chefe Lopes, competente e cuidadoso, bandeirinha numa mão e apito na outra, depois de verificar que está tudo em ordem, dá sinal de partida. O maquinista abre as válvulas, as bielas começam a movimentar-se impulsionando  as rodas e a máquina arranca. As carruagens dão uns solavancos nos carris, a acertar o ritmo, e o comboio lá vai, ainda com pouca velocidade, porque logo a seguir é a ponte sobre o Vouga. Ultrapassada a ponte e a loja do Cristo, que está no extremo, o “Vouguinha” aumenta de velocidade. Ao passar em frente da Capela da Senhora do Lavramento, o maquinista dá duas apitadelas, a saudar a Virgem e pedir protecção para a viagem. E lá vai, Negrelos adiante, “pouca terra, pouca terra”, sempre a subir até desaparecer na longa volta de Saínhas, com paragem no apeadeiro de Real. Aí, a linha fazia uma longa curva de l80º e, cerca de 15 minutos depois, o comboio voltava a aparecer, no cimo do monte, num sentido contrário e percurso paralelo ao anterior. Chegado ao Alto, o “Vouguinha” apita: três silvos agudos repercutem pelos montes e ouvem-se por largos espaços — era a despedida de São Pedro do Sul; desaparece e lá vai para Viseu.

A minha relação com o “Vouguinha” foi intensa. Em meadas dos anos 40, um grupo de jovens sampedrenses (eu, o Graciano Figueiredo, o Custódio Rodrigues, o Paulino) andava nos estudos em Viseu. Eles frequentavam a Escola Comercial; eu, o Colégio da Via Sacra como aluno interno. Às segundas-feiras, lá estávamos para apanhar o comboio da manhã. Eles regressavam todos os dias no comboio da tarde; eu, só à sexta-feira. Um dia, na viagem de regresso, disseram-me; “ó pá, vais ver uma gaja boa que está sempre à janela a ver passar o comboio”. Quando chegámos perto de Moçâmedes, havia uma vivenda e lá estava aquela que eles chamavam uma “gaja”. Era uma linda moça loira, mais ou menos da nossa idade. Emoldurada pelos caixilhos da janela, fez-me lembrar o retrato da Gioconda dos nossos livros de História. Disse-o aos meus amigos. Que fui eu fazer! Sem querer, tinha baptizado a moça. Passaram a chamar-lhe Gioconda. Viam-na todos os dias e andavam apaixonados por ela. Era uma espécie de paixão colectiva. Eu, que só a via uma vez por semana, não lhes fiz concorrência, até porque tinha outros interesses e a minha Gioconda era outra. Recordações da adolescência!

Acabado o ensino secundário, deixei de viajar para Viseu. Mas passei a viajar em sentido inverso. Matriculei-me na Faculdade de Letras como aluno voluntário e, como tal, não era obrigado a frequentar as aulas. Mas tinha de me deslocar periodicamente a Coimbra, para exames de frequência e finais. E aí estou eu novamente a utilizar o “Vouguinha”, entre São Pedro do Sul e Aveiro, para apanhar o Rápido Porto/Lisboa.

Entretanto, ainda estudante, eu começava a minha carreira de professor no Colégio de S. Tomás de Aquino, vizinho da estação. O Colégio lá no alto e a estação em baixo, mas a pouca distância. Víamos a chegada e partida do comboio, a entrada e saída dos passageiros, a atravessar a ponte sobre o Vouga, Negrelos acima até ao Alto. Quantas vezes estávamos nas aulas e o ouvíamos apitar! Durante os quatro anos que trabalhei no Colégio, o comboio fez parte do meu quotidiano. Desse tempo há uma viagem de que guardo especial recordação: alguns alunos resolveram fazer exame final no Liceu de Aveiro. Eu fui encarregado de os acompanhar. E lá fomos no “Vouguinha”. Instalámo-nos numa pensão, com o veterano Reis, que em Aveiro tinha nascido, a servir de cicerone. Lá ficámos uma semana. Não cabem aqui algumas peripécias. O “Vouguinha” nos levou. O “Vouguinha” nos trouxe.

Em 1956, deixei São Pedro do Sul e nunca mais viajei no comboio do Vale do Vouga. Alguns anos depois, a linha encerrou. Foi com alguma emoção que recebi a notícia da morte do “Vouguinha”, onde tantas vezes viajei e de que guardo saudades!

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