Carlos Vieira e Castro

Almeida Henriques mais Papista do que o Papa

Tem gente perto demais de deus
Tem gente que não deixa deus sozinho
E diz deus ilumine seu caminho
E guarda deus na cristaleira
Cristo perto dos cristais
Cristo assim perto demais
Cristo já é um de nós
Carne e osso pão e vinho
Tem gente que não deixa deus em paz
Tem gente incapaz de viver sem deus
E o trata como um funcionário seu
Deus me livre, deus me guarde, deus me faça a feira
Cristo dentro da carteira
Dez por cento rei dos reis
Cristo um conto de réis
O garçom não a videira
Essa gente é o diabo e faz da vida de deus um inferno

(Chico César, “Perto demais de deus” ,CD “Beleza Mano”)

 

Numa recente reunião da Câmara Municipal de Viseu, os vereadores do PS (incluindo Lúcia Silva que se assume como católica praticante) propuseram a retirado do crucifixo da parede do salão nobre dos Paços do Concelho, invocando a defesa da “laicidade do Estado e a igualdade de todas as religiões, crenças e não crenças”. Almeida Henriques reagiu como se fosse um sectário da Opus Dei (não sei se é, nem me interessa nada saber) afirmando: “Eu respeito muito os valores cristãos da esmagadora maioria da população de Viseu. Enquanto for presidente da Câmara este símbolo do respeito pelos valores do cristianismo não deixará de ser espelhado (talvez fosse boa ideia um espelho com uma moldura artística na parede, digo eu…) através da manutenção do crucifíxo na parede”.

Nada que me surpreendesse, uma vez que já ouvira esta resposta há alguns meses, quando numa sessão da Assembleia Municipal Almeida Henriques afirmou que não fazia discriminações e eu  tive oportunidade de o desmentir, acusando-o de discriminar sindicatos da CGTP, como o STAL (Sindicato dos Trabalhadores da Adminstração Local), a CNIPE (Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação) e confissões religiosas minoritárias, como as várias igrejas evangélicas, a sikh (com uma pequena comunidade em Viseu) ou a islâmica (que até tem uma mesquita na nossa cidade) e de entre os exemplos que apresentei de todas essas discriminações assinalei o crucifixo na parede do Salão Nobre da Câmara.

Enquanto criança e pré-adolescente fui católico praticante. Se não se desse o caso de ter ficado vacinado com o negativo exemplo moral e cívico de três cónegos, professores de Religião e Moral Católica, ou, quem sabe, se já na adolescência não tivesse lido Bertrand Russel e outros heréticos pensadores,  por certo teria hoje dificuldade em entrar no salão nobre dos Paços do Concelho e não me persignar, nem flexionar os joelhos perante um Cristo na cruz.

Na verdade, bastaria o respeito pela Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 41º, nº 4 garante que “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado” , para

que aquele símbolo religioso não fosse ostensivamente colocado num espaço nobre de um município republicano e laico. Mas como o assunto parece suscitar ainda reacções fundamentalistas (terá sido por qualquer impulso subliminar que se adjectivou a maioria dos católicos como “esmagadora” ?…),  o melhor será ouvir a autoridade máxima da Igreja Católica, citado por Anselmo Borges, padre, teólogo, professor de Filosofia na Universidade de Coimbra e ensaísta, no artigo “Laicidade e Laicismo”, publicado no Diário de Notícias de 9.04.2016:

 

“O Papa Francisco, na visita ao Brasil, deixou uma mensagem fundamental sobre a laicidade: «A convivência pacífica entre as diferentes religiões vê-se beneficiada pela laicidade do Estado, que, sem assumir como própria nenhuma posição confessional, respeita e valoriza a presença do factor religioso na sociedade.»

“A laicidade do Estado, isto é, a sua neutralidade confessional, é essencial para garantir a liberdade religiosa de todos: ter esta ou aquela religião, não ter nenhuma, mudar de religião. Aliás, a laicidade é exigida pela própria religião. Porque confundir religião e política significa ofender a transcendência de Deus, e também porque só homens e mulheres livres podem professar de modo verdadeiramente humano uma religião.

Mas, para compreender o alcance da afirmação de Francisco, impõe-se a necessária distinção entre laicidade e laicismo. Uma distinção que, refere o teólogo José María Castillo, é reconhecida pelo Dicionário de Língua Espanhola da Real Academia Espanhola na sua última edição. O laicismo rejeita toda a influência ou presença religiosa nos indivíduos e nas instituições, públicas ou privadas. A laicidade admite esta influência, mas, atendendo a que há várias confissões religiosas, impede que o Estado aceite como própria uma só confissão e respeita-as a todas por igual. Se aceitasse alguma como própria e oficial, acabaria com a igualdade de todos os cidadãos.”

 

Percebeu, senhor presidente da Câmara? Trata-se tão só de respeitar todas as religiões, incluindo a Católica, não a aceitando como religião oficial de modo a salvaguardar a “igualdade de todos os cidadãos”, independentemente de terem uma ou outra religião,  de serem ateus ou agnósticos.

Outro distinto teólogo cristão, agraciado com a Ordem da Liberdade, o dominicano frei Bento Domingues, na conferência “Laicidade, Laicismo e Modernidade”, do Centro de reflexão Cristã, em Maio de 2008, afirmava que “quanto mais modernidade, menos religião e de um modo particular, menos cristianismo”, ou seja, “trata-se do fim do cristianismo como Poder… e isto custa mais do que arrancar os dentes todos ao mesmo tempo”, dando como exemplo o “caso dos bispos espanhóis que estão sempre a estrebuchar” por não compreenderem a modernidade e não aceitarem a separação da Igreja e do Estado. Isto mesmo disse, por diferentes palavras, outro mediático frade, o franciscano capuchinho frei Fernando Ventura, que tanto trabalha no Vaticano como percorre o mundo a ajudar comunidades pobres, em entrevista à EconomicoTV, em 5.08.2011: “A religião mal lida e mal vivida dá razão a Marx, fazendo de ópio do povo, e a Freud que disse que a religião era uma neurose colectiva”. E numa entrevista mais recente à Antena Um,  frei Fernando Ventura afirmou o que devia ser óbvio e natural para quem acredita num deus que proclamou a igualdade entre todos os seres humanos:  “Deus não tem religião!” Ora, se Deus não tem religião, por que carga de água é que o município de Viseu há-de ter religião?!

Valha-o deus, Almeida Henriques!

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