CÃO DE LOIÇA por Rui Chã Madeira

O benefício da mentira

De acordo com alguns estudos científicos, os seres humanos, dependendo da estrutura de personalidade e da quantidade de relações e interações sociais, praticam o ato de mentir entre dez a duzentas vezes por dia. Estas investigações fidedignas determinam, cabalmente, que somos, uns mais outros menos, indubitavelmente mentirosos. Na realidade, não existe ninguém que não tenha a plena consciência que mentiu e que soube que o seu interlocutor também o fez. Por vezes acontece um fenómeno ainda mais obtuso que é mentir a nós próprios como se dessa forma a verdade não fosse real.

Sempre nos foi ensinado que mentir é errado, porque para além de ocultar a transparente veracidade, podemos ferir os sentimentos dos outros e dessa forma semear a incerteza nas nossas variadas relações pessoais, seja em contexto pessoal, familiar, social ou laboral. No entanto, por muito estranho que possa parecer, fazendo uma reflexão mais cuidada sobre o assunto, mentir, se não for diagnosticado como um comportamento psicopatológico, em alguns casos pode ser interpretado como uma forma de benéfico equilíbrio psíquico entre nós e os outros e de igual forma no inverso. Se o ser humano fosse incapaz de mentir o mundo seria provavelmente um lugar muito mais cinzento e incapacitante no que diz respeito às relações pessoais e sociais. Sendo assim, ao contrário do que se supõem por intermédio dos ditames morais e éticos, mentir pode ser efetivamente benigno.

Imaginem que alguém em vez de dizer que não reparou na chamada telefónica, conta a quem realizou o telefonema que não estava com nenhuma vontade de o aturar. Idealizem a carga emocional de alguém que ouve da sua cara-metade a verdade que de facto não fica nada bem com aquela roupa, que engordou, ou que os anos deixaram irreparáveis rugas de expressão na sua face. Façam um exercício empático com alguém que acaba de receber a notícia da sua verdadeira incompetência profissional. Coloquem-se no lugar de alguém que ouviu de uma pessoa muito significativa que a relação de amizade que mantêm só existe por mero interesse.

Se dissesse-mos sempre a verdade decerto que muitas coisas não resultavam na forma mais assertiva e harmoniosa. Como é que todos nós vamos funcionar se a mentira desaparecer? Como vamos lidar com os outros e os outros connosco? Porque razão a rede social mais utilizada no mundo não tem um botão a dizer não gosto? Para terminar é importante referir que mentir sobre assuntos sérios sem controlo e descaramento é perentoriamente desprezível. Da próxima vez que me alertarem para o cheiro a tabaco na cozinha, não vou voltar a ocultar a verdade dizendo que foi porque o vizinho estava a fumar à janela e o fumo entrou pela nossa.

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