As lutas estudantis tiveram grande importância e influência nos oficiais do quadro permanente das Forças Armadas e no 25 de Abril

No 45º aniversário do 25 de Abril de 1974, a Gazeta da Beira entrevista o coronel Mário Tomé

 

Aproveitando a vinda do coronel Mário Tomé a Lafões, a Gazeta da Beira resolveu assinalar o 45º aniversário do 25 de Abril com uma entrevista a este Capitão de Abril. Ficou conhecido como “o major Tomé”, devido ao papel central que desempenhou na preparação do 25 de Abril de 1974 e em todo o processo revolucionário subsequente.

Mário Tomé frequentou a Academia Militar, tendo aí ingressado em 1957. Esteve na Guiné e em Moçambique no período compreendido entre 1963 e 1974. Nesta última colónia foi o mais destacado militar do Movimento dos Capitães.
Em 1970, requereu a demissão de oficial das Forças Armadas invocando total desacordo com a prossecução da guerra e com os motivos para ela invocados, assim como total oposição à política do Governo de Marcelo Caetano. A resposta resumiu-se, um ano depois, a um lacónico “indeferido”.
Fez parte do Movimento das Forças Armadas e foi subscritor do Documento do COPCON que confrontou o Documento dos Nove, tendo sido preso depois do golpe do 25 de Novembro como outros militares.
Libertado em 23 de Abril de 1976, ficou na situação de residência fixa até ser passado compulsivamente à reserva em 1984.
Integrou a Comissão Política da candidatura de Otelo à Presidência em 1976. Foi eleito deputado pela primeira vez em 1979, nas listas da UDP. Em 2014 foi mandatário nacional da candidatura de Marisa Matias (BE) ao Parlamento Europeu.

 

Gazeta da Beira (GB): O Mário Tomé tem ligado o 25 de Abril a um conjunto de factos históricos, não o deixando como apenas um episódio. Estamos precisamente a viver 50 anos sobre a chamada Crise Académica de 69, ou seja, 5 anos antes do 25 de Abril. Nessa Crise Académica estiveram envolvidas várias personalidades de Lafões, ou relacionadas com a região, nomeadamente Celso Cruzeiro, Manuela Cruzeiro, José Barata, Alda Pinho e Manuel Bandeira Pinho. Jaime Gralheiro participou como advogado em defesa da Academia de Coimbra. Consegue estabelecer uma relação entre as lutas estudantis e a emergência do 25 de Abril?

 

Mário Tomé (MT): Claro, e eu acrescento a esses nomes o Rui Pato e o Pais Brito. Foram dois das dezenas de estudantes que foram enquadrados no exército, depois de expulsos da Universidade, quando eu era instrutor na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, e foram justamente para o meu esquadrão.

O Pais de Brito e o Rui Pato, e outros, tiveram uma enorme influência na minha visão sobre as questões da guerra, da democracia e da luta contra a o fascismo.

Recordo a “Morte e Vida Severina” de João Cabral Melo Neto, que é uma canção extraordinária, que eles tocavam, nos exercícios de campo, à noite, à roda da fogueira. Essa e outras músicas, eram um sinal na luta pela democracia e contra a guerra colonial.

A luta contra o fascismo, a partir de determinada altura foi determinada pela luta contra a guerra colonial, onde os estudantes tiveram papel preponderante, sem excluir a luta dos trabalhadores nem o movimento social que se estava a formar ganhando peso nos confrontos com a repressão, quer nas lutas laborais quer na afirmação dos sindicatos contra o próprio regime corporativo, o fascismo à moda de Caetano.

As greves estudantis, a de 62 mais centrada em Lisboa e depois a de 69 mais centrada em Coimbra, tiveram grande importância e influência nos oficiais do quadro permanente.

Toda esta força foi surgindo e reforçando-se ligada às canções, poemas e dramaturgias que estimulavam e davam corpo ao sentimento popular, nomeadamente as mais ligadas ao movimento estudantil antifascista e anticolonial, marcando indelevelmente o movimento popular e o próprio 25 de Abril, permanecendo como marcos da luta e referências para o futuro.

A estética da revolução vamos ainda buscá-la ao Zeca Afonso, ao Fausto, ao Adriano, ao Sérgio Godinho, ao Fanha, ao Ary, ao Zé Mário Branco, ao Hélder Costa entre muitos outros. “A canção é uma arma”. Essa arma sentiram-na os próprios estudantes; eles tinham acesso e até contacto pessoal com os grandes cantores da resistência. Teve muito importância a música, ela acompanhou todo o processo de preparação do 25 de Abril e viria a acompanhar todo o processo revolucionário.

O desenvolvimento do sentido crítico contra a guerra colonial começou em 62 e foi crescendo até se tornar insustentável.

GB:  Pode-se dizer que crise de 69 foi o primeiro sinal forte de crise do regime?

 

MT: Sim, claramente, até pela forma da repressão, que foi brutal, nomeadamente em Coimbra, foi um sinal que o regime com a guerra colonial estava já entrar numa fase de decadência enquanto regime forte fascista. E depois foram as consequências sociais, psicológicas e económicas – 40% do Orçamento de Estado estava hipotecado à “Defesa”- do esforço da guerra, a continuidade das comissões dos Capitães e o desgaste resultante (eu fiz quatro comissões de 2 anos separadas por cerca de ano e meio),  e a sua perspetiva de que a guerra não tinha saída militar. Essa perspetiva foi reforçada e consolidada através da influência dos milicianos que entraram para as Forças Armadas.

 

GB: Quer dizer que, de certo modo, o que nos está a dizer é que a Guerra Colonial e todo o efeito que teve sobre a juventude da época foi central na tomada de consciência das Forças Armadas.

 

MT: Eu não diria isso, não foi uma tomada de consciência das Forças Armadas, as Forças Armadas não tomaram consciência disso, tomaram consciência os Capitães que andavam lá a batê-las e que foram os detonadores do 25 de Abril. Não nos podemos esquecer que, embora se diga que foi o Movimento das Forças Armadas, gerou-se essa ideia, admito que possa ter sido uma boa ideia para integrar as Forças Armadas todas num movimento democrático a seguir ao 25 de Abril, mas considero que nunca devíamos ter perdido o nome dos Capitães de Abril. Acho que isso foi uma falha, assim como foi uma falha termos nomeado generais, percebo porquê, acharam que os generais davam outra confiança àqueles sectores mais recuados do ponto de vista do pensamento e disponibilidade para a ação, mas os Capitães de Abril, e integro aí homens que já não eram capitães, o Vasco Gonçalves, o Victor Crespo, o Garcia dos Santos e outros,  tinham já capacidade e qualidade para fazerem o que era necessário,  ainda por cima num país que transformou um golpe militar num movimento social muito poderoso. Estes elementos, Capitães e outros, já tinham um pensamento político bastante acentuado, tinham todas as condições para participar na governança do país, tendo em conta o movimento social, o que não aconteceu com os outros que tiveram sempre uma resistência contra o movimento social.

Já agora queria sublinhar que, a propósito do MFA e das Formas Armadas, que as Forças Armadas não fizeram o 25 de Abril como propaga a narrativa que nos querem impor. Quem fez o 25 de Abril foi o movimento dos Capitães e para isso tiveram que desarticular as próprias Forças Armadas.

 

GB: O 25 de Abril, centrou-se inicialmente em Lisboa, mas rapidamente a dinâmica criada pelos Capitães se estendeu a todo o país. Basta ver as fotografias, as reportagens nas televisões; mas com a evolução do processo revolucionário há quem dia que se criou uma dualidade entre as dinâmicas nos grandes centros urbanos e no interior, nos meios mais rurais, a ponto do MFA fazer a dinamização cultural. Essa foi uma preocupação do Movimento?

 

MT: Foi, uma grande preocupação, primeiro, ajudou a uma certa libertação contra o caciquismo muito enraizado, mesmo da Igreja. A acompanhar a ação cultural ia sempre uma máquina de transformação do território, levou-se a eletricidade, abriram-se estradas e caminhos, asfaltaram-se estradas, transformou-se de facto o território.

O socialismo era uma referência do MFA para um caminho a favor das populações. Graças ao prestígio do MFA, daí o PS, que se afirmava socialista, ter ganho de forma expressiva as eleições para a Assembleia Constituinte. O MFA tinha colocado o socialismo como uma utopia realizável e foi o MFA que ajudou a encontrar soluções concretas para problemas concretos das populações, mesmo das mais isoladas.

 

GB: Há expectativas que foram realizadas, liberdade, democracia, descolonização, mas um dos três “D”, o do desenvolvimento, passados 45 anos mantém uma dualidade muito forte no território, a diferença entre o litoral urbano e o interior rural. Falta de coesão territorial que é também social. Esse é um dos “D” que não foi cumprido?

 

MT: Há duas ideias de desenvolvimento. O que tivemos foi o desenvolvimento associado ao modo de produção capitalista, um desenvolvimento capturado pelas necessidades do capitalismo que visa apenas o lucro. Onde há lucro é que se investe, o país que temos hoje é consequência disso. Investir no interior não é adequado para o lucro e daí que o interior venha a perder cada vez menos capacidade de atrair polos de desenvolvimento e as pessoas a deslocarem-se para a cidade e para fora do país, para onde está o foco dos mercados.

 

GB: No 25 de Abril, o Mário Tomé fazia parta da Comissão Coordenadora do MFA em Moçambique. Depois veio para Lisboa, envolveu-se muito no processo revolucionário.

 

MT: Estive em Moçambique até dia 19 de Julho de 74, pensei que tinha que vir para Portugal, que aqui estava o centro da transformação. Terminou a minha Comissão e regressei. Ficaram lá outros camaradas, o Aniceto Afonso, o Melo de Carvalho que também faziam parte da Coordenadora. Ficaram com mais dois ou três camaradas, a braços com alguns grandes problemas, tais como o ataque ao Rádio Clube por um movimento racista e colonialista com o apoio de Spínola e com a retaguarda protegida pela África do Sul e pela Rodésia.

Regressado, fui para a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, e depois Cavalaria 7, em Lisboa,  que foi extinta a seguir ao 11 de Março.  Fui então para 2º Comandante da Polícia Militar.

 

GB: Aí participou em todo o processo até ao 25 de Novembro, altura em que foi preso com mais 200 militares. Foi aí que começou a divisão entre os militares?

 

MT: A divisão no MFA começou bastante mais cedo, começou desde logo com o Spínola a defender um projeto de maior autonomia para as colónias, mas sob a tutela de Portugal, mas os movimentos de libertação não aceitavam isso, nem nós aceitávamos isso. Os movimentos de libertação para nós não eram inimigos, eram aliados, o único inimigo era o fascismo. A divisão no MFA começa a seguir ao 11 de março, quando se começa a nacionalizar empresas estratégicas, a banca e os seguros.

A partir do chamado verão quente já se sentia tudo isso e um sector do MFA começou a engendrar uma forma de conciliação com os interesses capitalistas, mas sem confrontar o movimento social fortalecido com a reforma agrária e as nacionalizações. Começou a haver uma grande resistência dentro dos quarteis, queriam uma espécie de 28 de maio democrático, depois de derrubado o regime os soldados voltavam aos quartéis. Essa era a aspiração de muitos oficiais do MFA.

Para isso, era preciso acabar com a participação dos soldados no movimento, que os soldados estavam a ter papel importante na reforma agrária e noutras lutas pelo país fora. O MFA ficou refém de posições políticas concentracionárias.

 

GB:  Há diferenças entre o latifúndio do Alentejo e a estrutura fundiária do Centro e Norte. O nosso minifúndio mantém-se e vem a sofrer com a entrada na União Europeia, com recuos enormes na agricultura.

 

MT: O minifúndio sofreu também de uma perspetiva nunca explicitada de que no socialismo tinham que passar por uma “cooperativização” ou concentração da propriedade, sem ter em atenção aos interesses e à vontade das pessoas que viviam da terra. Estava-se a agir debaixo de uma ideia geral de que futuro seria a coletivização, isso foi muito negativo, foi um erro tremendo porque o minifúndio e as pessoas ligadas à terra tinham a sua economia organizada, a sua vida organizada e havia que as apoiar para forma de organização mais consolidadas, mas no respeito pelas suas decisões.

 

GB: Esta fratura no MFA era também algum reflexo do mundo bipolar que existia na época? Guerra Fria? Teve alguma expressão aqui?

MT: Os “blocos” e também o maoista influenciavam as forças políticas. O PCP integrado numa perspetiva estratégica da União Soviética e outros numa perspetiva estratégica dos Estados Unidos da América, qualquer delas não respondia aos interesses no nosso país.

A China achava que se devia opor ao confronto entre os dois “blocos”, como por exemplo a UDP e outros que adotaram essa perspetiva.

GB: Voltando ao 25 de Abril, hoje fazendo o balanço destes 45 anos, o que acha que devia ter feito de modo diferente?

 

MT:  Eu sozinho não fazia nada. Na história não há “ses”. Tudo o que fiz não foi a contragosto, na altura achei que fiz bem e isso basta-me. Havia muita fragilidade na capacidade de analise da situação, de perspetiva de futuro. Por seu lado, o movimento social teve sempre uma debilidade que era o “chapéu de chuva” do MFA.

Nessa altura não tinha partido nenhum, era militar, mas não era por ser militar que não tinha partido. Nós, as forças revolucionárias, nomeadamente a UDP, a que aderi mais tarde, não tínhamos, não conseguimos integrar no nosso pensamento teórico a realidade europeia. A Europa estava ainda no balanço da social democracia. A social democracia moderna que resultou da segunda guerra mundial com muito investimento na Europa.

Na Europa a classe operária estava numa posição de aceitação da social democracia, e apesar da “Jangada de Pedra” do Saramago…! nós estávamos na Europa e não tivemos capacidade de fazer essa análise, entender esse fenómeno para o integrar na estratégia revolucionária. Esta é a grande crítica que devemos fazer.

 

GB: Mesmo se não tivesse havido o 25 de Abril o país teria chegado ao nível de desenvolvimento atual, como disse Saramago? Teria sido mpossível o início da construção do Serviço Nacional de Saúde, do Ensino Público, da eletrificação das aldeias, do saneamento…

 

MT: Isto tinha batido no fundo, como já disse a guerra colonial absorvia 40% do Orçamento do Estado. Foi com o 25 de Abril que nasceram o Serviço Nacional de Saúde e a Escola Pública, foi um enorme progresso, um progresso que nos colocou à frente da própria Europa. A redução da mortalidade infantil, o aumento da esperança de vida e muitos outros indicadores de desenvolvimento dispararam e esse caminho começou a ser feito nessa altura.

A própria Constituição, que foi uma das mais avançadas do mundo e que ainda é, apesar de algumas alterações em ordem aos interesses capitalistas. Conseguiu-se uma Constituição que é fruto da luta dos movimentos, porque foram os confrontos do movimento popular que determinaram o que há de mais essencial na Constituição de 1976. Foi uma das grandes conquistas do 25 de Abril e que está ainda a marcar a nossa vida. E nada disso teria acontecido sem a rotura do 25 de Abril e o movimento revolucionário que agora assinalamos e festejamos.

GB: Muito obrigado, Mário Tomé, pela sua disponibilidade para esta entrevista à Gazeta da Beira, pelo seu testemunho histórico e político sobre um dos momentos mais exaltantes do Século XX português, e seja sempre bem-vindo a terras de Lafões.

 

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