António Gouveia

Foi Deus - Não sei, não sabe ninguém …

Foi Deus – Não sei, não sabe ninguém …

Amália, nove irmãos, foi (e continua a ser), um portento de voz inigualável, uma maneira de ser peculiar, de estar com desassombro e provocação, lusa até aos tornozelos, dos cabelos pretos à sola dos pés descalços de garota. Nascida no Fundão há 100 anos – cumprem-se no dia 23 -, dia em que o pai, músico e sapateiro pobre, já algo atrasado, fora ao registo civil, ela nascera a 1 julho, o dia em que os anos se partem ao meio e nela entre a vida e o fado. Amália, mulher de gema, de génio e genética, descendente da velha Ibéria, centro, equilíbrio e misto geográfico de um povo migrante e aventureiro: beirões, minhotos, transmontanos, ribatejanos, alentejanos, algarvios, ilhéus e berberes, fomos ao seu encontro a caminho da África e do Brasil, das Índias e da Indonésia, lá onde ainda permanece e se dispersa a nossa diáspora, donos de um país com mil anos de História, Afonso Henriques não nascera, povo de muitos glórias e alentos, tormentos e tormentas, ao longo de séculos, de novo a passar por momentos de angústia, de temor e sofrimento, povo de muitos povos, unidos num enorme e pungente fado, muitos fados, “ninguém foge ao seu destino”,  “dormimos com eles na cama, tivemos a mesma condição”,  “povo que talhas com teu machado, as tábuas do meu caixão”- cantou Amália Rodrigues.

Amália revelar-se-ia também na poesia em muitos dos seus fados, como n’O Grito: “Adeus vida que tanto duras, vem morte que tanto tardas” … “ai solidão como dói, a solidão quase loucura!”. E no fado Foi Deus, cujo título escolhi e encimo, a música, de Alberto Janes: “Foi Deus que deu luz aos olhos, perfumou as rosas, deu ouro ao sol e prata ao luar; foi Deus que me pôs no peito um rosário de penas que vou desfiando, e choro a cantar”. Atreveu-se (belo atrevimento!) a cantar Camões, o poeta que colocou a palavra inveja no fim do seu poema maior, contraponto de “barões assinalados”, no início, o alfa e omega do (nosso) fado comum, inveja que a baronesa assinalada Amália sofreu de basbaques, burgessos e ignorantes, logo após a revolução de abril, acusando-a de colaboradora da PIDE e regime de Salazar, como se Amália  – e Eusébio, ídolo coetâneo, faleceu agora, aos 85 anos, o ídolo e amigo inglês que o fez chorar, Jack Charlton -, precisassem de regimes políticos de direita ou de esquerda, conservadores ou progressistas, para a sua arte;  ou se estes países e regimes não se  honrassem, deliciassem e aproveitassem com artistas assim, ainda hoje acontece. Logo ela, a ajudar presos políticos encarcerados, o ator de teatro Rogério Paulo, militante do PCP,  elo invisível na arte de bem fazer e ninguém saber, sabia-o; logo ela, amiga de Alain Oulman, músico e compositor de muitos dos seus fados, opositor do regime, preso pela PIDE, por quem intercedeu e foi libertado e para quem cantou o  fado Abandono, título oficial de fuga aos cortes da censura, a letra pedida ao amigo comum, David Mourão Ferreira que o próprio Alan musicou no breve período de prisão, era sua a história, o povo batizou-o fado de Peniche, a prisão onde ele estava: “Por teu livre pensamento, foram-te longe encerrar, tão longe que o meu lamento não te consegue alcançar”. Abandono, saudade e lamento de Amália fugidos à censura, Amália, amiga de poetas (Homem de Mello, Alexandre O’Neill, Ary dos Santos, Manuel Alegre e outros), de políticos e artistas, músicos, violeiros e guitarristas, alma popular nobre e transparente, franca e intuitiva. Todo este Grito de saudade imensa perpassa, permanece, repito e recordo neste centenário no fado que escolhi e cuja letra, sua autoria, nos revela uma sensibilidade profunda, síntese do seu fado e nosso fado lusitano, amálgama de muitos fados espalhados pelo Mundo.

Dizem que somos racistas. Pura ignorância, esquecem-se que a palavra já se transcendeu há muito, hoje, tal como fascista, são palavras polissémicas na semântica e semiótica, os preconceitos decorrem, sempre decorreram, da maldade humana ou “banalidade do mal” no dizer de Hannah Arendt,  racismo já não tem a ver com a cor da pele ou da raça – o exemplo de Eusébio é paradigmático, quem não o adorava e à sua arte! -, tem a ver, ora com a inveja, ora com preconceito, lá no fundo, brancos, pretos, pálidos, amarelos e mestiços, todos temos pecados originais, somos (quase) todos, (quase) sem dar conta, racistas e fascistas na tendência de discriminar os mais fracos e desfavorecidos, os mais pobres e ignorantes sem culpa. Foi Deus – assim pensou e escreveu para nós Amália Rodrigues: “Não sei, não sabe ninguém/ Porque canto fado neste tom magoado/ De dor e de pranto;/ E, neste momento, todo sofrimento,/ Eu sinto que a alma cá dentro se acalma/ Nos versos que canto”. Sim, foi Deus, neste momento todo sofrimento, mais uma vez, precisamos de meditar, rezar e cantar, só assim sentiremos que “a nossa alma cá dentro se acalma”.

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