António Gouveia

“Gerações de jovens adultos” - estátuas de sal, estátuas de bronze

25 junho 1948 – Morre com 47 anos em Lisboa, Bento de Jesus Caraça, um dos mais promissores matemáticos e jovens catedráticos que, conforme carta cuja cópia tenho comigo, tinha estado no vale do Vouga a descansar de doença no então hotel Mira-Vouga, em Vouzela, escrevia ele ao amigo Sardoeira Pinto, a 9 setembro de 1943. Resistente antifascista e revolucionário das ideias, assertivo e corajoso nas diatribes políticas, sociais e culturais que escrevia nos jornais e pronunciava nos discursos no salão d’A Voz do Operário, forte critico de Salazar e seu regime, num desses escritos no Jornal República, a propósito das entrevistas do chefe do Governo respondia assim ao jornalista, em 16 de novembro de 1945, ao abordar os índices do analfabetismo que então grassava – 74,5% em 1900, 66,2% em 1920 e 52,1% em 1940: “Por este andar e apesar de a taxa de analfabetismo ter caído um pouco mais rapidamente do que nos 20 anos anteriores, seriam precisos mais cerca de 70 anos de ‘política do espírito’ para liquidar o nosso analfabetismo”. Repare-se no tom sarcástico e mordaz da expressão “política do espírito”. De pouco lhe valeu, preso pela PIDE em 1946, viria a ser demitido da cátedra do ISCEF em outubro desse ano, morre faz agora 72 anos, e com ele, a incapacidade de o regime debelar o analfabetismo. Curioso, 120 anos do seu nascimento, 3X70 anos desde 1945, com os 70 anos da morte de António Salazar (cumprem-se em 20 agosto) e o analfabetismo continua por debelar, encalhou nos 5%. A política, do espírito ou outra qualquer, tem destas coisas, continua a ser “a arte do possível, tendo em conta a ciência e o conhecimento”, segundo o conde von de Bismark.

10 junho 2020 – O Cardeal D. Tolentino, em oração de sapiência notável, teceu nos Jerónimos a análise do momento e a previsão de um futuro apressado e incerto: não apenas por causa da pandemia que nos cansa, confina e subjuga, mas também da economia que nos ameaça e futuro avassalador se não tomamos medidas inteligentes. Vale a pena tonar a ler: Camões, disse ele, “desconfinou Portugal no séc. XVI; aludiu à poesia, guia náutico perpétuo, tratado de marinhagem para a experiência que fazemos da vida, cosmografia da alma. Não nos podemos conformar com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempos, numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes, tanto mais decisivo numa época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, sobretudo nos coloca no interior turbulento de uma mudança de época”. E mais: “Uma comunidade desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, deixa de colocar a pessoa humana no centro e não se empenha em tornar concreta a justiça social ou desiste de corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam e, com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que são os últimos e que o pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual”. São frases e expressões eloquentes, seria um abuso literário da minha parte arriscar qualquer recensão, sempre castradora. A conclusão sobre a geração de que nos fala, que perfilho fortemente enquanto autarca e me tem deixado preocupado e impotente, é de uma geração afastada, distraída, algo abúlica, desesperada e desmotivada pelas razões apontadas, sem perspetivas de futuro. E conclui: “robustecer este pacto intergeracional é olhar seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos; uma geração que, numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações uma segunda crise económica grave. Jovens adultos, muitos deles com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam, sucessivamente, a adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter filhos e de se realizarem”.  Síntese e conclusão bem arrumadas e reformuladas no conceito, talvez esteja aqui a razão maior dos males que nos apoquentam, fortalecem os vandalismos e ataques fascistas e racistas a que temos assistido, que têm menos a ver com as estátuas e figuras vandalizadas, por isso devemos ignorar, são agressões atrevidas, ignaras, desalentadas e inconsequentes. Mas não o seu sentido, razão e motivações infratoras neste tempo de festas e santos populares ausentes das cascatas, arraiais e foguetes, António, João e Pedro, também Vieira, o jesuíta amigo dos índios escravizados do Brasil. Acontecem porque continuamos distraídos, assim aconteceu no séc. II, início fundacional das nossas raízes como povo. Na análise ao rigor dos parágrafos acima debitados pelo Cardeal Tolentino, há que relê-los uma e outra vez com atenção, observá-los como quem observa estátuas de bronze e não de sal, de modo a que possam retinir nas consciências com o timbre e som de um sino alto na imponente torre para ribombar e ecoar além das montanhas, porque, facto inatacável, a “geração dos homens adultos” que vive ao nosso lado passa por incomensuráveis e complicados problemas.

A não serem pensados e resolvidos, os caminhos serão pedregosos, constatamos que o conhecimento e a ciência os preparou para a vida; mas falta-lhes o espírito de sacrifício e a capacidade de sofrimento dos nossos maiores, apreendidos e fortalecidos nos trabalhos árduos do cultivo dos campos e frutificação das árvores. Nós, os mais velhos – não todos, não a todos , facilitámos-lhes as vidas e estragámos com mimos, fomos-lhes dando o que não tivemos, abandonámo-los, e, logo a seguir, os campos, a forma e o fermento de as famílias misturarem a massa para arredondar a maquia doseando a subsistência do dia a dia e os ardores, atrevimentos e irreverências da prole. Mais tarde trocámos por dez reis de mel coado, esta agricultura de subsistência por outra, mais intensa e intensiva, uma decisão estúpida e péssima também para o ambiente, chegaram outros servos da gleba com as migrações, outra forma de escravatura, o capitalismo selvagem continua a sobreviver, externo e cada vez mais intenso, agora nos melhores e bem apetrechados olivais no regadio do Alqueva alentejano, um investimento pago pelo povo com trabalho, suor e lágrimas, também impostos do nosso trabalho, sobra-lhe, ao capitalismo, a parte de leão. D. Tolentino, cidadão de poder e inteligência raros, percebeu isto como ninguém, será que o ouvimos ou, como santo António que o jesuíta Vieira  glosou, gloriou, recreou e repetiu com admiração inconsolável, foi este mais um sermão e oratória de pregação aos peixes?

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