António Gouveia

Chalés da memória (1)

Livro curioso este que meu irmão me emprestou, ‘Descalços em tempos de botas’, narrativa muito similar à das crónicas de António Nazaré Oliveira, aqui na GB, já em quantidade, ‘Coisas e gente da minha terra’. Que não lhe falte vida, tinta e memória. E de outro livro de lafonense nascido em Alcofra, não recordo o nome, percorri as estantes, não encontro, anda por aí ou emprestei-o, dessa terra mais batida pelos ventos frios e agrestes do Caramulo, da Penoita, Arada, Freita, Ladário e Gralheira que as das fundeiras de Lafões. Se bem me lembro, ‘Um homem que nunca foi menino’, outro primor de escrita e de estórias, tudo e todas excelentes descrições do que tínhamos ou não tínhamos quando éramos e fomos meninos, do que somos e por que somos. Não foi só o toque de erotismo e derriços do António e da Preciosa lidos no  livro do João de Almeida, conterrâneo de Souto de Lafões, mais novo que eu, nado em 1955, julgo não conhecer, talvez a Eulália, se é quem penso, refere mais velha do que ela, bate certo; e muitos mais personagens a quem não teve receio de por os nomes, com mais ou menos amizade ou amor familiar, assim, pão, pão; queijo, queijo. Admiro tal franqueza, que é também coragem e pica, forma de provocação, também eu fui (e sou) assim. Por isso, na escola primária, o meu amigo e companheiro de carteira, António de Almeida, de Travanca, pôs-me a alcunha de ‘pulga’, muito me aborrecia e deixava zangado. Hoje, nem tanto, aprendi que o nosso ADN é o mesmo da mosca e da pulga, que o Messi do Barcelona tem esta mesma alcunha (a minha, não pegou de estaca). Percebo que o Tónio ‘turquês’, dos indivíduos mais inteligentes que conheci ao longo da vida e já partiu, deixando muita saudade e tristeza, percebeu ser eu intuitivo e lógico no pensamento, com um comportamento ético que incomoda, ambos nem sabíamos ainda que filosofia era esta, eu detestava que molestassem os colegas mais indefesos ou ‘fivelas’ como eu; faltassem à verdade ou dessem o dito por não dito. Por isso a ‘mordida´, incómodos de metediço e embirrento. Outras estórias, foi pena o Tónio não ter podido estudar, iria longe e atingiria grande craveira, era de família modesta e grande nobreza de caráter, não teve possibilidades, o colégio fechou nesse mesmo ano de 1955, rumei ao seminário.

Quero aqui prestar a minha homenagem aos três, gostei (gosto) muito das estórias e palavras escolhidas, muitas delas arcaísmos à moda de Aquilino, vão caindo em desuso, deliciam e fermentam esta espécie de regresso, saudade dos  tempos e meninos que fomos, melancolia de velhos de que nos fala o nobel Orham Pamuk, o espelho dos lugares das vilas e cidades onde fomos muitos felizes, mesmo se paramos e as observamos melhor, tanta tolice urbanística. Na vila de Oliveira, um desplante, mais que o embelezamento da que foi (já não é) a mais feia, atrasada e deslavada das três vilas de Lafões, denuncio aqui a sucumbência a interesses particulares (sei os nomes) com a conivência  da administração pública e seus funcionários, uma estratégia ainda hoje muito utilizada por rentistas, querem tirar partido dos seus fundos e não olham a meios nem ao interesse público. Quedemo-nos na evolução e arcaísmos lidos: celeiro, canastro, canaz, alminhas, moinho, linho, lareira, côdea de pão, tojo, burel, carqueja, taleiga, peirão, alpendre, salgadeira, corga, poldras, açude, sachola, alvião, pá, pica, parreira, tamancas e tamancos de proa, quinteiro, palheiro, masseira, caseiro, feitor, rasa, sulfatar, almude, poda e endireita, vessada, vasilha, dorna, selha, soga, quartilho, almude, conduto, abegão, carrego, tanchoeira, cabrajum (quebra-jejum), mangual, barrela, meruje, mal precatada. Soa bem este português de antanho, esta morfologia, semântica e semiótica das palavras, menos bem as asneiras de agora, desta muito falada evolução em confinamento e meditação.

(1) Título plagiado a Tony Judt

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