António Gouveia

Trafulhice, vigarice e lata, muita lata, o que por aí há mais

Há uns dez anos por aí, já reformado da atividade bancária e desabituado da concessão de crédito, tarefa diária de muitos anos, emprestei € 10.000 ao taqueiro que mudava o chão da sala, após assédio em conversa mole à mistura com colinho à minha neta, ainda bebé que por ela cirandava. Aflito e preocupado, era quase natal, o artista vigarista disse-me querer pagar aos empregados, mas firma reputada sua cliente só lhe pagaria em janeiro, eu tinha sido bancário (conhecia-o desses tempos), sabia bem como eram essas coisas, atalhou. Caí na esparrela ao terceiro dia, não mais fui pago. Ouvi então minha mulher, humor irritadiço, atirar-me à cara que estava a ficar velho (e estava, um facto); não adregava a conhecer os truques de vigaristas, a minha experiência de mais de 35 anos lá no banco a emprestar milhões e avaliar riscos de crédito de milhares de operações de clientes e empresas nas 14 vilas e cidades por onde tínhamos andado feitos ciganos, filhos, tarecos e trouxa (outra, eu) atrás, perdera-se por completo. Tinha razão, soube -o depois, o figurão estoirava no jogo o que tinha e não tinha. Também o juiz mais famoso do país, atualmente (magistrado que não conheço pessoalmente, mas por quem tenho imenso respeito pela sua coragem, e também muita consideração), também caiu na esparrela, desta feita na de um credor acima de qualquer suspeita (pensava ele), seu amigo e colega de ofício e investigação a quem, em momento de aflição, confidenciara estar em dificuldades, não era rico e faltavam-lhe € 10.000 para a obra em curso lá na casa da vila onde nascera e o banco tardava em libertar a tranche do empréstimo. O procurador resolveu-lhe o problema quando voltaram ao assunto, ele agora vivia desafogadamente, mudara de emprego, saíra-lhe a sorte grande, os sinais exteriores o demonstravam, eram amigos de longa data. O empréstimo seria pago por transferência pouco depois. Eu, uma dose de ingenuidade, minha mulher tinha razão; e ambos, apesar de profissionais habituados a cheirar de perto “artistas” videirinhos, profissionalmente incompetentes, não nos chegou o bafo dos dois cidadãos. Escapei às bocas do mundo, tive mais sorte que o senhor juiz, não sou famoso nem tenho a meu cargo processo grosso, volumoso de “fidalgos” de grande libré com nome de Marquês. São estórias de vidas … ou do mundo e da vida, há muitas por esse mundo fora.

No último artigo de opinião falei da CGD e nele verberei deputados da direita que, na AR e CPI, punham nas bocas do mundo como suas preocupações as tribulações da CGD, por atacarem os valores da confiança e do sigilo, a chamada fidúcia financeira. Nem de propósito: a esquerda retaliou de imediato – ora disparas tu ora disparo eu, parece a guerra do Solnado a brincar, mas nós é que nos amolamos – e os seus deputados de turno quiseram também escrutinar os 10 mil milhões fugidos ao crivo do fisco com destino às Offshores e Panama Papers, metade deste montante ordenado por clientes do Grupo BES. Não pretendi defender, nem defendo –  embora parecesse, outro erro de perceção, está na moda -, que, em questões de dinheiros sujos e artifícios da corrupção, a razão de Estado sempre haverá de justificar que a roupa suja da família seja lavada em casa e em segredo (o que nem sempre acontece, como sabemos). Defendo o contrário: nestes casos, é exatamente por razão de Estado que se devem clarificar, resolvendo-as, situações que apontem para o crime, entregando aos tribunais essa tarefa, é a eles que está cometida a função de julgar em nome do povo, diz a Constituição.

Do Grupo BES muito se falou nos últimos tempos e torna a falar. Agora na SIC, a brilhante peça jornalística, também ousada e temerária (tiro-lhe o chapéu) do sempre arguto, astuto e “atrevido” Moura Pinto, iluminou melhor o cérebro de muitos portugueses pouco habituados às diabruras e saltos do malfadado dinheiro. É verdade, um facto, milhares de milhões desapareceram para longe e trocaram de bolsos, próprios e alheios: administradores, clientes, empresas, empresários, banqueiros e bancários, políticos e mangas de alpaca, países terceiros. Portugal e nós, por tabela, mais pobres. Dele e nele muitas e grandes empresas soçobraram., outras, de outros países, chegaram para tomar conta do que era nosso, é a globalização do capital. A bem reputada PT já não é o que era e, pior ainda, já não é nossa. Tal como a GALP, a ANA e a EDP (em 2016, redondos, mil milhões de euros de lucro, fazem falta na amortização da dívida), falo das maiores. A CGD e o BCP foram abalroados e danificados em assaltos de poder com estratégias cirúrgicas de empresários e políticos com ganância pessoal e empresarial em ganhos de esforço. O BPN, BPP e BANIF desapareceram, foram engolidos (mal). O Montepio é uma incógnita, sempre foi; o BdP, uma catástrofe na incompetência da supervisão e, por tabela, da governação: foram muitas e enormes as tropelias e malfeitorias de gente sem classe, sem vergonha e sem ética, alguma mais ingénua ou crente, muita adormecida com droga (suborno). Sabemos quem são e por onde andam agora muitos deles, e bem, é todo um polvo gigante e tentacular, tal como gigantesca é a chatice do rasto deixado que custará a limpar. Só nos falta mesmo que, dentro de dias, aberto o dossiê da acusação, no tal processo onde toda esta refinada rica “fidalguia” aparece, as provas dos crimes de lesa pátria só fiquem pela evasão fiscal. Não me espanto, aprendi no direito que a corrupção é muito difícil de provar, já o mesmo aconteceu no célebre processo do mafioso e criminoso Alphonse Gabriel Capone (1899-1947), o cidadão americano adorado ou odiado (conforme os lados da trincheira) conhecido como Al Capone.  Tome nota, caro leitor: no dia em que o tribunal o condenou a 11 anos de cadeia por fuga ao fisco americano, este gangster famoso de Chicago, vítima da perseguição teimosa e obstinada ad hominem do investigador do Tesouro Pat Roche, saiu a entrevista que concedera dias antes à revista Liberty. Nela respondera ao jornalista Vanderbilt Jr. com esta frase: “Devemos manter os Estados Unidos íntegros, a salvo da corrupção”.  Que mais escrever? A história repetir-se-á? Respondo: pode, são outros os factos, outras as pessoas.

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