António Bica

A fábula do cão de guarda

A fábula do cão de guarda

Como os ricos agem com os políticos

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Um cão guardava a casa de um lavrador transmontano. Ao norte ficava a morada da família com larga varanda voltada a sul; em frente grande quinteira com largo portão para a rua. Por ele entravam as pessoas, os gados, os fenos, o mato, a lenha e o mais que havia que recolher e guardar.

Um possante cão transmontano vigiava a quinteira, onde nada entrava nem saía sem dela dar fé. Se alguém se aproximava, ladrava de aviso. Se chegava ao cancelo de serventia das pessoas, ladrava ameaçador. Se entrava sem que ninguém da casa mandasse “deixa entrar”, segurava-o pela perna até que algum dos donos acudisse.

Marchante de gado de outra aldeia avezado a roubo de rezes pensou em levar gorda toira do curral do lavrador que dava para a quinteira, metê-la em camioneta e passa-la de madrugada ao matadouro do Porto. Fazer caminhar a toira até à camioneta era fácil: dúzia de cenouras com rama bem verde fá-la-ia andar como cordeirinha.

A dificuldade estava no cão. Como fazer para que não ladrasse? Pensou na estratégia e pô-la em prática.

Noite morta, na antemadrugada, quando na casa todos dormiam a sono solto, o ladrão abeirou-se do cancelo a assobiar baixinho e à investida do cão atirou-lhe osso com alguma carne. Foi repetindo a manobra noites a fio, sempre assobiando baixinho no mesmo tom. Quando o cão deixou de ladrar ao aproximar-se do cancelo a assobiar, abriu-o para lhe dar o osso. Nas vezes seguintes já o ladrão andava pela quinteira sem o cão dar sinal. Abanava o rabo e lambia-lhe as mãos. Adiante, com a camioneta em sítio próximo, o marchante entou na quinteira e levou a toira.

 

Relembrei a história ao saber das notícias sobre a aceitação de oferta para ida aos jogos da selecção portuguesa no campeonato europeu de futebol em Julho de 2016, em França, por 3 membros do governo português a convite da Galp, empresa de que é sócio de relevo o homem mais rico do país, Américo Amorim.

Os 3 membros do governo, segundo as notícias, são Jorge Oliveira, secretário de Estado da internacionalização da economia no ministério dos negócios estrangeiros, João Vasconcelos, secretário de Estado da indústria no ministério da economia, e Fernando Rocha Andrade, secretário de Estado dos assuntos fiscais no ministério das finanças.

Os convites da Galp a estes membros do governo seguiram a estratégia semelhante: embrulhá-los em razões patrióticas (apoiar a selecção nacional de futebol); e todas as despesas por conta da empresa (viagem de avião, seguramente em classe executiva, embora as notícias sobre isso sejam omissas, refeições e hotel).

O convite terá parecido irrecusável aos 3 secretários de Estado. Ao recebê-los talvez cada um tenha pensado, enchendo o peito de importância: é o reconhecimento de quanto valho.

Se cada um deles tivesse suficiente dimensão humana para o cargo político que exerce e a correspondente inteligência para reflectir sobre o convite, pensaria: porquê este convite vindo donde vem?

Há que lembrar que os 3 secretários de Estado que aceitaram os convites, talvez cegos pela sua inchada auto-estima, tutelam serviços públicos cujas decisões interessa à Galp lhe sejam favoráveis, acrescendo que a empresa deve milhões de euros de impostos ao Estado e se recusa a pagá-los.

Não enxergaram os secretários de Estado mais de um palmo adiante dos olhos. Agiram como o cão do lavrador transmontano: o osso com carne agarrada fez-lhe esquecer o dever de defender a casa que guardava.

 

Não têm os secretários de Estado outro caminho senão o de deixarem pelo seu pé o cargo que exercem, que não têm para isso adequada dimensão humana. Se não saírem pelo seu pé, os ministros de que dependem devem propor a sua demissão. E, se nenhum agir, deve fazê-lo o primeiro-ministro.

Este assunto é grave tropeço no caminho do governo, que não pode deixar de ser arredado. Que se lembre disso o primeiro ministro.

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