Morte anunciada

O tio Alberto Terrochão era homem de sete partidas e muitos contos. Andou pelo Brasil, recolheu borracha nos seringais do Amazonas, trabalhou no açúcar em Manaus e noutros ofícios. Seria de esperar que voltasse rico. Mas nasceu comunicador por palavra fácil e inventiva, não para enriquecer. Cada um como nasce assim morre. Fixava quanto ouvia e observava e recriava-o em longas conversas, desde que acompanhado por bebida e tabaco.
Regressou a Portugal entre as duas grandes guerras do século 20; estava a chegar a segunda. Em Portugal, na região de Lafões, foi acolhido por família conhecida. Comia, bebia, dormia e trabalhava sem salário na casa. Quando queria dinheiro para os gastos em tabaco e alguma roupa, trabalhava fora.
Tinha eu pouco mais de sete anos muitos contos lhe ouvi desfiar à lareira nos longos serões das noites de Inverno. As palavras corriam como rio, ora irado por encosta de serra, ora manso na planície, sempre inventivas e encantatórias, desde que acompanhado de garrafa de vinho e cigarros feitos com vagar de mortalha e tabaco de onça.
A retratar mulher tarda, de rabo grande e passo lento comentou certo serão: “A Virgínia está a entrar em casa e ainda o rabo vem na Lameira.”
Há dias recebi pela internete caricatura, sem indicação de autor nem de pessoa caricaturada e informação de ter sido publicado no jornal Público de 16/10/2015, o desenho junto a este texto. Não consultei o jornal, que raramente o leio, porque considero os grandes meios de comunicação social (grandes jornais, televisões e rádios) ao serviço dos maiores interesses económicos, não de informação plural e isenta. Por isso e por má memória visual não identifico a pessoa caricaturada, se alguma o foi. O desenho faz-me lembrar, é isso que importa, breve conto dos muitos do tio Alberto Terrochão:
Um homem foi da sua aldeia a outra pagar o preço de vaca que comprara fiada na última feira da vila. No caminho viu que outro se imprichara em grosso ramo de carvalha e com machadinha o golpeava junto ao tronco. Saudou-o, ao aproximar-se, como impunham as regras de bom convívio entre aldeões mesmo não conhecidos: “Deus o ajude.” O que estava em cima da carvalha respondeu: “Venha com Deus.”
Vendo junto à árvore burro a pastar carqueja, observou o que ia de caminho: “É lenha para carregar no seu burro.” “É verdade; é precisa que está a chegar o frio”, tornou o que cortava o ramo sem interromper o que fazia.
O que ia de viagem despediu-se, porque a jornada era longa e não podia perder tempo, que queria regressar antes da noite cair: “Fique com Deus”. Recomendou: “Tenha cautela, que vai cair”.
Seguiu caminho. Adiante viu o que cortava o ramo da árvore a correr e a chamar: “Homem de Deus, como adivinhou que eu ia cair?” O interpelado disse para si: “Este é tardo.” Respondeu-lhe como responderia a Sibila de Delfos: “Dizem que acerto, mas nem sempre.” “Então diga-me como vou morrer,” implorou o dono do burro. “Se não se precatar, vai morrer aos três peidos do burro.”
Voltou à sua vida o que cortava o ramo e disse para os seus botões: “Tenho que me acautelar com o burro.” Afeiçoou pau suficientemente grosso e meteu-o no cu do burro, apertando-o bem, dizendo para os seus botões: “Atrás de ti não me apanhas mais, que ainda me matas.”
O burro inchou. Ao primeiro dia, apesar de se recusar a comer, a barriga opou como se tivesse comido muito. Ao segundo dia apô-lo à carroça. Como, com poucas forças, ia devagar, pôs-se de lado a evitar o desfecho da profecia e zurziu-o com vergasta de vime, vendo-lhe a barriga cada vez mais inchada: “Rebola, que estás como bola.” Ao terceiro dia entendeu o dono que precisava de mais lenha e foi com o burro ao baldio da Vouga carregar mais ramos de carvalho. A carga era grande e a subida íngreme. O burro de barriga cada vez mais inchada ia subindo muito a custo. O dono, zangado com o que entendeu ser preguiça, aproximou-se por trás a estimulá-lo com boas arrochadas, sem, zangado, evitar o traseiro do animal.
Com o inchaço da barriga e o esforço de fugir ao arrocho ladeira acima, o torno do cu do burro soltou-se com estrondo e matou o dono.
O tio Alberto, como costumava, tirou lição: “Com tolos nem para a missa.”
Se então eu tivesse, ao ouvir o conto, os anos que hoje tenho, diria: “Quem se guia por cartilha ou pela cabeça de outros sem os criticar acaba mal.”Redação Gazeta da Beira

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