António Bica

A influência da cultura árabe tribal no islamismo

O PARTIDO “CHEGA” E OS CIGANOS (5)

Não há informação histórica de os habitantes da Península Arábica, os árabes, terem sido submetidos por alguma das grandes unidades políticas do Médio Oriente, senão os das tribos próximas do rio Jordão. Viviam os árabes da criação de gado em pastagens magras, de alguma agricultura nos poucos oásis e no sudoeste da península arábica mais favorecido por alguma chuva, mas sobretudo do comércio caravaneiro. A sua estrutura política era marcadamente tribal e a religião politeísta. Da interpenetração cultural e comercial com os povos vizinhos resultou a entrada das duas religiões monoteístas, o cristianismo e o judaísmo, na Arábia, tendo algumas tribos árabes adoptado o monoteísmo.

Muhâmade, comerciante caravaneiro da tribo Coreixita, em Meca, foi fortemente influenciado pelo monoteísmo cristão e judaico dos povos com que comerciava que começara a ser adoptado por alguns árabes. No início do século 7 iniciou a pregação do monoteísmo por palavras por ele atribuídas a sucessivas comunicações de Deus único por mediação do anjo chamado pelos judeus Gabriel. Pregou em Meca onde a sua tribo, a Coreixita, tinha forte influência política e religiosa politeísta. Os chefes dela perseguiram por isso Muhâmade, que teve que se retirar com os seguidores de Meca para a cidade de Yatribe, atualmente chamada Medina, onde as duas tribos da cidade, a Aus e a Cazraje, se haviam convertido em grande parte ao monoteísmo judaico e por isso aceitaram dar-lhe refúgio.

A posterior conversão das tribos árabes ao islamismo criado por Muhâmade, voluntariamente ou por força, não apagou a organização tribal árabe.

Quando os árabes, convertidos ao islamismo, durante o século 7 e a primeira metade do século 8 conquistaram a ocidente todo o norte de África, incluindo o Egipto, e depois parte da Europa até junto ao norte da Península Ibérica; e a oriente a Mesopotâmia, o Irão e parte da Índia até ao vale do rio Indo e ao norte até às montanhas orientais da Ásia Menor; fixando a capital destes vastos territórios em Damasco e depois em Bagdade; porque eles mesmos estavam organizados em tribos, não se esforçaram por apagar as distinções tribais, antes as conservaram entre eles e respeitaram naqueles povos que conquistaram nos casos em que subsistiam.

A organização política desses territórios acabados de conquistar, na medida em que foi entregue em grande parte a chefes árabes de distintas origens tribais, tendeu a ter grande autonomia com fraca dependência do poder central do califa residente em Damasco e depois em Bagdade.

A cultura tribal árabe reflectiu-se também na religião islâmica. Embora o islamismo defenda que todos os muçulmanos constituem uma unidade, a Umma, independentemente da sua origem étnica ou cultural, deixou contaminar esse princípio pelo de origem tribal de proibição absoluta de um membro da Umma, um muçulmano, abandonar o islamismo. Essa proibição, a cuja infracção corresponde pena de morte, assenta na cultura tribal em que surgiu o islamismo entre as tribos árabes, o que é reforçado pelo espírito militante das religiões monoteístas nascidas do judaísmo que tendem a ser universalizantes, isto é a querer cada uma dessas religiões converter a ela toda a humanidade por considerar que só os assim convertidos alcançam a felicidade eterna com entrada no paraíso.

Desse modo entendem os muçulmanos que, tal como não se pode abandonar a tribo a que se pertence, porque essa pertença resulta de inapagáveis laços de sangue, de modo semelhante não pode um muçulmano romper os laços que o unem à Umma, à comunidade dos crentes muçulmanos. Fazê-lo é acto entendido como traição punível com a morte. É semelhante a renegar os laços que o prendem a tribo que integre.

O cristianismo, apesar ter igual espírito prosélito, não desenvolveu preceito semelhante por no império romano em que se tornou religião única terem sido apagados os valores culturais de raiz tribal dos povos que o passaram a integrar.

A cultura tribal árabe teve significativa influência na desagregação do poder califal de Córdova, na Península Ibérica, no século 11. O poder dividiu-se em múltiplos pequenos reinos de taifas reflectindo as diferentes raízes tribais dos chefes militares de cada região, o que veio a acelerar a reconquista do território pelos reinos cristãos do norte.

E com a tomada de Bagdade, sede do califado abássida, no século 13, pelos mongóis, o califado abássida que tinha aí a sua capital também se desagregou, não se tendo mais reconstituído, o que resultou em parte dessa cultura tribal.

O islamismo, sendo religião monoteísta, entendendo por isso que os homens são iguais, porque todos filhos de Deus único, do que devia necessariamente resultar o repúdio dos valores tribais criadores de barreiras entre comunidades humanas, porque foi adoptado pelos árabes de cultura tribal, deixou-se contaminar por esses valores tribais.

Muitas outras sobrevivências de culturas tribais se mantêm. São nomeadamente os casos das sociedades de base tribal em países africanos, sobretudo nos que se tornaram independentes depois da descolonização posterior à Segunda Guerra Mundial. As fronteiras coloniais não coincidiam com as anteriores fronteiras tribais. Por isso os países correspondentes às colónias autodeterminadas optaram por respeitar as fronteiras coloniais, mesmo nos frequentes casos em que algumas tribos haviam sido divididas entre duas ou mais colónias. As culturas das diferentes tribos que integram actualmente muitos países africanos vão persistir por longo tempo. Disso têm resultado frequentes conflitos intertribais, embora o decurso do tempo, a escolarização e o desenvolvimento económico as tendam a atenuar.

O mesmo se verifica, embora com muito menor expressão, nos países americanos; nas tribos índias nas Américas; nos países asiáticos com casos de tribos que mantêm autonomia cultural; e também na Austrália e Oceania.

Se houver políticas de respeito mútuo e compreensão de que as diversidades culturais e linguísticas integram a riqueza humana universal, a cada vez mais rápida escolarização e a fácil circulação e comunicação a nível mundial da generalidade das pessoas abreviarão o desaparecimento nas culturas tribais dos valores negacionistas que frequentemente mantêm em relação aos exteriores a elas.

 

A iniciativa do partido “Chega” é discriminatória contra os ciganos é inconstitucional

A recente iniciativa demagógica populista de André Ventura, chefe e deputado único do partido Chega, para a criação de legislação discriminatória dos ciganos portugueses que mantêm a sua cultura tribal não poderá ser aprovada na Assembleia da República porque do artigo 13º da Constituição consta:

Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

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