A vida de um mirtilo

Ana Catarina Pereira; Ana Lúcia Duarte; Luciana Rodrigues

Estávamos ainda no inverno (provavelmente), quando uma brisa fria inundou o meu corpinho redondinho, ainda verde, com um arrepio gigantesco.

Tem sido difícil passar este inverno. Quando chove, abrigo-me na folha Mitó que fica mesmo por cima de mim, num raminho frágil e quebradiço. As folhas têm um instinto (muito) protector, muito particular. O que seria dos frutos como eu, sem a proteção das folhas?

Quando o velho Bartolomeu pairava sobre a minha árvore à procura de frutos maduros, a Mitó protegia-me com o seu corpo fino e alongado, para que ele não me visse. Resultava sempre!

A Mitó era a minha melhor amiga.

Às vezes assistíamos juntas a espectáculos incríveis protagonizados pelos passarinhos. Estes possuíam um chilrear tão doce, leve e fresco como uma nuvem de algodão doce que nos transmitia um encanto apaixonante.

Mais tarde, num dia de primavera, acordei como sempre acordava, abanado pelo vento gélido da manhã. Mal abri os olhos, deparei-me com o senhor Acácio, o dono da quinta onde eu e todos os outros mirtilos vivemos. Ao seu lado estava a sua esposa Maria, passando os dedos pelos seu cabelos grisalhos até formar um remoinho que ela amarrou com um elástico velho.

Mais à frente estavam as duas filhas. Não pude deixar de reparar nas cestas cheias de mirtilos que ambas carregavam à cabeça.

Foi então que percebi que a época do mirtilo havia começado.

-Chegou a hora de partires, meu querido Duky.- Informou-me a Mitó com uma voz calma e triste.

-Para onde é que eu vou, Mitó? – perguntei-lhe aflito.

-Vais seguir o teu destino. – respondeu-me ela.

-Então e tu Mitó? – perguntei-lhe eu, sentindo as lágrimas quentes e salgadas a escorrerem-me pela minha face azulada.

-Eu sou uma folha Duky, a minha função é proteger outros mirtilos como tu até eu ficar seca, cair da árvore e esperar que o vento me leve.

Depois daquela conversa que se prolongou por alguns instantes, acabei por me conformar que estava na hora de cumprir a minha essência enquanto fruto…

Com efeito, chegou a minha vez de ser apanhado. Puseram-me num cesto onde já estavam alguns mirtilos. Depois, levaram-me para uma carrinha. Fui o caminho todo aos saltos, por causa dos buracos daquele caminho. Fiquei tão indisposto e tonto, que quando chegamos ao local pretendido (à feira) mal conseguia perceber onde estava.

Felizmente a minha indisposição acabou por passar.

Olhei à minha volta e vi uma multidão de pessoas em torno da banca onde me encontrava. Fiquei assustado ao ver aquelas sombras todas, reflectidas sobre o meu corpo trémulo.

-Sabes o que é que está a acontecer? -Perguntei eu ao mirtilo que estava ao meu lado.

-Sim, estamos na nossa capital, Sever do Vouga, e, neste momento, podemos ser vendidos a este grupo de franceses que veio provar os melhores mirtilos do mundo. -Respondeu aquele mirtilo grande, extremamente maduro.

Fiquei tão apavorado, que não consegui dizer mais nada…

Uns instantes mais tarde, apareceu junto da minha banca um menino bem pequenino e singelo. Aproximou-se de mim com um olhar receoso e doce.

-Poxo probar um dos xeus mirtilos, xenhor? – perguntou a criança ao senhor Acácio.

-Claro rapaz, as caixas pequenas, custam 2,5€, as grandes são 4€, o que vais querer meu menino? – Explicou-lhe ele.

Vi que o rapazinho ficou incomodado com o preço dos mirtilos.

-Nhão dinheiro…. – disse o pequeno rapaz.

Depois de dizer isso o pobre rapazinho virou costas e foi-se embora.

-Espera meu filho! – grita o senhor Acácio- vem cá.

O menino voltou aproximar-se da banca.

-Eu dou-te um punhado de mirtilos.

O senhor Acácio tirou uma mão cheia de mirtilos do cesto onde eu estava, e eu fui levado juntamente com os outros.

A criança sorriu, agradeceu e foi embora a saborear os doces mirtilos que a primavera haverá trazido.

Podem estar a achar que a minha história acaba assim, na boca jovem, e macia de um menino envergonhado que não tinha dinheiro para me comprar.

Bem, de certo modo acaba, mas antes senti necessidade de me despedir da minha querida amiga Mitó: “ Querida Mitó, tinhas razão, a certa altura da vida, chega o momento de seguirmos o nosso caminho.

Eu podia ter acabado misturado com os outros mirtilos numa compota, num licor, num doce ou até num medicamento qualquer para o coração ou para os rins. Podia ter acabado no chão pisado por alguém, ou esquecido no nosso arbusto até apodrecer. Mas apesar de todas essas possibilidades, o meu destino foi adoçar a vida de uma pobre criança.

Sabes, Mitó, nós mirtilos, por muito que sejamos confeccionados ou mastigados, não sofremos com isso, pois a nossa alma permanece dentro de cada um de nós”.Redação Gazeta da Beira