A dívida política da discussão política da dívida

João Fraga de Oliveira

Ed652_Divida“Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente”, é o título da petição pública (http://peticaopublica.com/search.aspx?q=“Preparar a reestruturação da dívida para crescer) que, até ao momento em que este texto foi escrito (12,30 horas de 4/4/2014), já tinha colhido 33.563 assinaturas. Pelo menos oito vezes mais que as necessárias (4.000) para, nos termos legais, poder / dever ser discutida na Assembleia da República.

Esta petição emergiu do manifesto “Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente”, subscrito por 74 personalidades portuguesas de grande prestígio social, académico e político (e, daí, ser conhecido publicamente por “Manifesto dos 74”) e apoiado por outros tantos destacados economistas estrangeiros.

Por mais que haja quem lhe interesse isso fazer crer, a “dívida soberana” não é algo indiscutível, tão linear e simples(ista) como uma dívida pessoal ou familiar na mercearia.

A dívida “pública” (“soberana”), realmente, é muito menos pública do que, por interesse(s), o Governo (e não só) nos querem fazer crer. A dívida que, dita “pública”, já ascende a 130% do PIB, não decorre, essencialmente, de a maioria dos portugueses (à excepção de alguns, admite-se…) terem “vivido acima das suas possibilidades”.

A dívida “pública” é, em muito, dívida privada sim, mas dos grandes accionistas da banca e de outros grandes interesses financeiros nacionais e internacionais. Politicamente, foi tornada exclusivamente “pública” para, em grande parte, satisfazer esses interesses financeiros e não os “excessos” de necessidades dos portugueses em geral.

Por exemplo, porque sintomático deste tipo de processos de “nacionalização” de dívidas privadas (em contraponto com privatizações de riquezas públicas), é preciso não esquecer, para além dos casos BPN, BPP, PPP e SWAP, que, nestes três anos de “ajustamento”, só na recapitalização da banca, o Estado (ou seja, os contribuintes) já “investiu” 1.560 milhões de euros.

O “Manifesto dos 74” veio colocar o tema da dívida no debate público, até aqui mais ou menos “amaldiçoado” pelo poder político (basta termos em conta a atitude de rejeição, mesmo sem o ler, do Sr. primeiro-ministro) e pela “guarda pretoriana” académica e mediática dos “mercados” e dos “credores que nos ajudam”.

Mas a discussão ficaria estéril se não se lhe seguisse um mínimo de desenvolvimento político e, tanto quanto possível, orgânico (o que não significa necessariamente partidário).

Porque, inelutavelmente, a dívida pública não é uma mera questão técnica, contabilística. É uma questão com  importantíssimas causas e repercussões económicas, sociais e humanas e, por isso, uma questão eminentemente política.

O agravamento do atrofiamento do país, com a perspectiva de “(des)ajustamento” de pelo menos mais 20 anos de austeridade (como reconheceu recentemente o Sr. Presidente da República) por via desta dívida, do seu montante e da sua “estrutura” (e respectivos encargos), vai agravar ainda mais a desesperança, a destruição da coesão social, o sentimento de impotência, o medo, a apatia, o conformismo que já estão a produzir as políticas de destruição de direitos e da dignidade das pessoas que têm sido prosseguidas. E isso, progressivamente, destruirá a qualidade da nossa democracia.

Felizmente, como se depreende do número de assinaturas já recolhido pela petição pública, os portugueses estão a aperceber-se mais disso e, sobretudo, de que, de algum modo, esta é uma questão da (pela) democracia que conquistámos há quatro décadas. Visto que, se: não discutimos a dívida e a sua “virtude; não discutimos o país e se “está melhor”; não discutimos os credores, a sua honestidade e o seu “prestígio”; não discutimos a troika e a sua “moral”; não discutimos o empobrecimento, o desemprego, a desvalorização do trabalho e o seu “dever”, então,…

Então, corremos o risco de, qualquer dia, acabarmos outra vez a papaguear algo parecido com: “Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a pátria e a sua história. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a família e a sua moral. Não discutimos a glória do trabalho e o seu dever” (António de Oliveira Salazar, Braga, 28/5/1936).

Por isso, contrairemos (mais) uma dívida, uma dívida política, se não discutirmos (e agirmos) politicamente (com a projecção humana, social e económica que a genuína essência da Política encerra), não só a (in)sustentabilidade da dívida mas, também, a (i)legitimidade de muito da “soberania” da dívida.

Tanto mais que, no ano em que se comemora o 40º aniversário da Revolução de Abril, a omissão (ou bloqueamento) democrático dessa discussão mais legitimada como dívida política se tornaria.

Portugal não pode contrair mais uma dívida: a dívida política da discussão política da dívida.Redação Gazeta da Beira

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