A avaliação de desempenho e o desempenho da avaliação

João Fraga de Oliveira

Após a declaração de inconstitucionalidade (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 602/2013), do nº2 do artº 368º do Código do Trabalho na redacção dada pela Lei Nº 23/2012, o Conselho de Ministros aprovou um projecto de lei sobre os critérios a adoptar na selecção de trabalhadores a despedir quando num processo de extinção de postos de trabalho.

Desse projecto de lei constam agora cinco critérios, com esta hierarquia: 1) Pior avaliação de desempenho; 2) Menores habilitações académicas e profissionais; 3) Maior onerosidade pela manutenção do vínculo laboral para a empresa; 4) Menor experiência na função; 5) Menor antiguidade na empresa.

Porque o projecto de lei ainda carece de ser discutido na Assembleia da República (AR), é indispensável que, pelo menos aí, se debata e reflicta o muito que, até aqui, pelos vistos (o acórdão do TC é disso prova), não terá sido reflectido, não só quanto à realidade do mundo do trabalho mas, mesmo, quanto ao quadro normativo implicado.

Sobretudo do ponto de vista de exequibilidade de (boa) aplicação, nenhum destes cinco critérios é pacífico. E, por isso, se o projecto, já como lei, vier a entrar em vigor, provavelmente muita litigação judicial haverá neste domínio.

De qualquer modo, o que, antes de mais, nos propomos aqui reflectir é o critério mais determinante, o primeiro na ordem de aplicação, a avaliação de desempenho (AD).

Desde logo, a primeira questão é a de que a maior parte das empresas, mormente as PME (aquelas onde se concentra o emprego em Portugal), não têm sistemas de AD.

Mas, mesmo admitindo que os tenham, há que ter em conta o que, com a AD, se pode passar (e passa) na realidade das organizações empregadoras e o que essa realidade pode projectar, organizacional, profissional, humana e socialmente.

O trabalho nunca é algo estritamente individual. Todo o trabalho é realizado numa permanente intersecção entre o trabalho individual e o trabalho colectivo, entre a função realizada pelo trabalhador e o contexto (facilitador ou constrangedor) organizacional e social em que se insere. Mas, muitas vezes, isto é pouco percebido por quem, de algum modo (directa ou indirectamente, oficiosa ou oficialmente) no papel de legislador, de facto, não (re)conhece (e, por isso, não reflecte) o real da realidade  do mundo do trabalho. Cuja “evidência” não é a dos números, artigos, alíneas, quadros e curvas, muitas vezes os únicos prismas de análise de questões que, muito mais que jurídicas e estatísticas, são, essencialmente, humanas e sociais.

E, assim, num certo endeusamento primário da meritocracia individual, há uma tendência para, em geral, a AD ser aplaudida (ou, pelo menos, aceite) como algo da “boa gestão”, bem como “justo” e “objectivo” para a evolução profissional dos trabalhadores. O que, verdadeiramente, nem sempre assim é, bem pelo contrário.

A AD pode, de facto, em qualquer organização empregadora (empresas ou administração pública), ser um instrumento de (boa) gestão, de planeamento, e de desenvolvimento. E para os trabalhadores, para além de um referencial de responsabilização, é esperado que seja um suporte de justiça profissional, de reconhecimento do e no trabalho, de motivação e de (re)qualificação.

Mas, se assim é do ponto de vista teórico, na realidade concreta das relações de trabalho, há um “lado lunar”, obscuro, da AD que, perversamente, pode ser potencial de discriminação, de injustiça, de degradação da qualidade do trabalho e, mesmo, cedo ou tarde, directa ou indirectamente, nefasto ao “desempenho” (produtividade e qualidade do produto ou serviço prestado) da empresa ou departamento / serviço da administração pública em causa.

De facto, ao nível organizacional, a AD, mormente se individualizada, é muitas vezes instituída e aplicada não como verdadeiro processo de gestão mas, apenas, como instrumento gestionário de (pelo) controlo e poder, fomentando a competição desenfreada, a degradação das relações pessoais, a deslealdade, o cada um por si, o desaparecimento da entreajuda, o secretismo e individualismo profissional, o egoísmo pessoal, a dificultação da socialização de dificuldades, conhecimentos, experiências e práticas, o bloqueamento da participação, a conflitualidade, o anuviamento sociolaboral.

E é então assim que passa a ser um factor de degradação das condições sociais (e, por implicação, materiais) de trabalho e, logo, tarde ou cedo, da qualidade do produto ou serviço prestado. E, daí, ao atrofiamento se não à entropia organizacional.

Ao mesmo tempo, ao nível profissional (e pessoal), a AD pode degenerar na negação do que deve prosseguir, isto é, na discriminação, na iniquidade, na injustiça, no assédio moral, na desqualificação. E, daí, no desânimo, na desmotivação, na falta de sentido do trabalho (na medida em que, para lhe verem o trabalho reconhecido, as pessoas deixam de nele se reconhecer), no isolamento social, no desespero, no sofrimento, na doença.

E o mais preocupante é que tudo isso possa não ser percebido (ou reconhecido), porque “abafado” pelo silêncio e falta de denúncia (e reclamação) que, no actual contexto de desemprego, de falta de participação, organização e de suporte social nos locais de trabalho, o medo impõe aos trabalhadores na “caixa negra” de muitas empresas e departamentos da administração pública, inclusive em sectores primordiais dos Serviços Públicos, como é o caso da Saúde e da Educação.

A bondade ou a possibilidade de perversão da AD depende do modelo (por exemplo, se é individual ou colectiva ou qual é a forma, tempo e nível de informação e participação dos avaliados), do conteúdo (natureza, especificação, valoração e estruturação dos critérios de avaliação) e da aplicação concreta (com ou sem isenção e equidade).

Por exemplo, há um grande potencial discriminatório na inclusão (muito frequente) do critério “assiduidade” (inclui faltas por doença, parentalidade, trabalhador-estudante, assistência a familiares, luto, actividade sindical, greve, etc.?). Ou do critério “produtividade” (quais são os parâmetros do “desempenho” estabelecidos como “excelentes”? Os do “fluxo tenso” dos limites do esgotamento físico e ou mental do trabalhador, na sua singularidade física, psíquica e social?).

Mas para além de destes requisitos de modelo e conteúdo, a possibilidade de degeneração perversa da AD depende sobretudo muito da sua aplicação, de como é aplicada e por quem é aplicada. Isto porque a justiça e equidade podem ser (como são, muitas vezes, nos locais de trabalho) pervertidas por falta de isenção associada, por exemplo, ao relacionamento pessoal entre quem aplica a AD e os trabalhadores avaliados. Ou, então, ao posicionamento destes como reclamantes dos seus direitos e dignidade profissional e pessoal, bem como, ainda, à sua condição sindical ou política.

Se estes riscos de perversão da AD são preocupantes no funcionamento normal de qualquer organização empregadora, ainda mais preocupantes são quando, como se prevê na proposta de lei do Governo, a AD é o principal critério para, nas empresas, determinar o despedimento de trabalhadores.

Portanto, em síntese, por mais que o Governo o queira (como, manifestamente, quer), não pode a AR “despachar” esta questão no alheamento destes riscos (humanos, sociais e até económicos) de a avaliação de desempenho ser critério (e logo o primeiro) de escolha do(s) trabalhador(es) a despedir no caso de extinção de posto(s) de trabalho.

Sendo certo que, como se disse, esses riscos não estão apenas na avaliação de desempenho, no sistema em si, mas também em como é aplicada e em quem a aplica, ou seja, bem assim, no “desempenho” da avaliação.Redação Gazeta da Beira

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