A aldeia dentro de um coração

Amélia Arede

Tinha seis anos, era uma menina com muitos sonhos na cabecita, estatura média e muito magrinha. À mesa, a minha mãe repetia insistentemente:

– Tens de comer mais, pareces uma magricela.

Um dia, comprou um xarope “Óleo fígado de bacalhau”, era para abrir o apetite e logo a abrir, uma colher antes da refeição. Cerrava os lábios e os dentes para não entrar pingo daquele amargoso fel. Mas não havia comida sem medicamento. O braço de ferro mantinha-se. Que remédio!!!…

– É apenas uma colherzinha dizia a minha mãe. Mas a conversa não adoçava. Nascia a minha primeira greve e sem saber, greve de fome. Cediam as duas partes, ao longo da duração do malfadado frasco.

Com a chegada do verão a falta de apetite agravava-se, mas havia um interregno com a ida à praia, para mudar de ares.

A azáfama crescia à medida que se aproximava a partida. No saudoso comboio sempre a apitar braços a acenar e o fumo riscando o ar. A euforia era grande, a saudade imensa como imenso é o mar, apenas visto de ano a ano, nas férias.

Ficava o cãozinho entregue e bem à vizinha.

Logo no primeiro dia, corria a molhar os pés, mas com todo o cuidado, não fosse a água salgada entrar na boca, que não sendo agradável, ainda assim, melhor que o “Óleo fígado de bacalhau” deixado na serra.

Nunca gostei muito desta conotação, embora vivesse numa aldeia rodeada de montanhas da qual gostava muito “Cedrim”.

Mas era assim, que pensavam os moradores da praia. A distância parecia proporcional à duração do tempo de viagem.

Na praia, a minha mãe não lia nem fazia renda, embora gostasse, mas era toda “olho atento”. Os banhos, esses ficavam a cargo do banheiro de quem nem sabia o nome. Pegava na “criançada” e lá iam de baba e ranho jogados à onda mais limpa de areia.

O corpo ia ganhando cor, uma cor saudável e o apetite voltava à mesa.

Um dia o mar estava tão calmo, parecia adormecido. Aquelas ondas gigantes que iam e vinham sem entender quem as empurrava, tornaram-se inofensivas. Ondas bebés como gostava de chamar. Foi esse o dia permitido para a aproximação ao mar e só. Começava a minha brincadeira, ou melhor a minha tarefa adiada. Ia finalmente construir a minha escolinha com a areia húmida apanhada junto à zona de rebentação. Apanhei-a com as duas mãos, mas ela sumia-se por entre os dedos. Haviam as conchas apanhadas uns dias antes, mas levavam uma infinidade de tempo a transportar a areia necessária. Eis que surgiu a solução, ela estava mesmo à mão de semear, melhor dizendo, na cabeça. O meu chapéu de palha amarelo. Esse sim, leva muita. Mas depressa ouvi a minha mãe com voz zangada:

– Põe o chapéu na cabeça.

E com a mesma agilidade que o havia tirado, assim ele entrou, agora forrado o seu interior, com a areia húmida.

Sabia que não era apenas a proteção ao sol, mas se estragasse aquele, não havia dinheiro para substitutos.

Para concluir a tarefa, restavam-me novamente as duas conchas, bem cheias, uma em cada mão. Estava quase, só faltava o recreio onde os meninos iam brincar. Esses seriam os búzios de várias cores e tamanhos que estavam amontoados esperando a altura certa para entrarem em cena.

Nos últimos trajectos já calculados, eis senão, um casalinho de namorados, muito abraçados, derrubou a minha escolinha. Nem um pedido de desculpas, um olhar, um gesto de carinho, simplesmente nada. Passavam os dias a trocar afectos, estavam a uns escassos metros, desde a nossa chegada, dois vizinhos de praia e nada.

– Deixa lá, fazes outro dia qualquer, disse a minha mãe.

Mas os dias iam passando e o mar, o mesmo mar estava sempre revolto e revoltada estava eu com tanta indiferença. As minhas lágrimas salgadas uniam-se ao mar. Agora não me divertia a recolher à pressa a toalha ou o farnel de uma onda matreira.

Era o último dia, também a despedida do mar. E lá estava ele calmo à espera.

A construção começou rápida, agora com a complacência da minha mãe. O chapelinho  de palha amarelo funcionou de transporte e a minha mãe de vigia. Até o olhar de desagrado que dirigia ao casalinho, ficou sanado. A idade da inocência tem julgamentos rápidos e pacíficos. Assim, regressávamos à serra, corrijo, à nossa aldeia situada na serra, à companhia do nosso cãozinho, familiares e amigos.

 

As saudades eram do tamanho do mundo. Olhar o casario encosta abaixo, com cortinas de linho e renda a baloiçarem às janelas , contornado pelos montes, cobertos de pinheiros, carqueja e campos de cultivo.

Aqui, as cores e os cheiros, mudam consoante as estações do ano, as brincadeiras de criança também. No verão sob o fresco das laranjeiras, no inverno debaixo de um alpendre. Tudo servia e os materiais, inúmeros, que a natureza providenciava dando largas à nossa imaginação e contribuindo para a formação da personalidade.

Os ribeiros desciam os montes vagarosos, chapinhávamos nas suas águas cristalinas com rãs, sapos e as libelinhas bailavam em redor.

E os moinhos, sôfregos, engoliam a água e depois de mastigarem o grão, devolviam-na à natureza.

Os lavadouros públicos, branqueavam a roupa com sabão, torcida e retorcida.

Pela manhã, o chilrear da passarada, a cigarra pelo calor, os grilos à noitinha.

A população laboriosa e alegre cantava ao desafio na “arrinca” do linho, vindimas ou desfolhadas. Ao entardecer, o lavrador recolhia a casa com o gado e o carro de bois chiava na calçada. O seu chamamento “eixe” entoava como um pregão.

No domingo, logo pela manhã, ia-se à missa. A igreja enchia-se com homens à frente de barba escanhoada e fato domingueiro, as mulheres atrás com mantinhas na cabeça. À tarde, jogavam às cartas, à malha e a esposa ocupava-se da lida da casa e um olho no namorico da filha. Os petizes, juntavam-se em bandos com grande algazarra e era um fartote de brincadeira. Os galos madrugadores cantavam alto, cumprindo bem o serviço de despertar para o novo dia.

O cuco na árvore mais ramalhosa, as borboletas, joaninhas, abelhas e formigas acompanhavam o ritmo da vida toda ela simples e bela com flores multicolores salpicando montes e campos.

As andorinhas que iam e vinham fazer os ninhos nos beirais.

As festas e romarias que se enchiam de gente e todos se conheciam.

A liberdade, essa liberdade que nos dava asas, para percorrermos a aldeia de lés a lés.

E o toque da Ave-Maria, um momento de recolhimento e oração dando graças ao Senhor por vivermos neste cantinho que nos dava o pão de cada dia.

 

Volvidos cinquenta anos, meu Deus, meio século, tanto mudou. Fala-se com frequência dos Direitos das Crianças também dos Direitos dos Animais, mas ainda há tanto a limar…

Na aldeia, a tecnologia tomou conta de muitas brincadeiras de criança.

Em seu redor, a indústria cresceu e as pessoas dividem-se agora, entre os campos e as fábricas. As alfaias agrícolas modernizaram-se. Novas sementes e plantas são lançadas à terra e o mirtilo prosperou na nossa região com um micro clima, elevando o nosso concelho “Sever do Vouga” a Capital do Mirtilo.

As casas modernizaram-se, no entanto muitas conservam o forno de lenha para confecionar refeições deliciosas com alimentos da terra, juntando saberes aos sabores.

Encurtaram-se as distâncias, bons acessos em forma de cruz, levam-nos ao centro, ao coração de Cedrim, para sentirmos o seu pulsar.

À cabeça, o monte do Castêlo que se ergue em bicos de pés e se agiganta sobre a aldeia. No ciminho, entramos em êxtase, a paisagem é deslumbrante e este torna-se mágico.

O Castêlo tudo vê, tudo sente e nos abraça e protege. Viu nascer, neste berço pequenino, tantos cedrinenses, algumas personalidades destacando-se pelo contributo dado a pessoas e ao país, como Coronel Albino Costa que doou o primeiro avião que a nação adquiriu.

E as localidades em redor do nosso distrito Aveiro e do vizinho Viseu dão um bonito postal ilustrado, uma simbiose perfeita entre a natureza e o homem. O marco geodésico ali ao lado não divide esta beleza e as amizades também não.

Os montes que sobem e descem sempre verdejantes sem nunca se cansarem.

Os campos de cultivo dividem-se em pequenos compartimentos, encaixam como um puzzle.

As águas das fontes que podemos apreciar brotam dos montes e espalham-se pela aldeia. O chafariz abre os braços e é tão grande a dádiva, noite e dia sem parar.

Na linha do horizonte vê-se o mar. A distância não faz apagar uma relação de amizade ou amor. Renascem as Lendas do Castêlo[1] e surgem novas.

De manhãzinha, o Castelo espelha-se nas suas águas, alinda-se e sorri.

Ao pôr-do-sol a serra seduz o mar e com falinhas mansas, conta que Cedrim cheira a flor de laranjeira e alecrim. São João Batista, o padroeiro, que tanto pregou no deserto, escolheu este fresco recanto, onde as canções andam no ar, nas marchas populares. As eiras estão muito airosas para a festa. E Cedrim, caminha unida com sua irmã Paradela, de mãos dadas, pela estrada ou ecopista, vestidas de um verde cetim.

À noitinha, o Castêlo pisca um olho, exausto mas encantado com tanta maravilha e adormece embalado nas ondas do mar.

O luar prateado cobre a aldeia. Os seus pés deslizam para o rio Vouga onde se banha nas suas águas doces e límpidas tão generosas na oferta da lampreia e com muitas pontes que o atravessam para unir as populações.

E o nosso olhar ergue-se ao céu, sentimo-nos comovidos e agradecidos com um louvor ao Criador.

Mas descrever toda a paisagem da minha aldeia é difícil. Pintá-la num quadro, uma missão impossível, pois apresenta matrizes bem diferenciadas ao longo do ano. Resta o convite.

Este cantinho, um paraíso na terra, ainda tem o toque da Ave-Maria.



[1] Lendas do Castelo “Lenda dos Mouros e lenda da Pedra da Roca”

Redação Gazeta da Beira