Entrevista a Isabel Silvestre

 

“Gente Que Ousa Fazer”

• Paula Jorge

Olá! Estarei convosco para responder a mais um desafio. Espero não vos desiludir.

A rubrica “Gente Que Ousa Fazer “será assente numa entrevista a alguém que tenha algo válido no seu percurso de vida. Gente que sabe o que quer e, acima de tudo, que luta por aquilo que quer. As entrevistas serão sempre encaminhadas de forma a mostrar o lado melhor que há em cada um de nós e, dentro do possível, ousar surpreender o leitor. Serão entrevistas com a marca das nossas gentes, da região Viseu Dão Lafões, de todos os quadrantes e faixas etárias. Vamos a isso!

 

Ficha Biográfica

Nome: Isabel Gomes Silvestre

Idade: 78 anos

Profissão: Neste momento estou reformada. Fui professora do ensino básico, percorri a educação de adultos e a telescola.

Livro preferido: Há muitos, desde o “Botequim da Liberdade” de Natália Correia, “O Memorial do Convento” de Saramago, “O Livro do Desassossego” de Pessoa.

Destino de sonho: Eu penso que o destino de sonho é o destino ou o lugar onde a gente se encontra connosco próprios, nos sentimos bem, a natureza nos conhece e tem a possibilidade de falar connosco.

Personalidade que admira: Já falei em Saramago e Natália Correia, mas há tantas! Podemos ir agora para o nível da música, a nossa Amália, mas outros que passaram por mim e fizeram percurso, o João Gil, o Reininho, o Zé Barros, o Vitorino, o Rão Kyao, o Mestre Homem Cardoso, o Mário Martins, o David Almeida que infelizmente já não está connosco e o Dr. Jaime Gralheiro. Tenho tido tanta sorte em encontrar gente com tanta qualidade!

 

Muito obrigada, Professora Isabel Silvestre, por mostrar disponibilidade para esta entrevista da rubrica “Gente Que Ousa Fazer”. Comecemos pelo princípio.

Paula Jorge (PJ) – Pode descrever o seu percurso profissional enquanto professora primária?

Isabel Silvestre (IS) – Ser professora é uma coisa que eu penso que nasceu comigo e o ensinar, estar com os miúdos, foi algo que sempre gostei de ser e me enriqueceu durante toda a vida. Eu fui professora deles e agora são eles que me dão lições. Quando eu vou por esse mundo fora e os encontro, ainda me aconteceu há pouco tempo nos Estados Unidos, que me apareceram dois alunos, vale a pena nós termos percorrido este caminho, esta profissão e depois encontrarmos estes marotos já crescidos e que a gente continua a ver como miúdos e eles nos continuam a ver como professora. Fizeram-me uma homenagem muito bonita. Outros que estão em França, muitas vezes, eu estava em programas da televisão e eles apareciam a falar e a mandar abraços. É quase um cordão umbilical entre o professor e o aluno. Na entrevista que fiz nas Termas para a televisão referi e é verdade, os pais são os pais, mas os professores são a continuação da casa e eles ficam nossos também. Os livros antigos tinham lições lindíssimas. Agora com todas estas tragédias que nós temos com os fogos, os livros antigos já incentivavam a plantar árvores. “Ouve meu filho, cheio de carinho, planta árvores à beira do caminho. Hoje uma, outra amanhã devagarinho. Serão em fruto e flores quando cresceres. Aves de Abril que vão compondo o ninho. Hoje uma, outra amanhã, devagarinho. E façam os outros como tu fizeres e Portugal será fecundo e belo e o mundo inteiro fortes e unidos trabalhai assim, porque a pátria não é mais que um jardim onde nós todos temos um canteiro.” Ao fim ao cabo, o que é que isto quer dizer? – Todos devemos fazer a nossa parte, o pai ou o professor incentivar o aluno a olhar para a natureza e a estimá-la. Isto é muito bonito e neste momento é atualíssimo, na medida em que os fogos estão a dar cabo disto tudo e tem de ser nos mais pequenos o incentivo para eles plantarem o futuro.

Voltando ao meu percurso profissional, o primeiro mês que eu dei aulas foi onde fiz o exame da 4.ª classe, em S. Pedro do Sul, depois estive em Serrazes, Vila Maior e Santa Cruz da Trapa. Era aquela história de nos primeiros anos nós andarmos a preencher vagas dos professores, ou por doença ou por outra coisa qualquer. Depois estive em Resende cinco anos e depois de Resende efetivei-me aqui em Manhouce. A partir daqui é que foi feito o percurso como encarregada do Posto da Telescola. Nessa altura, eu fazia as duas coisas, dava a escola primária da parte da manhã e da parte da tarde tínhamos a Telescola. Depois, a determinada altura, tive de escolher, ou ficar numa ou ficar noutra. Cheguei a ter educação de adultos à noite, estive ligada ao Gabinete de Expressão Musical e Dramática e fiz uma série de coisas nessa altura, como levantamentos, recolhas. Ao nível da aldeia, fizemos uma série de acontecimentos durante todo o ano, todo o percurso das festas do ano foi feito na escola e no final foi realizada uma grande exposição onde esteve a aldeia de Manhouce envolvida. O projeto chamou-se “Manhouce, aldeia viva”. Neste momento já não tenho alunos, já não dou aulas, mas os projetos continuam, a vontade que as coisas andem e o máximo de tradições, de costumes da terra, toda a maneira de ser e de estar e das vivências desta gente, eu continuo a ter o cuidado de ir apontando e agora estamos com um em mãos, que vamos ver se temos sorte, que é a candidatura ao património da Humanidade das cantigas de Manhouce.

 

PJ – Como começou a sua paixão pelo canto e pela música?

IS – É fácil, quer dizer, quem é de Manhouce, canta e desde miúdo ouve cantar. Agora nem tanto, mas estamos a fazer uma coisa que é das coisas mais bonitas que podia ter acontecido e que eu sonhei com ela durante muito tempo. No mês de agosto, quando estão cá os emigrantes e a aldeia está com mais pessoas, que é o encontro de todos os lugares com três cantigas cada lugar e depois no final cantamos todos na Igreja. É das coisas mais bonitas que se está a fazer e que para mim mais significado tem. Não só para mim, as pessoas mais velhas vibram e no final quando estamos todos a cantar eu não digo que é Manhouce a cantar. Eu digo que é Manhouce, as serras, as árvores, as pedras, o chão, a terra, as raízes. Tudo se enquadra e são momentos mágicos.

 

PJ – Descreva-nos o percurso no mundo da música.

IS – Olhe foi tão natural como estarmos aqui a falar as duas. Primeiro, nasci numa terra onde toda a gente canta, desde pequenita que a família deu conta que eu era mais ou menos afinada, depois tive o irmão mais velho que andou no seminário que tinha muito gosto para a música, que aprendeu a tocar piano e órgão. Eu era a mais pequenita, ele era o mais velho, fui irmã, fui filha, fui aluna, foi meu padrinho, em todo o meu percurso ele esteve presente. Sempre que estávamos em férias, a família juntava-se, quando digo família, digo primos, primas e o grupo estava sempre formado, eramos muitos. Recordo-me que um dia fizemos um passeio para Coimbra e fomos a cantar daqui até Coimbra sem repetirmos uma das cantigas. Começou daí! Como disse, naturalmente. Depois, nas festas do colégio também cantava. Na escola, quando fui para o Magistério também cantava, nas escolas entrava-se a cantar e saía-se a cantar, ou se não aconteciam as duas coisas, uma delas acontecia sempre. Tinha a preocupação de sensibilizar os alunos para o património que tinham ao nível da música. Fazíamos sempre festas no Natal, na Páscoa e fim de ano, onde eles entravam e onde há fotografias. Há uma muito engraçada em que eu pus uma das alunas a cantar e depois a determinada altura esqueceu-se de uma das quadras e eu quis ajudá-la e ela disse: “Não, não, não é essa! É a outra!”. Tinha imensos convidados, estava o Diretor Escolar, estava o Presidente da Câmara e foi um fartote de rir com a miúda. Ela cantava bem e canta!

Continuando no percurso, depois, vem um Sr. Padre novo e fizemos uma missa na altura da Páscoa e achámos que devíamos cantar, foi naquela altura em começaram a aparecer as violas e os grupos a acompanhar as missas. Depois, um primo que estava em Lisboa, foi para a Casa da Lafões, pertencia à Direção e disse-nos: “Vocês têm de vir cá um dia para cantar aqui”. E lá fomos nós, família! A determinada altura aparece o Dr. Carlos Matias que estava no Turismo na altura e diz-me assim no corredor: “Vocês não querem ir ao Festival no Algarve?” e eu disse: “Nós queremos!”. A determinada altura começam a chegar as indicações do Algarve, só que tinha vários pontos onde nós atuávamos. E lá fomos nós por aí abaixo. Eu fui daqui sem falar até ao Algarve. Não era grupo nenhum, não era nada e íamos para a televisão para sermos vistas em todo o Portugal. Íamos cobertas de ouro, tínhamos dois polícias atrás de nós. Não era só o ouro, eram os trajes que na altura era tudo a sério, os lenços eram de seda, isto já lá vão alguns 50 anos, já lhe perdi a conta. Neste momento, os trajes ainda são assim, mas já tiveram de ser uma ou outra substituída, igual ao original o mais possível, dentro dos tecidos o mais aproximado, os feitios e isso tudo. A partir do Algarve nunca mais parámos. Começou a pensar-se e andava sempre a dizer-se: “Havia de se gravar um disco!”. Mas, quando se falava nisso as pessoas diziam: “Ó vocês estão tolinhos! Quem é que vai querer pegar num disco de música tradicional?”. Fomos à FIL e lá aparece uma senhora que me pergunta se não queríamos gravar um disco, era a Margarida Mercês de Mello, ao tempo casada com o David Ferreira, que era a pessoa que estava ligada à Valentim. Passado pouco tempo veio cá o Mário Martins que era o produtor da editora. Passámos aí uma noite que foi uma paródia, comeu-se um presunto, bebeu-se não sei o quê, foi uma noite memorável! Gravou-se o primeiro e logo no primeiro disco ele veio ter comigo e perguntou: “Ó Isabel não quer gravar um a solo?” e eu respondi: “Ó homem deixe-me cá em paz!”. Veio o segundo, fizeram a mesma proposta. Veio o terceiro, fizeram a mesma proposta. Veio o quarto, fizeram a mesma proposta. Mas, eu achava que ainda tínhamos muito trabalho a fazer em conjunto. Aquilo que eu tinha medo era que o grupo ficasse fragilizado com a minha saída e, portanto, eu queria gravar o máximo.

Ainda relativamente a esta questão, temos o Dr. Alexandrino Matos que fez um trabalho fantástico com as miúdas e o Dr. Abel Moura que foi o orientador da parte instrumental. Fomos aos Estados Unidos, fomos a Macau várias vezes e é assim “santos ao pé da porta não fazem milagres”, mas estas são pessoas que trabalharam e que estão a trabalhar e que não podem ser esquecidas de maneira nenhuma, porque não é só o trabalho, mas a qualidade do trabalho que estão a fazer.

PJ – As canções que canta são escritas por quem?

IS – A maior parte da música que eu canto e do trabalho que está feito são músicas da tradição, são músicas populares. Agora nos discos a solo há vários autores e a maior parte deles são pessoas do nosso mercado e que marcaram e que marcam a música do nosso país.

 

PJ – Desde cedo definiu o género musical que iria cantar ou as coisas foram acontecendo naturalmente?

IS – As coisas foram acontecendo naturalmente, portanto, pertencer a Manhouce, a música está na alma de cada um, está em tudo, na natureza e naquilo que a natureza dá e as pessoas fazem e há a retribuição do “eu dou, tu dás, nós damos”. Há esta intimidade íntima do ser e do estar, do nascer, do crescer e do morrer. Portanto, as coisas foram acontecendo, inseridas dentro do próprio meio.

 

PJ – Como é viver na serra e representar para todo o mundo um povo serrano?

IS – Também não é difícil! É assim: é continuarmos a beber nas nossas fontes e ter a capacidade de mitigar a sede a outros, fazendo com que eles venham beber nessas mesmas fontes.

 

PJ – Qual o sentimento que a domina quando sobe a um palco e canta para o público?

IS – Em primeiro lugar temos de estar concentrados no trabalho que se vai fazer e essa concentração tem de ser interiorizada e nessa concentração temos necessidade de pedir forças para que tudo corra bem, a Deus e a todos os nossos e a tudo aquilo em que a gente crê para que tudo corra bem.

 

PJ – Muitas histórias terá guardadas durante todo o seu percurso de vida artística. Quer partilhar connosco uma das histórias que mais a marcou?

IS – Elas são tantas… desde encontrar gente de Manhouce espalhada pelo mundo e levarmos Manhouce de tal maneira a cada um que eles têm necessidade de voltar e de pisar o solo onde nasceram. Há o encontro com pessoas que, à partida, não é fácil, uma delas foi na casa da Amália, foi um encontro belíssimo, desde a maneira de receber que só ela tinha essa capacidade, a mulher que era, o que ela representava para o mundo na música e o receber-nos de braços abertos e o passarmos lá grande parte da tarde, num convívio muito agradável em que todos cantámos e ela ainda queria gravar “O Senhor da Pedra”, coisa que já não aconteceu, o que é pena! Mas, de certeza absoluta que lá em cima ela continua a cantar connosco e o “Senhor da Pedra” continua a andar à sua volta.

 

PJ – Que lições tirou desta marcante experiência?

IS – Estas que descrevi há pouco foram duas, que podem ser encerradas em centenas, mas há o encontro também dos alunos, que é das coisas mais bonitas que me acontecem quando vamos pelo mundo fora ou sem ser pelo mundo, eles virem ao nosso encontro, através da televisão, nas férias virem ter connosco. São mensagens, são marcas que ficam e duram uma vida inteira, porque são marcas que marcam!

 

PJ – Tem algum ritual que faça antes de subir ao palco ou antes de qualquer atuação?

IS – Já respondi numa questão anterior… pedir a Deus e aos nossos, que já partiram, que estejam connosco e que nos deem força e em cima do palco pedir a mão à música para que eu e a música sejamos um bloco só e que ela tenha a capacidade, ou que tenhamos a capacidade, de levar a cada um aquilo que só ela consegue no sentimento, na emoção, na força, na vida. Que ela tenha capacidade de chegar a cada um, porque só a música é capaz de dar a cada um, toda a complexidade dos sentimentos que o homem pode ter.

 

PJ – Quer falar-nos de algum projeto atual em que esteja envolvida e que não tenha sido aqui abordado?

IS – Já falei do projeto da candidatura a Património da Humanidade das cantigas de Manhouce, mas gostaria de falar mais um pouco, pois era muito importante que fosse avante. Ainda não se falava na candidatura do cante alentejano, já falávamos aqui nessa possibilidade. Ainda não temos o papel, mas, graças a Deus, já percorreram o mundo. A marca está feita, agora há que deixar para os vindouros a qualidade e a força que ela teve de chegar onde chegou, aos palcos que percorreu, às pessoas que a ouviram e todas as mensagens que nos vão chegando do gosto, do trabalho que tem sido feito. Esta candidatura será feita pela autarquia de São Pedro do Sul e este processo será acompanhado pela Universidade de Aveiro em colaboração com o Museu Nacional de Etnologia.

 

PJ – Para além da carreira artística, que outras paixões nutre, que a completam enquanto pessoa?

IS – O falar com os mais velhos, o procurar sempre o que foi Manhouce, a sabedoria dessas mesmas pessoas, porque a gente pensa que sabe coisas… e sabe! Mas nunca sabe tudo e, às vezes, pensa que já fez alguma coisa, mas, por outro lado, pensa que ainda está tudo por fazer. Essa é uma das coisas que me move e que gosto imenso de fazer e de ouvir e de estar. Olhe, de cozinhar, nem por isso, mas da doçaria gosto! Um livro já saiu que foi o “Doçuras”, estou à volta de mais um, que é a continuidade de outro que já está feito, que é “Manhouce Memória de um Povo”. Há um que é sobre a doçaria que também já está passado a computador e irá sair, se Deus quiser. E os saberes do povo, quer dizer, dentro das raízes de Manhouce, dar continuidade a tudo aquilo que já foi feito e a possibilidade, que Deus me ajude, a fazer muito mais.

 

PJ – Imagine a sua vida sem o mundo da música, como seria?

IS – Eu penso que não seria vida! Penso que qualquer vida sem música não é vida, porque a música está em tudo e em todas as coisas. Eu penso que foi Fernando Pessoa que assim disse: “Quem for um homem de carne, tenha um sonho, um sonho da brancura do leite que bebeu. Vista-se de quimera e tenha um sonho nas raízes da terra onde nasceu”. Tudo isto abrange, à partida, montes de coisas que foram ditas.

 

PJ – Apenas numa palavra, pode descrever-se?

IS – É difícil… mas, SONHADORA! E nesse sonhar está tudo aquilo que eu fui fazendo, está tudo aquilo que eu quero fazer e está tudo aquilo que eu gostaria que acontecesse.

 

PJ – Para fechar esta entrevista, o que me diz o seu coração?

IS – Que a música tenha a capacidade de chegar a todos os corações e hoje, 1 de outubro, que é Dia Internacional da Música que seja e que leve a melhor das mensagens, de paz, de amor, neste mundo conturbado em que vivemos, que é disso que todos precisamos.

 

PJ – Quero, em meu nome pessoal e em nome da Gazeta da Beira, dizer-lhe que foi uma enorme honra, Professora Isabel Silvestre! Desejo-lhe a continuação de um excelente trabalho e MUITO OBRIGADA!

Peço-lhe que deixe uma mensagem breve a todos os nossos leitores.

IS – É difícil em poucas palavras dizermos aquilo que sentimos e que gostaríamos que as palavras tivessem a capacidade de chegar. Envio a todos um grande abraço, o desejo que, na vida de cada um, tudo aconteça pelo melhor e dizer-lhes que: Há palavras que nos beijam como se tivessem boca, há palavras que nos acariciam como se tivessem mãos, há palavras que nos abraçam como se tivessem corpo e alma. E essas seriam e são aquelas a que eu mando a todos!

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