Carlos Vieira e Castro

Museu de História da Cidade começa mal, com o Município de Viseu a fazer a revisão da História da Cava, sem provas científicas

“Nós, Ibéricos, somos o cruzamento da civilização romana e a árabe. Somos, por isso, mais complexos e fecundos. Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos árabes, nossos maiores. Expiemos o crime que cometemos ao expulsar da Península os árabes que a civilizaram”.

                                                                             

                                                                              Fernando Pessoa, in “Da Ibéria e do Iberismo”.

 

A Câmara Municipal de Viseu assinalou o “Dia Internacional dos Museus” com a inauguração da exposição “Ícones da História de Viseu – o despertar do Museu”, na antiga Papelaria Dias, na Rua Direita.  Jorge Sobrado, vereador da Cultura, ao anunciar a exposição, adiantou que o próximo núcleo do Museu de História da Cidade seria na Cava de Viriato, o que só poderia entusiasmar ainda mais quem, como eu,  tem vindo a bater-se pela construção de um Centro Interpretação da Cava,  para valorizar aquele monumento nacional que é o mais singular da nossa cidade, único na Europa e um dos dois que  ainda se encontram actualmente preservados,  a nível mundial. O outro trata-se do grande “husn” de al-Qadisiyah, em Samarrã, actual Iraque, já intervencionado arqueologicamente, construído em 796,  em planta octogonal como a Cava,  utilizada na arquitectura militar e civil bizantina.

Sobrado afirmou que a maquete da Cava patente nesta exposição”permite uma observação do octógono com uma representação de acordo com a cultura do período da sua construção, datado do século X, por impulso do rei D. Ramiro”. Fui ver a exposição e lá ouvi a mesma teoria, no interessante vídeo de animação que mostra a história de Viseu em poucos minutos: Ramiro II, depois de se intitular rei da “terra portucalense” e eleger a cidade como capital, “pensou, então, numa cidade nova e para sua segurança edificou o maior monumento em terra da Europa, a Cava de Viriato, mas,infelizmente,a morte do seu irmão (Afonso IV) obrigou-o a saír de Viseu para assumir o trono do reino de Leão, deixando inacabado o audacioso projecto.” Posteriormente, Almansor teria, segundo esta narrativa, escolhido este espaço fortificado para acampamento das suas tropas que daqui partiriam,  aliadas a senhores cristãos, para saquear Santiago de Compostela.  Parece-me pouco verosímil que um rei cristão, vendo a sua cidade saqueada e destruída, decida abandoná-la no alto da colina (local por certo mais seguro, ou não fosse aí que normalmente os castelos eram implantados),  e decida levantar uma cidade nova, de raíz, num terreno plano e cortado por várias ribeiras,  começando por a proteger com uma muralha construída não com pedras,  que por aqui não faltam, mas em terra, à boa maneira dos árabes (!!!).

Esta teoria de uma “cidade áulica” (palaciana, para mostrar poderio) tem vindo a ser defendida por Catarina Tente, arqueóloga e historiadora, mas até hoje não publicou nenhum artigo científico a defendê-la.  Logo, parece-me pouco legítimo que se passe por cima da tese de Vasco Gil Mantas, publicada em 2003, que sustenta que a configuração desta fortificação em terra, não tem qualquer paralelo planimétrico romano, nem qualquer semelhança a nível peninsular, o que veio a ser confirmado, em 2005, por Helena Catarino, que sugere tratar-se de uma “qal’a, ou cidade-acampamento, do mesmo tipo dos outros “qila’ “ que as fontes árabes indicam para a primeira época islâmica, mas não exclui outras hipóteses posteriores, nomeadamente durante o poder emiral e, sobretudo, na época de Almansor (Al-Mansur), altura em que Viseu foi o ponto de partida para uma série de razias destrutivas no Norte asturiano-leonês”. Vasco Mantas, no entanto, não descarta a hipótese de ter existido na Cava um primeiro estabelecimento romano,eventualmente no século I a.C., o que explicaria algum material romano ali aparecido. Na página da Direcção-Geral do Património Cultural, a Nota Histórico-Artística sobre a Cava de Viriato apenas refere as teses de Mantas e Catarino, não surgindo qualquer referência à de Catarina Tente. Aliás, a tese da “cidade-acampamento” muçulmana, foi consensual entre os historiadores e arqueólogos, ao ponto de vir mencionada nas placas informativas (bilingues) junto à Cava de Viriato. Também Jorge de Alarcão,que perfilhara a tese da origem romana da Cava, admitiu, em 2006,  a sua origem muçulmana, questionando, todavia,a sua atribuição a Almansor (revista “Al-Madan”, Junho de 2012).

Uma das premissas de Catarina Tente é, precisamente, o não ter aparecido nenhum vestígio da época islâmica, durante as escavações arqueológicas. No entanto, estas não foram feitas em grande escala e de forma sistemática, como sugere a própria DGPC. Por outro lado, não teve em conta que durante a Segunda Guerra Mundial, a “febre do ouro negro” (volfrâmio) chegou a todo o lado e não houve nenhum morador das quintas e vilas ainda hoje existentes no interior da Cava que não tenha escavado, até onde foi possível, os seus quintais e belgas e não iriam confessar a mineração clandestina declarando às autoridades qualquer eventual achado arqueológico.

Porquê esta leviana revisão da história da Cava? Islamofobia? Arabigofobia? Ou obsessão serôdia de afirmação da identidade nacional(ista) /local como rincão da cristandade?

Alguns historiadores e arqueólogos parece que andam a “albardar o burro à vontade do dono”, contaminados pela obsessão de Sobrado pelo “merchandising” dos mitos.  De contrário, já teriam arranjado dinheiro e coragem para irem ao Iraque estudar “in loco” as semelhanças entre  al-Qadisiyah de Samarra e a Cava de Viseu.

Nas placas informativas colocadas em frente à Cava se avisa de que o nome de Viriato só foi acrescentado  a partir do século XVI, como afirmação da identidade nacional (os heróis de 1640 foram comparados aos Lusitanos), e a terminar: “Se até aqui a importância deste monumento era por ser um dos poucos acampamentos romanos do país, agora, como cidade-acampamento islâmica, a Cava de Viriato assume um relevo acrescido (…)”.

Que pensará o visitante atento ao ler as diferentes informações sobre a origem da Cava de Viseu (a da Cava e a do Museu)?…”Estes “vissaienses” são cá uns esquisofrénicos!”

Acabo como comecei, com uma citação:

“A generalidade dos portugueses com luzes crê ainda que a civilização árabe peninsular nos toca apenas na epiderme. Por sua banda, a historiografia reinante passa apressada, deixando-a na penumbra. Incomodidade, ignorância? As próprias páginas de Herculano ficaram esquecidas. Em contrapartida cantavam-se ossanas e louvores ao esplendor da civilização visigótica (!) e romana. Chega-se ao extremo de negar que, do ponto de vista arqueológico, o que nos ficou dos árabes seja relevante”.

 

António Borges Coelho, prólogo da 1ª edição (1971) de “Portugal na Espanha Árabe”.

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