António Gouveia

Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe

1.

Há nas nossas vidas momentos de tranquilidade, distensão e sossego que só um bom borralho de inverno em casa de aldeia à moda antiga pode igualar, num tempo que dava tempo ao nosso tempo, mas que não mais irá regressar. Com uma diferença: nesses tempos dessa minha infância já distantes (os tempos e a infância) não havia TV e, na rádio, apresentava-se o teatro Tide. Perdeu-se o borralho, mas ganhou-se a TV, mais o computador, a net e o Ipad, ou seja, não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe. Pois bem, foi num destes dias de frio e sonolência meio adormecida meio acordada, quando o limpa neves as arrastava lá em cima no alto da serra mais alta, vi-o na TV, que eu, embrulhado no pijama e enrolado no roupão, casmurrei (é da idade) e decidi não fazer a barba, não lavar os dentes e, dos olhos, passar umas gotas de água só para humedecer e arrebitar as pestanas, aninhar-me no sofá, mandar o trabalho político às malvas e passar os olhos pela revista do Expresso onde Alexandra Carita escrevera interessante crónica a propósito da estreia do filme “O Divã de Estaline”, filme rodado em Portugal realizado por Fanny Ardant, atriz que foi ligada a François Truffaut, ídolo da minha juventude, protagonizado pelo ator Francês Gèrard Depardieu, de quem ela traçou “o retrato de um homem de génio forte” e com quem conversou sobre ”a vida, o cinema, a História e a religião”, uma mistura de interesses, convenhamos, conexos e fascinantes.

2.

Logo a seguir e espreitando de novo a TV, zapping mecânico, dei por um filme que, pelas imagens, tinha visto há muitos anos, filme realizado por Sergio Leone com música do inimitável compositor também italiano Enio Morricone – tantas músicas, que maravilha, tantos filmes! -, protagonizado pela bela e exuberante (o leitor sabe a que me refiro, a leitora nem tanto) Claudia Cardinale, na pele de viúva, mais os duros Henry Fonda e Charles Bronson na pele de homens do oeste americano e por ela competindo, num tempo (outro tempo, outra estória) em que a linha do comboio semeava carris de ferro rumo à fronteira do Pacífico, tempos de exploração do desconhecido deserto, de comércio (hoje, economia), de casas de meninas e saloons (outro comércio, de lazer) e contendas e negócios resolvidos à bala pelo mais forte, mais bem treinado e mais rápido. “Aconteceu no Oeste” ou, no original, “Once Upon a Time in the West”, era um jovem acabado de regressar de Angola e a entrar no banco em Lisboa, 1968, quando o vi primeira vez. E gostei, também da bela Cláudia, longe vinha a Schiffer, outra exuberância.

3.

Na entrevista a que alude a crónica acima falou Depardieu de Estaline e de Putin – dois tratantes, o segundo ele diz que não -, e não pude deixar de associar a minha (nossa) fixação atual chamada Trump (esqueço de propósito o nome próprio do marreco) – outro tratante – que foi eleito presidente dos americanos republicanos (eu e os democratas detestamo-lo). E, nesta associação de ideias, percebi (ou julgo ter percebido) o seguinte: a América (EEUU) não tem mais que 400 anos desde que por lá apareceram os primeiros emigrantes, de barco a vapor desde a velha Inglaterra, da Itália e de outras nações europeias no séc. XVI, tendo-se juntado a um conjunto de tribos índias que ali habitavam, sossegadas e destroçaram para fundar várias colónias, após o que declararam a independência a 4 de julho de 1776, reconhecida em 1783 e ratificada a Constituição em 1789, ano em que foi eleito Georges Washington, líder das forças rebeldes, primeiro presidente dos Estados Unidos.

4.

Ora, 400 anos de história é muito pouco, insuficiente para este povo dar corpo e se assumir como cultura e civilização pesem embora os esforços e a sua grandeza comparativamente. É por esta razão que os EEUU não se podem comparar à velha e aburguesada Europa, resultado e consequência de antigas conquistas e civilizações onde a civilização grega e, logo a seguir, a persa, a romana e a árabe, as mais importantes, se começaram a entroncar pelo menos desde há 2.500 anos, ou seja, desde que conhecemos os termos política, cidadania e democracia e, consequentemente, o conceito tal como gregos e os romanos a eles se referiam em grego e latim. E isto faz a diferença (julgo que faz). Mais: atrever-me-ia a especular que os primeiros europeus que ali chegaram tivessem sido os ideólogos do partido republicano, mais radicais e brutais, onde o comércio, a propriedade e a economia são valores maiores que a liberdade, a igualdade e a solidariedade como se viria a saber na guerra civil, de secessão e depois união. Nada que não percebamos, olhando para outras paragens do mundo agora global onde, como gosto de escrever, a conceção do mundo e da vida, a sua organização e a forma como o poder deve ser exercido têm contrastes e matizes bem diferentes, ora por razão de estado, ora por ideologia, esta mesma conceção que aqui refiro.

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