A PALAVRA MADRAÇO
António Bica
VIAJANDO COM PALAVRAS
Chama-se esta rubrica “Viajando com palavras” porque as palavras vão evoluindo no decorrer do tempo na sua morfologia, na pronúncia e frequentemente adquirindo novos significados.
Assim as palavras viajam, isto é a evoluem ao longo dos anos nos sons por que se constituem, no significado, ou simultaneamente em ambos os aspectos. Evoluem mais acentuadamente quando transitam de uma língua para outra. Outras morrem por não uso sobretudo se correspondem a actividades que deixam de ser exercidas.
A palavra portuguesa madraço foi muito usada, mais frequentemente em meios rurais; e ainda é, embora, porque quase deixou de se ouvir nas rádios, nas televisões e de ler nos jornais, esteja progressivamente a perder uso.
Significa, como todos sabem e é registado na generalidade dos dicionários, preguiçoso. Sobre a origem da palavra os dicionários indicam ser desconhecida e alguns derivar de “matras”, que dizem ser palavra árabe significando de almofada. Deduzem do significado que indicam para “matras” (almofada) ser supostamente preguiçoso quem dela faz uso. Parece ser raciocínio rebuscado e certamente erróneo senão abusivo.
Nos livros mais conhecidos sobre palavras de origem árabe (os adiante referidos) não se encontra a palavra madraço e na língua árabe não parece existir palavra semelhante com esse significado.
Mas em árabe existe a palavra madraça que significa local de ensino (escola) anexo ao de reunião dos crentes muçulmanos, a mesquita. A madraça, como se sabe, é e sempre foi escola corânica, onde se aprende a ler e escrever, se decoram os textos religiosos, sobretudo o alcorão, e se estuda a tradição religiosa e as normas jurídicas conhecidas por charia fundadas na religião islâmica.
As poucas crianças que, quando os árabes governavam Portugal, estudavam nas escolas corânicas designadas madraças, eram as de religião islâmica destinadas a ofícios religiosos ou burocráticos do Estado e apenas os meninos que às meninas era e regra vedado estudar. Por isso, quando passavam a estudar nas madraças, mesmo que os seus pais não fossem dos grupos sociais abastados, deixavam de fazer trabalhos com esforço físico. Assim os meninos que frequentavam as escolas corânicas anexas às mesquitas, as madraças, terão passado na região das Beiras a ser designadas pelos cristãos falantes do romance (o latim evoluído que veio a dar o português) por madraços (os que frequentavam a madraça).
Terá acontecido isso no falar da região das Beiras, porque no galaico-português essa palavra era desconhecida a avaliar pela ausência de registo dela nos dicionários de galego.
Porque as crianças que estudavam na madraça não faziam trabalhos com esforço físico, a palavra madraço (o que estudava na madraça) passou a designar “o que não trabalha” no sentido de criança que não fazia trabalhos com esforço físico.
Frei João de Sousa, que nasceu no Líbano no século 18 e aí foi criado, tendo vindo para Portugal jovem, escreveu o livro “Vestígios da língua arábica em Portugal”. Muito depois José Pedro Machado escreveu “Vocabulário português de origem árabe” que em grande parte segue Frei João de Sousa.
Nenhum destes autores regista a palavra madraço, nem madraça, embora ambos refiram madraçal com o significado de escola onde se ensina a ler e a escrever.
Mas a palavra madraço é antiga, tendo vestígios na literatura portuguesa desde o século 16 como se refere na segunda edição do Dicionário de Morais, de 1813, que indica para madraço o significado de ocioso. Na Revista BEIRA ALTA, edição de 2011, foi transcrita carta ao escritor Aquilino Ribeiro, datada de 14 de Agosto de 1938, escrita pelo mestre Arnaldo Malho então professor da Escola Industrial de Viseu, pai do meu primeiro professor de inglês, Dr. Rui Malho. Nela o autor informa que se tem atardado a escrever-lhe, porque “porque me fiz um madraço sem igual”.
O som correspondente a “s” da palavra madraço é grafado “ç”. Esse som em árabe grafa-se no alfabeto árabe com a letra “sin” que corresponde ao desenho no nosso alfabeto da letra “w” com prolongamento para baixo da primeira perna do “w”. Esse som é por regra grafado com “ç” nas palavras portuguesas de origem árabe.
Poderá considerar-se duvidoso que os que estudavam na escola corânica (a madraça) fossem designados, sobretudo pelos não muçulmanos falantes da língua romance (o latim evoluído que veio a dar a língua portuguesa), que era a quase totalidade da população que a não frequentava, madraços dando a essa palavra o significado de preguiçosos. Mas a contrariar essa dúvida há que referir que não é caso único nem foi o primeiro.
Na Grécia antiga e depois no mundo helenista, seguramente por razão semelhante, a palavra grega “scola”, de que derivam as palavras portuguesas escola e escolástica, teve inicialmente o significado de “lugar onde não se trabalha”, isto é “onde não se trabalha com esforço físico” (ver Enciclopédia Portuguesa Verbo).
Em Lafões, quando fui criado, muitos dos poucos agricultores que então podiam pôr algum filho a estudar procuravam não o mandar trabalhar ao lado deles e dos irmãos, quando regressavam a casa de férias, como sinal de que estudava para viver sem esforço físico.
A palavra madraço deriva pois quase sem dúvida de madraça. Não parece ser conhecida (com esta sonoridade ou semelhante) com o significado de preguiçoso ou outro em qualquer outra língua, incluindo a árabe, a castelhana e a galega.
É provável que tivesse sido usada apenas pela população cristã de origem romano-visigótica da região das Beiras, que integra hoje Portugal, cujo falar veio a estruturar o paradigma da língua que hoje falamos.
Certamente era palavra usada com ironia pela população rural pobre e cristã em relação a quem dela se diferenciava por razões económicas e também religiosas, dado que os que estudavam nas madraças além de mais ricos eram de religião islâmica.
Outras palavras de origem arábica terão passado ao português, como “chachada”, que poderá vir a ser tema de outra viagem com palavras.
• António Bica
Redação Gazeta da Beira
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