João Fraga de Oliveira*

Assédio moral no trabalho: “pranto pelos dias de hoje”

“Assédio moral no trabalho” é um conceito estranho a muita gente, mesmo a quem – o que é mais preocupante – é vítima dessa prática.

Contudo, considera-lo apenas um conceito técnico (gestionário, psicológico, sociológico ou legal) escamoteia a violência humana, mental e física, que muitas destas situações constituem.

Sim, sem exagero, pode-se afirmar que é uma forma de violência (e, daí, em certas circunstâncias poder agora ser caracterizado como crime), tal como, por exemplo, a violência doméstica. Aliás, muitos estudos há que relacionam estas duas formas (ambas muito escondidas´, uma na casa outra no local de trabalho) de violência, até porque, de algum modo, sempre “levamos” a casa para o trabalho e “trazemos” o trabalho para casa (muitas vezes até literalmente).

Se bem que ultimamente tenha crescido a atenção da comunicação social para estas práticas nos locais de trabalho, a sociedade em geral continua ainda pouco conhecedora (e sobretudo reflexiva) do trabalho real e concreto, do trabalho humano, do trabalho que as pessoas realizam nos locais de trabalho e em que condições (como, onde, quando, quanto, com quê, com quem …) o realizam.

Os “fazedores de opinião” (o jornalismo, a comunicação social e, até, grande parte da comunidade académica, para já não dizer dos políticos) cristalizaram e propagaram muito a sua concepção de “trabalho” apenas naquele sentido que, abstracto, emana dos artigos da legislação e dos números e percentagens das estatísticas do “mercado de trabalho”.

Mas o trabalho concreto, real, consubstancia-se nas pessoas que trabalham e, por isso, para quem trabalha, a garantia de no trabalho lhe serem respeitados os direitos e a dignidade (e, muito por via disso, a saúde, se não a vida), é uma das condições de também no trabalho se ser pessoa, e não apenas “recurso”, “factor de produção”.

Essa concepção do trabalho como se consubstanciando nas pessoas que trabalham projecta muitas implicações e de vária ordem (humanas, sociais, económicas, políticas, etc) mas, sobretudo, implica, toque-nos ou não directa ou indirectamente, que não se pode ficar indiferente em situações em que alguém que trabalha ao nosso lado ou de algum modo conhecemos (e ainda mais se desse alguém somos familiares ou amigos) é humilhado, desprezado, ostracizado, atemorizado, discriminado,  destruído psicologicamente (e, por aí, até física, familiar e socialmente) no seu trabalho ou por causa deste.

Por exemplo (meros exemplos, tantos outros há), em situações em que não há qualquer escrúpulo em, por essas práticas, fazer com que alguém se desespere ao ponto de ser forçado a despedir-se (muitas vezes já com muitos anos de antiguidade e sem nisso ter interesse objectivo), naquelas em que se tenta afastar alguém que “faz sombra” na progressão da carreira ou, até, naquelas em que um trabalhador “incomoda” ao informar, criticar ou propor (muitas das vítimas de assédio moral no trabalho são os trabalhadores que se destacam pela sua competência, empenho e brio profissional – e que, portanto, mais autoridade moral têm para criticar e propor) sobre o que corre mal na empresa ou no departamento da administração pública (central ou local) em causa.

Trabalhar, por mais aparentemente individual que o trabalho seja, é sempre viver com os outros. E quando, no trabalho, já não é possível viver com os outros, então, mais tarde ou mais cedo, torna-se até difícil viver (e casos há, conhecidos, em que situações de assédio moral levaram ao limite do suicídio), por não ser possível trabalhar com os outros.

É certo que as práticas de o “assédio moral” no trabalho têm responsáveis pessoais, têm nomes e apelidos.

A maior parte das vezes, pela prepotência que o desequilíbrio de poder induz, o nome e apelido é do empregador ou de superiores hierárquicos. Mas também não são raros os casos em que é até de clientes ou utentes ou, mesmo, perversamente, de colegas de trabalho.

Contudo, verdadeiramente, como tendo em conta a raiz das causas do “assédio moral” no trabalho, este é sempre, de facto (e até de direito), um problema / responsabilidade da entidade empregadora e, como tal, é um problema organizacional.

Não é possível pensar o trabalhador sem (o) pensar na situação de trabalho, sem o compreender no condicionalismo material e social (inclusive relacional) da situação de trabalho. E, consequentemente, na organização empregadora (empresa ou administração pública) onde essa situação de trabalho se desenvolve.

Daí que, mesmo nos casos em que o “nome e apelido” é de colegas de trabalho, por trás desses nomes, também sempre estão, de facto, de algum modo associados, os “nomes e apelidos” dos representantes da entidade empregadora (administradores, gerentes, gestores, chefias…) que, por acção ou omissão, objectivamente, fizeram com que (ou deixaram que) emergissem e se alimentassem ou agravassem essas situações. As mãos de Pilatos não ficaram limpas mesmo depois de as ter “lavado”.

Dada a sua (relativa) banalização entre nós  (em Portugal, os casos identificados de assédio moral e de assédio sexual no trabalho são pelo menos quatro vezes superiores à média europeia) e a crescente precarização / fragilização das pessoas nas relações de trabalho (decorrente da progressiva desregulamentação e desregulação de direitos) nos “dias de hoje”, urge que os trabalhadores se informem e, tanto quanto possível, exercitem os seus direitos que neste domínio lhes conferem as disposições legais que enquadram estas situações.

Em coerência, é premente o envolvimento interventivo, eficaz e oportuno (se bem que difícil e complexo), das instituições com especiais competências neste domínio, essencialmente, da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e dos tribunais.

Num próximo artigo incidir-se-á mais especificamente neste aspecto legal e institucional.

De qualquer modo, por parte de quem delas sustentadamente conhecedor, há que denunciar publicamente estas práticas, como, felizmente, por aí já se vêem, ouvem e lêem alguns exemplos nos órgãos de comunicação social.

Porque, sabe-o muito bem quem continuadamente e de perto acompanha nos locais de trabalho em que condições (materiais e sociais) se desenvolvem as relações laborais, quanto a quem a essas práticas é sujeito (vítima) na “caixa negra” das empresas e da administração pública é difícil poder credivelmente descrevê-las (e, sobretudo, reunir provas e testemunhas). Quanto lhe é muitas vezes angustiante não poder desmontar o “manto diáfano” da hipocrisia, da indiferença e até do cinismo tecido pela falta de responsabilidade social e ética empresarial, bem como pela falta de solidariedade profissional que existe em algumas organizações empregadoras. Ainda mais quando dentro delas prepondera o medo induzido pela precariedade das relações de trabalho e dos baixos salários que tão imprescindíveis são ao sustento pessoal e familiar.

Perdoe-se-me a “blasfémia” de tão em vão invocar a Poetisa num assunto que, apesar de importante, é infinitamente comezinho relativamente aos valores sem dimensão que lhe estiveram subjacentes mas, sem prejuízo disso, vem aqui a propósito este excerto de um seu belíssimo poema: “Nunca choraremos bastante quando vemos / (…) / Que quem ousa lutar é  destruído / Por troças por insídias por venenos / E por outras maneiras que sabemos / Tão sábias tão subtis e tão  peritas / Que nem podem sequer ser bem descritas.” (Sophia de Mello Breyner Andresen – “Pranto pelo dia de hoje” – Livro Sexto – 1962).

*Inspector do trabalho (aposentado)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *