António Gouveia

Orçamento 2017, o possível dentro da (quase) impossibilidade

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O costume, é política esta troca de galhardetes com comentários eloquentes, ataques mútuos entre oposição (PPC perdeu o tino, continua obstinado e ressabiado) e situação (os que estão no poder), acusações destes e daqueles, disto e daquilo, por isto e por aquilo. A política é, por aqui, como o futebol: o mesmo esgrimir de toscos argumentos, tolices e patetices dos adeptos dos clubes no alto da grelha (o Benfica, impávido, soma e segue), e dos que lhe vão na peugada, derrotas, penaltis, empates e vitórias discutidas entre ameaças, promessas, fidelidades, hipocrisia, intriga, maluqueira, idiotia, mitomania, o grande alfobre e fornecedor da arte da psiquiatria, cada tolo com a sua mania, somos todos comentadores e treinadores de bancada, no futebol e na política. Mas não pisamos a relva. Com uma diferença: a política existe há quase 3.000 anos, Clístenes foi dos primeiros a teorizá-la mai-lo amigo Péricles e Tucídides, o futebol é tardio, aparece nos finais do séc. XIX. Se a política importa (devia importar) a todos, o futebol importa a poucos. Passados tantos séculos, talvez que a democracia, o regime menos mau de Péricles introduziu na primeira batalha da guerra do Peloponeso, devesse ser revista ou, pelo menos, aperfeiçoada e melhor praticada, com mais competência e menos corrupção. Curioso, outra comparação e coincidência: se o leitor reparar na TV, quando os jogadores, árbitros e treinadores estão em campo e falam entre si, tapam a boca com a mão para que os adversários não soletrem e percebam o que dizem; também os deputados e governantes na AR (outro campo), a mesma cartilha, o mesmo gesto e mímica, não vá o diabo tecê-las, perceberem-se as táticas maquinadas. A política é um jogo para ser ganho e, por isso e por vezes, vale tudo, são mais os seguidores de Maquiavel, no oportunismo da moral da responsabilidade (atingir os fins sem olhar a meios) que os de Kant, onde a ética assenta na moral da convicção de valores (uma boa e sã política a bem da sociedade).

Li há dias, no Público, Manuel Carvalho assim: “no mundo normal, num país normal, o orçamento há-de ser bem mais do que uma folha de cálculo destinada a formatar um número para o défice, de uma equação capaz de manter as ilusões internas e calar as pressões do exterior. Há-de ser por exemplo o fio condutor onde se definem prioridades e se desenham ambições. Por outras palavras, o lugar onde se faz política”. Concordo, mais as “ilusões internas” e as “pressões do exterior”, onde o descarado e sentado Schäuble abusa. E aprecio sobremaneira o belo remate final desta prosa: “o orçamento é o lugar onde se faz política” – eu pensava que era o mundo. Mas, qual cristão em pensamento metafórico (sem ofensa ao meu maior inspirador de vida), a cruz das dores das nossas vidas são estes orçamentos anuais. Mas vivemos uma vida normal, num “mundo normal”, “num país normal”? A resposta é óbvia: não vivemos. O ilustre mestre e cidadão, Prof. João Lobo Antunes, que vimos partir com mágoa há dias, deixou-nos esta mensagem em testamento, explicando e respondendo: “A vida normal é um caos desorganizativo de projetos, emoções, sentimentos, interesses culturais, familiares, profissionais”. E mais, aceitando seu destino: “A doença arruma o caos”. Talvez que esta doença que nos acomete a todos e sofremos (pelo menos a maioria, há sempre alguns privilegiados no meio dos muitos lázaros desta nossa vida curta) possa arrumar este caos nesta vida e mundo anormal e intolerante, um mundo do séc. XXI onde a alta tecnologia derrubou a maquinaria e energia da revolução industrial, mundo apressado e prisioneiro da inteligência artificial que derrubou a inteligência natural. Apesar disso, nesta natureza inacabada, a biologia continua a fazer o seu caminho, modulando a genética que, por tabela, modulará e afinará a política (a política que fazemos tem a ver também com a nossa genética, que influencia a nossa mente e a nossa consciência), ainda que haja células e bactérias em fuga não se sabe bem para onde, aqui e em todo o mundo, por isso fundamentalistas geneticamente mal formatados, um pavor e horror.

Mas regresso às finanças e ao orçamento, politicamente (para alguns) incorreto e inoportuno, explicando: se recuarmos a 1974 e lobrigarmos (não basta olhar, é preciso observar bem) onde se situavam então a coordenada e a abcissa do gráfico da dívida pública, notamos um traço baixinho – cerca 15 % do PIB -, onde caira desde 1930, depois de na I República ter atingido 85 % caindo, já em 1930, para 60 %. A percentagem de 15 % foi façanha do bom financeiro (mas mau economista) António Salazar. Hoje está muito, muito mais acima, mais do dobro da I República, quase 130 %. Já sei, eram tempos de miséria, o povo vivia com dificuldades. Mas o país (o Estado) devia pouco; ao contrário, hoje vivemos bastante melhor, mas a que preço e com que futuro sombrio, devemos uma pipa de massa, chineses, angolanos e outros povos quase tomaram conta disto tudo. O Orçamento em discussão, com menos impostos diretos e mais indiretos (tabaco, álcool, combustíveis e automóveis, mais valia taxar o haxixe e a cocaína), é (será) o possível, dentro da impossibilidade (ou medo) de se mexer na despesa. A margem de manobra é curta e a manta estreita para tapar o perímetro do catre de tábuas duras, a medonha despesa orçamental e os medonhos os impostos, tudo por causa da dívida. Ele atinge 141mM€ (cento e quarenta e um mil milhões de euros); nele, só o valor afeto à gestão da dívida e da tesouraria pública, é de 91mM€, uma violência; 65 % do valor total, uma inclemência. É obra! Este é (tem sido) o nó górdio de todos os governos, tem sido assim, sempre em crescendo desde 1975. Não temos um Alexandre que o possa desatar nem uma espada que o possa cortar é um nó górdio muito apertado, não há nenhuma forma astuta igual à do macedónio aluno de Aristóteles quando, em 334 a.C., intemerato e destemido, cumpriu a profecia do oráculo e ousou querer dominar o mundo. Contas feitas, pudesse a nossa dívida ser reduzida a 60 % e cumpridas as normas comunitárias, este Portugal anormal regressaria à normalidade do passado em termos orçamentais, abandonaria o ar estúpido e estupidificado de novo rico falido, os juros desceriam muito abaixo dos cerca de 3 % atuais, média de taxas das muitas maturidades (graças ao capitalista amigo BCE). Mais ainda: este sufoco financeiro e respiração ofegante, qual apneia do sono desconfortável que não nos deixa descansar e respirar (nem a economia) transformar-se-ia em macia e acetinada almofada financeira de penas de ganso, baixaria uns 50 mil milhões, montante suficiente para, com rara prodigalidade, fazer o que deve ser feito, atacar a despesa, indemnizando e mandando para casa 100 mil funcionários públicos a mais na administração central, ajustando as despesas de pessoal à produtividade e necessidades, redistribuindo melhor os recursos humanos e tirando muitos do quentinho da capital. Ainda sobrava algum para aumentar as pensões de miséria dos mais vulneráveis. Haja esperança, valha-nos Deus, o sol continua a sorrir e a aquecer-nos e Portugal em muitos dias do ano. Só não esbate esta depressão endémica que nos tolhe a mente nem afugenta estas tristezas que não pagam dívidas.

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