Uma vida a sentir o cheiro dos jornais

Américo Martins conta-nos a sua história em “Em Rede pela Vida”

Durante toda a sua vida, Américo Martins trabalhou com os jornais. Ainda hoje o faz, antes era um emprego, agora é um modo de vida. Enquanto tipógrafo, pelas suas mãos, passaram, histórias, pessoas, vidas. Hoje é à vez de contar a sua, da sua história ser capa de jornal. Nesta edição do “Em Rede pela Vida” Américo Martins é o protagonista, um testemunho de vida que se cruza com a guerra colonial, a censura e a evolução dos jornais.

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Américo Martins tem hoje 78 anos, vive em S. Pedro do Sul e continua bem perto dos jornais, assim como esteve durante toda a vida. É colecionador, guarda os jornais como se de uma pedra rara se tratassem. “Gazeta da Beira, Notícias de Lafões, Tribuna de Lafões, tenho também alguns jornais antigos com mais de 100 anos que contam a história da vila e daquele tempo”.

Depois de toda uma vida ligada à tipografia, em que foram vários os jornais que passaram pelas suas mãos, como explica, esta paixão surgiu naturalmente. Diz que os jornais “fazem a ligação entre o passado e o presente” e que é importante “dar a conhecer a história às gerações vindouras”. É por isso que está a fazer uma coleção para cada neto. Hoje não dão valor são ainda muito jovens, mas tem a certeza que “mais tarde vão dar muito valor a estas recordações.”

Para terminar as coleções é preciso uma grande ginástica. Alguns números são difíceis de encontrar. Multiplicam-se os contactos. A cada telefonema uma pista, para chegar à pessoa que possa ter o raro jornal. É preciso energia e Américo Martins não esmorece, até porque, como defende, é sempre preciso ter “uma ocupação para passar boa parte do tempo”, é preciso “alimentar o estímulo da pessoas para a vida continuar a ter valor”.

O guardião do templo

Hoje, dá uma mão com os arquivos da Gazeta da Beira e foi aqui que tivemos esta conversa. Há três anos pôs mãos à obra e passou a organizar os mais de 30 anos de história do jornal, que é o mesmo que dizer mais 660 edições. Um trabalho árduo que faz com o gosto de quem quer preservar o passado. Os jornais são organizados por ano, cozidos, colados e agrafados. Depois levam uma capa em cartão e um dítico com a informação.

Por aqui é chamado carinhosamente o “guardião do templo”, alcunha que reflete a sua dedicação aos jornais. Sempre que pode, passa pela Gazeta da Beira e continua a sua missão. “Se passam alguns meses sem eu lhe pôr a mão em cima (nos jornais), fica uma confusão terrível”, explica.

Uma experiência no Ultramar

Recuemos no tempo, ao início desta história. Américo Martins era um jovem e tal como tanto na sua altura, uma altura não muito diferente da que vivemos hoje, emigrou à procura de um melhor futuro. Na altura, Portugal era, ainda um vasto império, Angola e Moçambique eram suas colónias. Américo partiu assim para Luanda, sem saber ainda que o Ultramar segurava-se por um fio. Pouco tempo depois da chegada à capital angolana, despoletou a guerra colonial. “Meio ano depois ocorreu o ataque à sétima esquadra aqui em Luanda, lembro-me perfeitamente de ir ao funeral dos soldados da PSP que foram mortos”.

Américo Martins garantiu que nunca sentiu medo. Recorda que depois desse ataque houve uma grande evolução, os militares desbravaram o mato, sentia-se seguro. “Nem me lembrava que o país estava em guerra.” De facto, como relata, o conflito parecia ser alheio a civis. Portugueses e angolanos eram amigos. “No jornal trabalhavam brancos, pretos, mulatos, mestiços… trabalhávamos todos juntos, dávamo-nos todos bem. Fora do trabalho, quando nos encontrávamos tomávamos café, conversávamos um bocado”.

A aventura de criar um jornal manualmente

Em Angola, Américo Martins trabalhava no Jornal Diário ABC. Saía todas as tardes. Depois de um estágio de oito meses, no Porto e de ter trabalhado na Tribuna de Lafões, o tipógrafo chegou preparado para o desafio. A aventura de fazer um jornal era muito diferente das dos dias de hoje. “Uma máquina tinha vários armazéns de caracteres, trabalhava-se com um teclado, uma espécie de computador e as letras caiam do armazém para baixo. A letra, onde estava o negativo era em cobre. Depois caia uma prensa que apertava e saia uma linha em chumbo”. Linha após linha ia, aos poucos, surgindo a notícia. Uma forma artesanal de criar.

Os textos dos jornalistas chegavam escritos à mão, era, muitas vezes, um desafio, descortinar as palavras escondidas por traz das caligrafias. Américo Martins acertava sempre. “Uma vez foi chamado ao gabinete do diretor da empresa que me perguntou qual era a minha escolaridade. Eu disse-lhe que tinha a quarta classe… ele só acreditou depois de eu ter insistido várias vezes… Estava admirado como eu conseguia compreender todos os termos, não era fácil tinha uma letra de doutor!”.

Depois de todas estas décadas, pelo menos algo não mudou: a importância da primeira página. “Era o que nos dava mais trabalho, tínhamos que planear tudo muito bem, trabalhar muito bem os títulos. Sabíamos muito bem que eram os títulos que faziam as pessoas comprar ou não o jornal”.

O tramado lápis azul

Mais do que os poucos meios técnicos que havia na altura, o maior obstáculo acabava, mesmo por ser a censura. “Tínhamos que tirar prova daquilo tudo”, recorda Américo Martins. As notícias eram enviadas logo de manhã, eram analisadas por uma entidade externa ao jornal. Na redação esperava-se impacientemente pelo regresso das notícias. Depois era uma corrida conta o tempo. “Quase sempre vinham cortes e alterações, depois nós tínhamos que alargar os espaços entre as palavras para que o pessoal não reparasse que havia lá cortes”. Às vezes era preciso, inclusive, “ficar um dos colaboradores de piquete”, sublinha.

O regresso às origens

Poucos anos depois, Américo regressou a S. Pedro do Sul para se casar. Ainda voltou um ano para a Angola, mas quando teve a oportunidade de comprar uma tipografia onde tinha trabalhado antes de emigrar, não hesitou. Nunca mais regressou ao continente africano. Mais de 50 anos depois, hoje, as saudades apertam. “Sinto falta daquela vida, do dia-à-dia, das pessoas, do à vontade que se vivia, do mercado e de toda aquela fruta tropical”.

Os primeiros tempos depois do regresso a Portugal não foram fáceis, enquanto dava os primeiros passos no negócio. “Os primeiros tempos não ganhava nada”.

Na tipografia em S. Pedro do Sul, para além dos trabalhos comerciais, Américo continuou a trabalhar com os jornais. No total eram sete as edições com que trabalhava.

Aqui a tecnologia era ainda mais atrasada. “Aqui em Portugal só nas grandes cidades é que havia as máquinas. Nós tínhamos que fazer tudo manual, era letra por letra”. Com as imagens era ainda mais difícil tinham que ser enviadas para outra empresa que as transformavam numa gravura, “vinham de um dia para o outro”.

Também em Portugal Américo Martins recebeu na sua tipografia a visita da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Três representantes da polícia do antigo regime vasculharam a sua empresa, rodeando-o de questões. “Eu fiz o que tinha a fazer mostrei-lhe os que eles pediram, expliquei-lhe que não eramos nós os responsáveis pelos textos”.

Tempos que mudam

Longe estão os tempos da juventude de Américo Martins. Longe estão os tempos do Grupo Coral ORFEÃO, das conversas sobre os ídolos do futebol, dos bailes que se prolongavam pelas tardes de domingo. “Fazíamos muitos bailes, com um gira-discos ou uma grafonola passávamos tardes inteiras. Ainda me lembro que gastei a sola de uns sapatos novinhos em folha num único baile nos bombeiros de tanto dançar”, recorda.

Também nos jornais houve muitas mudanças. Está praticamente extinta a profissão a que Américo Martins dedicou a vida. “Hoje prepara-se um jornal com uma facilidade enorme”, reconhece.

Será o fim do jornal em papel?

Américo Martins acredita que o jornal em papel terá os dias contados. “ Creio que o jornal em si vai continuar, agora de maneira diferente. A evolução da tecnologia é tanta que as notícias vão passar a ser vistas só no computador”, prevê.

Um dia que ainda não chegou, mas se chegar será uma notícia triste para Américo Martins. “Na minha idade teria muita pena, agora os mais novos não se vão importar”, considera.

O futuro incerto do jornal em papel fá-lo ter ainda mais vontade de conservar os jornais de ontem e de hoje. Quem sabe os de amanhã. Uma vida a sentir o cheiro dos jornais de perto e a preservar um pedaço de história que não quer ver esquecido.Redação Gazeta da Beira