• António Alexandrino
Vitor Ramos Rosa, galardoado com o Prémio Pessoa, em 1988, é autor nuclear da poesia portuguesa do último meio século
Aos 88 anos, vitimado por uma pneumonia, morreu António Victor Ramos Rosa, “o poeta da fraternidade”.
Natural de Faro (1924), só aos 34 anos publicou um poema seu – “Os dias sem matéria” – para, pouco depois, editar “Grito Claro”, primeiro título da colecção de poesia “A Palavra”.
Membro do MUDJ (Movimento de Unidade Democrática Juvenil), chegou a dar aulas de português, inglês e francês, em conjugação com a actividade de empregado de escritório, publicista e de tradutor (traduções para inglês, francês, italiano e alemão).
Em Lisboa, sem nunca perder o vínculo com a sua região de origem (doou o seu espólio literário à Câmara Municipal de Faro), a sua acção, como poeta e ensaísta, está ligada ao aparecimento de algumas revistas de que foi co-fundador e que tiveram grande projecção na nossa vida literária: Árvore (1951-1953), Cassiopeia (1955), Cadernos do Meio-Dia (1958-1960).
Galardoado com o Prémio Pessoa, em 1988, é autor nuclear da poesia portuguesa do último meio século (entre 1958 e 2012). A sua obra abarca mais de 80 títulos – “situa-se entre os poetas que mais enriqueceram a literatura portuguesa; acompanhou e ajudou a afirmar um vasto conjunto de autores” (José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores). “Aventura de imaginação e procura do poder da palavra” (na visão do poeta e crítico literário Gastão Cruz), a escrita de Ramos Rosa exibe uma coerência que resiste até ao elevado número de publicações. Palavra, cuja dimensão virtual a poesia há-de valorizar: «a poesia diz sempre mais do que diz, diz outra coisa».
Perpassa ao longo dos seus livros a fusão com a natureza, bem como a busca de unidade universal – daí resulta “uma especial visão do mundo, da própria realidade das coisas; as árvores, a luz, a água, o ar participam de uma encenação em que se adivinha uma espécie de animismo ou de secreto e discreto panteísmo” (in ‘Dicionário de Literatura’, direcção de Jacinto do Prado Coelho, p. 686).
Para Ramos Rosa, os afectos cultivados no campo literário inscreviam-se numa espécie de “fraternidade poética” que fazia questão de promover, distante das ‘capelinhas e questiúnculas dominantes no meio’. Segundo Ana Paula Coutinho, “prezou sempre o fenómeno poético numa visão global e inclusivamente acarinhou muito as relações intelectuais e pessoais com poetas de outras paragens”.
Para além do que já citámos, aqui fica a referência a algumas outras das suas obras: Viagem Através Duma Nebulosa (1960), Estou Vivo e Escrevo Sol (1960), Poesia Liberdade Livre (1962), A Construção do Corpo (1969), Ciclo do Cavalo (1975), Violante Verde (1986), Incisões Oblíquas (1987), Duas Águas, Um Rio (1989), Delta (1996), Pátria Soberana (1999), O Aprendiz Secreto (2001), Constelações (2005).
POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
“O Grito Claro” (1958)
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