Crónicas do Olheirão por Mário Pereira

Notas sobre a burocracia

Pouco são os dias em que não encontro alguém a queixar-se da burocracia e a culpar os políticos e o governo da imensa burocracia que atrapalha a nossa vida.

Como todos nós, sofro com normas e regulamentos que não acrescentam valor e, em vez disso, trazem trabalhos desnecessários ou inúteis.

Eu não tenho dúvidas que teríamos menos burocracia se ela fosse criada apenas pela administração pública ou pelos políticos. Não que eles não tenham uma enorme quota-parte, mas todos nós sempre que temos uma oportunidade acrescentamos mais um regulamento aos milhões que já existem.

A quem acredita que a burocracia é um fenómeno exclusivo da política e da administração pública, bastará tentar tratar um qualquer assunto com uma das empresas e telecomunicações ou de eletricidade para ficar a saber o que é burocracia a sério.

É, seguramente, maior a probabilidade de conseguir uma resposta dum ministro do que de um diretor de 5ª linha da EDP, da Altice ou da NOS, só para citar algumas.

Eu tenho alguns anos de intervenção política local e de ligação a várias entidades do chamado setor social e em todo o lado encontro regulamentos sem fim.

Os regulamentos aprovados em reuniões das assembleias municipais em que tenho participado dariam certamente para encher uns metros de estantes, se, como devia, os tivesse guardado todos.

A coisa começa pelo Regulamento da Assembleia que faz inveja a qualquer lei aprovada pelo Parlamento, tal é a sua envergadura, mas ao longo do tempo acontecem inúmeras situações em que parece que a vida do município vai parar se a Assembleia não aprovar mais um regulamento.

Por razões profissionais fiz parte de um grupo que tinha a tarefa de redigir um regulamento de âmbito nacional. O resultado foi um regulamento enorme e tão complexo que viria a prejudicar os objetivos da medida legislativa que se pretendia dinamizar. Felizmente, entretanto, foi alterado.

Ouvi, depois, várias pessoas dizerem que o governo tinha feito um mau regulamento, mas na realidade o grupo tinha representantes do setor social, das confederações patronais, dos sindicatos e alguns funcionários públicos, mas nenhum secretário de estado, o qual, para azar dele, se limitou a aceitar o regulamento que lhe foi apresentado.

Por este exemplo, poso deduzir que muitos dos regulamentos, que nos complicam a vida, são feitos por cidadãos não envolvidos na política e cheios das melhores intenções, como era o caso do grupo em que participei.

Já vejo alguns leitores a dizer, pois esses também são meio políticos.

Felizmente, são muitos os cidadãos que participam em associações de diversos tipos.

Todos os que estiveram envolvidos na criação de uma associação sabem o trabalho que dá fazer os estatutos. Quantas reuniões e discussões são necessárias, porque há sempre alguém a lembrar a importância de mais uma norma.

Podemos não ter ideias claras sobre o fazer, mas  não dispensamos uns bons estatutos e um regulamento interno completo.

Não é invulgar alguém abandonar o projeto mesmo antes de terminados os estatutos. Eu próprio participei em projetos, cujo único resultado visível foram os estatutos.

Ao longo da vida tenho estado em situações em que há estatutos e regulamentos perfeitos e nada funciona enquanto noutras sem estatutos nem regulamentos as coisas funcionam.

Quem faz funcionar as coisas são as pessoas e não os regulamentos. É, aliás, muito comum, nos projetos que funcionam bem, ninguém saber onde está o regulamento interno.

As pessoas que pelos seus valores morais respeitam os regulamentos também respeitam os outros e por isso são capazes de funcionar sem regulamentos.

As pessoas que para funcionar precisam de que tudo esteja regulamentado têm, demasiadas vezes, tendência para usarem esses mesmos regulamentos em função dos seus interesses.

Há, de facto, necessidade de algumas normas e regulamentos, o que se traduz em burocracia e procedimentos estandardizados, porque isso traz previsibilidade à nossa vida, mas todos os regulamentos, estatutos e leis deveriam ter como primeiro artigo um que dissesse algo do tipo:

“A aplicação das normas que se seguem não dispensa o uso do bom senso e das normas de convivência e cortesia”.

Com as leis acontece o mesmo que aos estatutos e regulamentos das associações, em que estamos envolvidos, só recorremos a elas quando alguma coisa deixa de funcionar normalmente.

A maioria dos presidentes das assembleias gerais das várias associações nunca terá lido a legislação que regulamenta o seu funcionamento, mas isso não impede que se a maioria delas decorra com toda a tranquilidade.

O que se pede à direção de uma associação, à câmara municipal ou ao governo não é que façam bons regulamentos ou boas leis, mas sim que apesar das leis e regulamentos existentes consigam que aconteçam coisas boas para as pessoas.

Um dos elementos da burocracia é a complexidade das leis e regulamentos. Não há, seguramente, nenhum cidadão que conheça as leis e regulamentos a que está sujeito. É por isso que há tanto trabalho para advogados e consultores.

Mário Pereira  – Janeiro 2019

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *