Coisas e gente da minha terra por Nazaré Oliveira

OS ALFAIATES

Noutros tempos, os ALFAIATES de São Pedro do Sul tinham fama. Daqui saíram profissionais da agulha e da tesoura que se espalharam por vários pontos da país e até além-atlântico.

O MANUEL BRITO — Tinha oficina na Rua Direita, debaixo da Escola Primária Feminina, ao lado da mercearia do António Zé, depois mercearia do Riquinho. Ali o Manuel Brito me assentou as costuras do primeiro fato que vesti, para o exame da 4ª classe. Recordo ainda o Zé Brito, o Marujo e outros, a esgrimirem com as agulhas e a tirarem os alinhavos. Alguns eram bombeiros. A maioria da Bomba Nova, porque o Manuel Brito era o 2º comandante. Poucos da Bomba Velha. Quando o patrão não estava, discutiam quem chegava primeiro aos fogos e quem esguichava mais alto.

O BARÃO DA AGULHA — Amadeu Correia Teles, além de alfaiate de profissão, fazia parte do Grupo Coral Sacro e tocava bateria na improvisada orquestra dos teatros amadores. A oficina do Barão ficava no começo da Rua Serpa Pinto, entre a ourivesaria do Matos e a barbearia do mestre escanha António Silva, o Perna de Pau. Era uma espécie da escola de alfaiataria. Ali se formaram muitos costureiros, alguns dos quais vieram a estabelecer-se por conta própria, na terra ou fora dela. De alguns me lembro: o Alfredo Salgueiro, artista da agulha e da bola (o “Chora”, baluarte da defesa do Sampedrense), o Zé Soares, meu amigo de bairro e de infância, que dedilhava tão bem a agulha como as teclas do clarinete que tocava na Filarmónica. E outros!

O Barão da Agulha teve no seu filho Fernando um bom continuador. Acabou mesmo por ultrapassar o pai de quem herdou a vocação, a tesoura do talhe e a baronia, passando a ser o Fernando Barão, o que significou uma promoção social. Antes, era conhecido por Fernando Sacho, talvez alcunha vinda da escola. Pois o Fernando Barão tornou-se um costureiro de elite, com clientela vinda de fora da terra.

O HERMÍNIO “PIO” — A sua alfaiataria era no rés-do-chão do edifício da pensão do Zé Caetano. Eu conheci bem o Hermínio. Morava no meu bairro e todos os dias passava à minha porta. Era baixote, mas léria e garganta não lhe faltavam. Muita treta e gabarola, piava muito. Por isso lhe chamavam o “Pio”. Mas era bom artista. Ambicioso, quis seguir outros rumos. Passou a alfaiataria e foi piar para outras bandas.

O FREITAS — Sampedrense de nascimento, viveu algum tempo com os avós, no Porto, onde aprendeu a arte de alfaiate e tirou o curso de corte. Regressado à sua terra, tomou de trespasse a alfaiataria do Hermínio “Pio” que passou a ser a Alfaiataria Freitas. Adquiriu boa clientela, nomeadamente entre chefes de estação e revisores da Linha do Vale do Vouga, que ali mandavam executar as suas fardas. Durante muitos anos, com o Freitas aprenderam a arte muitos jovens sampedrenses. Veio a ser o último alfaiate de São Pedro do Sul.

O FERNANDO DA CALDEIROA — Tinha a sua oficina depois do Adro, um pouco antes do Solar da Lapa, na rua que desce para a Companhia. Além de hábil alfaiate, era músico e tocava clarinete na Filarmónica. A certa altura, emigrou para o Ribatejo, como alfaiate e músico. Vi-o na televisão, com traje ribatejano, a tocar numa orquestra típica.

O MATOS — Era de Várzea e ficou com a oficina do Fernando da Caldeiroa.

Estes eram os alfaiates que exerciam a sua profissão em São Pedro do Sul. Mas em vários pontos do país e até do estrangeiro, os alfaiates sampedrenses deixaram marcas.

O EDUARDO BRITO — Sampedrense, era um dos melhores de Viseu.

ARMANDO BRITO — Irmão do Eduardo, era um dos melhores de Aveiro.

O NAPOLEÃO — Nasceu no Bairro da Ponte. O pai, Manuel Viegas de Carvalho, era o homem que, pela Páscoa, armava o Passo na Capela de S. Bartolomeu, com figuras de judeus em tamanho natural: Pilatos a lavar as mãos, Judas a contar os 30 dinheiros, um mal encarado Caifás. Era o Passo mais visitado. O filho, na juventude, ajudava-o a montar o cenário. Mas cedo o Napoleão emigrou para Lisboa. Hospedou-se em casa de umas primas com as quais fez um casaco para uma senhora da alta sociedade. Foi a chave que lhe abriu a porta do sucesso. Essa senhora foi jantar a casa do dono da Loja das Meias, uma das mais importantes casas da alta costura. O industrial ficou encantado com o casaco e, pouco tempo depois, o Napoleão era contratado para chefiar 30 empregados. E lá ficou 15 anos, até se estabelecer por conta própria.

NAPOLEÃO tomou-se um nome conhecido como costureiro de elite da alta moda lisboeta. Ele sabia o que significa um nome quando se toma um símbolo. Por isso, cultivou e tirou partido do seu nome que lhe quadrava perfeitamente. Um dia, fizeram-lhe uma entrevista para um jornal. A repórter perguntou-lhe o nome. Respondeu: “Napoleão”; insiste a repórter: “Napoleão quê?”;”Napoleão Segundo”, respondeu. Considerava-se uma espécie de imperador dos costureiros. Era um homem simpático, senhor de si, alto, que em estatura e pose levava a palma ao Bonaparte. E, quando lhe perguntaram de onde era, respondeu: “Sou da terra mais linda do mundo: São Pedro do Sul”,

No anos 50 e 60, Napoleão esteve no topo da alta costura. Deslocava-se frequentemente a Paris, capital europeia da moda, para estar sempre actualizado. Os seus casacos e taileurs eram considerados sinal de prestígio. Senhoras da alta sociedade e do teatro — Amélia Rey Colaço, Palmira Bastos, Amália, Maria Barroso — gente do governo, do corpo diplomático, estrangeiros refugiados da guerra passaram pelo seu atelier.

O JOSÉ SOARES – Nascido no Bairro da Negrosa e meu amigo de infância, desde novo revelou inteligência e bom senso que haviam de conduzi-lo ao sucesso. Duas artes haviam de preencher a sua vida: a alfaiataria e a música. Em  ambas alcançou projecção que ultrapassou a sua terra e o seu país. Alfaiataria, aprendeu-a no Barão da Agulha. Música, com o meu tio António Nazaré que foi um “fabricante” de músicos. Foi um dos elementos mais válidos da Banda Filarmónica Harmonia e tocava clarinete e saxofone em conjuntos de música ligeira, em Viseu. Casou, emigrou para o Brasil e por lá ficou toda a vida. Continuou igual a si próprio: alfaiataria e música. Tornou-se alfaiate-costureiro da alta moda da sociedade carioca. Na música, como maestro regia a sua Banda de Portugal, com aparições na Televisão portuguesa. Visitou-me numas férias. Ambos no outono da vida, recordámos num abraço de dezenas de anos os bons velhos tempos.

O LOUREIRO — Como estamos a falar de alfaiates, aqui vai uma estória que o meu avô me contou. Numa freguesia — creio que Serrazes — havia um mestre da agulha, o Loureiro, alfaiate ao domicílio, como as mulheres a dias. Quem precisasse de uns remendos em roupa velha, virar um fato ou botar umas quadras numas calças rogava o Loureiro. E, como a maioria dos clientes não tinha máquina de costura, o artista levava a ferramenta. Tinha uma máquina portátil manual. Enfiava num saco a máquina, as tesouras, as agulhas, os dedais, régua, fita métrica, giz e lá ia ele com uma alfaiataria ensacada. Certa manhã, ia ele dar o dia fora, quando a meio do caminho lhe apareceu um freguês que se dirigia para sua casa, para lhe pôr umas quadras numas calças que levava vestidas. O Loureiro: “Traz aí o pano? Isso faz-se já; dispa lá as calças”. Era um dia de verão de sol radioso, o homem tirou as calças e ficou em cuecas. O Loureiro procurou uma pedra para assentar a máquina, sentou-se debaixo de um carvalho e disse para o homem: “Dê aí à manivela”. Cantava o cuco da ramalheira “cu cu, cu cu”, como se quisesse dizer ao alfaiate onde as calças estavam rotas. O homem a dar à manivela e a máquina “truc truc”. E, pouco depois, o homem vestia as calças que estavam como novas. O Loureiro ensacou a ferramenta, recebeu a paga e lá foi acabar de dar o dia fora.

O meu avô contou-me a estória. Eu imaginei o cenário.

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