João Fraga de Oliveira

“Espera o inesperado”

O autor desta frase é Edgar Morin, numa conferência que, a convite da CPLP, proferiu no dia 4 deste mês, em Lisboa, na Fundação Oriente.

Edgar Morin é o pseudónimo de Edgar Nahoum, um sociólogo e filósofo francês. É um dos principais pensadores contemporâneos, com uma obra vastíssima na área da sociologia, da filosofia, da história e de outros domínios afins, sustentada numa reflexão integrada em geral sobre a vida e a sociedade e, especificamente, sobre as grandes questões históricas, sociais e políticas dos séculos XX e XXI.

Tal reflexão assenta não apenas nos estudos académicos (é formado em Direito, História e Geografia, com estudos nas áreas da Sociologia, e da Filosofia e doutor honoris causa em dezenas de universidades por todo o mundo) mas também numa vida preenchida desde a adolescência com participação social e política, inclusive, durante a II Guerra Mundial, na Resistência Francesa (foi então que adoptou o apelido de código “Morin”, que depois manteve como assinatura) e como militante do Partido Comunista Francês (do qual saiu em 1951, porque anti-estalinista).

Como referência biográfica de índole nacional, é de referir que Edgar Morin foi, em 30 de Março de 2000, agraciado com o grau de Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago da Espada de Portugal.

Se este é um brevíssimo resumo da sua biografia (neste aspecto, mais rica e fidedigna porque mais auto-reflexiva, é a da sua autoria, num dos seus livros recentes – Leçons d’un Siècle de Vie, 2021, de que ainda não há edição portuguesa), a sua bibliografia (com mais de meia centena de livros da sua autoria e em co-autoria, para além de inúmeros escritos dispersos – artigos, entrevistas, etc.) não cabe, obviamente, no espaço deste artigo. Destaca-se, pelo menos, o que se considera a sua principal obra, em seis volumes (de que há edições portuguesas) a que, como agrupando esses seis títulos, ele designou por O Método.

Um aspecto também a sublinhar na sua obra é a centralidade e permanência do conceito de “pensamento complexo” versus complexidade, no sentido de que se a complexidade (no modo, tempo e espaço), como escreveu num dos seus livros (Introdução ao Pensamento Complexo, de 1990) “não é a chave do mundo, mas o desafio a enfrentar, o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o desafio, mas o que ajuda a relevá-lo e, por vezes, mesmo a ultrapassá-lo.”

Um outro aspecto é a atenção à actualidade social, política e geopolítica com a lucidez e frontalidade (fortalecida por muitos anos de participação social, cívica e política) que lhe é conhecida na vida e obra, quando assente nas suas convicções.

A propósito, por causa de um dos seus últimos livros (publicado já em 2023), uma reflexão sobre os conflitos mundiais nestes dois últimos séculos (De Guerre en Guerre, De 1914 à Ukraine), foi, em França, afrontado com alguns ataques e críticas por parte de opiniões que, mais maniqueístas quanto ao desencadeamento e evolução (e, sobretudo, solução) da guerra na Ucrânia após a invasão militar em Fevereiro de 2022 pela Federação Russa (que ele, inequivocamente, condenou), não aceitaram a sua análise e perspectiva, lúcida, propositiva e assente no “pensamento complexo” que é essência da sua obra. Cita-se, no que a isso respeita, um breve trecho desse livro (tradução livre do francês):

“É incrível que numa conjuntura tão perigosa, em que o perigo não cessa de crescer, tão poucas vozes se elevam nas nações mais expostas, em primeiro lugar as europeias, em favor da paz.

É surpreendente ver a pouca consciência e pouca vontade na Europa para imaginar e promover uma política de paz.

Falar de cessar-fogo, de negociações, é denunciado como uma ignominiosa capitulação pelos belicistas, os quais encorajam a guerra que querem a todo o custo evitar nas suas casas.(…)

Quanto mais a guerra se agrava, mais a paz se torna difícil, mais a paz se torna urgente.

Evitemos uma guerra mundial. Ela será pior que a precedente.”

Mas, não obstante já com 102 anos (nasceu em 8 de Julho de 1921, em Paris), continua a escrever e a participar socialmente em entrevistas e conferências, de que é exemplo esta, em Lisboa, no início deste mês. Enfim, uma vida longa e social, política, intelectual e pessoalmente plena.

O que ele próprio assume no seu último livro (Encore un Moment …, publicado em Junho de 2023), primeiro, citando Rita Levi-Montalcini (Prémio Nobel da Medicina de 1986), também ela centenária (Itália, 1909-2012): «Dá vida aos teus dias, mais do que dias à tua vida». Depois, acrescentando ele próprio: “Também eu procurei dar vida aos meus dias … O que não me impediu de dar dias à minha vida.”

Enfim, razões para que Edgar Morin seja alguém que, há muitos anos, é uma das minhas principais referências de pensamento, com legítimo direito a significativo espaço (sempre a alargar) na estante (e não só).

Mas voltemos à frase proferida na sua recente conferência em Lisboa e que é título deste texto: “Espera o inesperado”.

Edgar Morin vem a Lisboa e profere esta frase, naturalmente com sentido reportado ao desenvolvimento da conferência. Mas o que se considera pertinente relevar é que tem também muito sentido esta frase ser dita em Lisboa por uma outra razão (se bem que admita que, apesar de toda a sua reconhecida sabedoria, esta seja ainda dele desconhecida).

Afinal de contas, uma das referências de Lisboa continua a ser Fernando Pessoa, o qual, este, o Pessoa mesmo (ortónimo), em Abril de 1926, no Nº4 (só saíram seis números) duma revista (Comércio e Contabilidade) que fundou em 1925 e muito orientada para as suas actividasdes comerciais e de gestão, escreveu o seguinte, num texto com o título “Organizar”:

“A experiência ensina que a vida é uma coisa flutuante e incerta, cheia, por mais que busquemos prever, de contingências imprevisíveis – imprevisíveis, sem dúvida, porque procedem de leis que ignoramos e, provavelmente, em grande parte, ignoraremos sempre.(…)

Em toda a organização, há pois que contar com o inesperado e o indefinido da vida, (…) com a preparação para o inesperado, digamos mesmo a previsão do imprevisível. (…)

Todos os organizadores chamados ‘de gabinete’ pecam, sem excepção, pela delineação de organismos estudados e escritos até ao último detalhe. Quanto mais inteligentes são, pior sai a obra praticamente, por isso mesmo que sai melhor intelectualmente, e portanto só intelectual. Não contam com o que da realidade é flutuante e incerta. Aplicam à elaboração do que pensam que há-de ser uma realidade o processo pelo qual legitimamente se confeccionam os sistemas filosóficos, os poemas épicos e os romances policiais.”.

O que Pessoa quereria aqui dizer – interpretação pessoal – é que os “organizadores” (que poderemos supor não apenas do ponto de vista da economia e da gestão mas também políticos e ao mais alto nível) criam cenários da realidade “até ao último detalhe” sobre o que (ainda) lhes é imprevisto. É uma forma de, por via desses hipotéticos cenários,  tornarem “previsível” o que rigorosamente ainda (lhes) é imprevisto. E, a partir daí, elaborarem planos assentes nesses cenários.

Problema é que, depois, perante uma superveniente efectiva realidade diferente (por esta ser “flutuante e incerta” – exemplos recentes e a nível global disso foram a pandemia e a guerra), ficam paralisados, por “agarrados” aos tais cenários construídos “até ao último detalhe” e aos respectivos planos (e consequentes programas, meios, orçamentos, etc).

Enfim, síntese possível disto é a de que um bom organizador não é o que torna o imprevisto previsível mas o que prevê o imprevisto. Que está preparado (até) para o imprevisto. Que “espera o inesperado”.

O que, para quem organiza (gere, governa), implica dispor de conhecimento, experiência, pensamento estruturado, convicto e sustentado, bem como de conforme organização e meios que lhe(s) permita responder, não apenas de acordo com o planeado assente no tido como “previsível” mas, também, ao imprevisto, ao “inesperado”.

Não é possível que alguma vez na vida Edgar Morin tivesse falado com Fernando Pessoa sobre isto (tinha apenas 14 anos quando este morreu, em Novembro de 1935).

No entanto, quanto a este pormenor do seu pensamento, o certo é que, tendo ou não lido aquele texto de 1926 de Pessoa, no essencial, o corroborou há dias, naquela conferência em Lisboa, com esta sua proposta de possível pendor económico, ambiental, cultural, social, político e geopolítico: “Espera o inesperado”.

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