Entrevista a Dúlci Ferreira

Escritora

A entrevista que se segue é com uma grande senhora que já tive o gosto de entrevistar há algumas edições atrás. No entanto, o seu currículo é tão vasto que senti urgência em a convidar de novo, a partilhar connosco um pouco mais sobre os seus projetos literários, tal como tentar perceber qual a sua visão do mundo e das coisas na conjuntura atual. Trata-se da escritora Dulcí Ferreira, natural da Freguesia de São Joaninho, a habitar no Alto de Farejinhas, concelho de Castro Daire.  Tem uma vasta obra publicada e é uma apaixonada pelas tradições e cultura.

Paula Jorge (PJ) – Quantos livros conta já o seu currículo literário e o que a motiva a não parar de escrever?

Dulcí Ferreira (DF) – Em primeiro lugar, querida Paula Jorge, quero agradecer-te e à Gazeta da Beira pelo convite e interesse sobre a minha pessoa e a minha obra literária. Não sendo o principal motivo da entrevista, a promoção do autor e do seu trabalho literário, também não deixa de ser uma forma de levar mais longe o seu nome. Por isso, o meu enorme BEM-HAJA!

No que respeita à edição de livros, conto atualmente com 9 obras publicadas, desde 2011 a 2022, o que em média dá, aproximadamente, uma publicação por ano e em várias categorias: Poesia; Conto; Romance; Pensamentos; Literatura Infantojuvenil. Como colaboradora do NCD (Notícias de Castro Daire), também podemos incluir neste rol a Crónica/Artigo jornalístico, embora, a bem da verdade, ultimamente tenha vindo a participar menos neste projeto. Devo também referir que, em matéria de publicações, vou muito mais além, uma vez que sou coautora em cerca de uma centena de trabalhos coletivos (coletâneas, antologias e e-books), sempre como convidada.

 

O que me leva a escrever é o amor e a paixão pela escrita e pelos livros, tal como pelo estudo e aprendizagem que vou adquirindo através da leitura e de pesquisas essenciais à construção do projeto literário. Ler faz bem e faz falta. Devo, no entanto, confessar que escrever é também, para mim, uma necessidade, um desabafo do que me consome por dentro e me vai na alma. Não sei o que seria da minha vida no momento, sem a escrita e os livros!… Tatuar de negros carateres a alva página é uma forma de exteriorizar pensamentos e sentimentos, angústias e frustrações, tal como extravasar conhecimentos adquiridos ao longo da vida e partilhá-los com outros. Não podemos esquecer que os livros são, muitas vezes, a viagem que nunca chegamos a fazer. Por isso reitero: ler faz bem e faz falta! Não conseguirias escrever se não lesses muito. Sem leitura não há escrita. Atrevo-me a deixar aqui um pequeno poema que, quase posso dizer, foi dos primeiros que guardei e que faz parte da minha obra poética, intitulada NA COMPANHIA DAS LETRAS, publicação de 2011. É um poema simples, muito puro, quase inocente…

POR QUE ESCREVO

 

Escrevo porque te quero e amo

É nas letras que te sinto e te invento

Em pequenos versos o teu nome chamo

Em doces palavras és o meu alento

 

Escrevo quando estás para vir

Escrevo quando vais embora

Escrevo para que ao partir

Me possas ler pela vida fora

 

Escrevo na minha alegria

Escrevo na minha tristeza

Mas é por ti que escrevo

Podes ter certeza

 

Sim, digo e sem medo

Podes ter certeza

Que é por ti que escrevo.

 

 

 

 

 

 

Esta, certamente uma maneira de me dar um pouco aos outros e a mim mesma, escrevendo para um TU ou um EU de modo particular, mas, sem dúvida, para o TODO universal.

 

PJ – Que outros projetos ao nível da escrita e pessoais tem que possa partilhar connosco?

DF – Começo por responder a esta questão do seguinte modo: Escrever é, para além da necessidade e do desabafo, e do já referido anteriormente, um ato de partilha, coragem e um vício. Acredito que muito poucos daqueles que tiveram a ousadia de escrever e publicar um livro se tenham ficado por isso mesmo. Como dizia Fernando Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Quem constrói um livro e tem a felicidade de o ver e sentir nas suas mãos fisicamente, de inebriar-se com o cheiro da tinta ao sair do prelo, de tatear as suas páginas e folhear uma a uma, lendo pedacinhos da sua criação aqui e ali, é só extraordinário! Indescritível. Não é à toa que se diz que um livro é um filho. Trata-se de algo que concebemos ao pormenor e onde colocamos as mais intrínsecas emoções. Podemos fantasiar muito da narrativa, seja em poesia ou em prosa, mas é a essência do escritor que lhe dá alma.

Depois do exposto, seria ridículo negar que não tenho obras prontas a publicar, mas como bem sabes, tudo tem um tempo certo para acontecer e, embora preferindo falar das coisas já concretizadas, apenas adianto que tenho prontos para as editoras um projeto em poesia e outro na categoria infantojuvenil, no qual falta apenas introduzir as ilustrações. O ilustrador é o professor Augusto Soares dos Santos, que ilustrou a obra NO REINO DA BICHARADA – AVENTURAS NO COUVAL, como é do teu conhecimento. Todavia, coloco uma questão pertinente: será produtivo fazer edição de livros na conjuntura atual?

Relativamente ao campo pessoal, dou apoio ao meu marido nas empresas da família, uma na área dos transportes internacionais, outra, uma pequena imobiliária. Contudo, a minha ambição vai para o culto das viagens. É preciso espairecer de vez em quando e dar umas voltas por aí. Tenho as minhas filhas fora e de vez em quando dou um salto até à Dinamarca, onde está Sara, minha filha mais nova, e, mais amiúde, para a Finlândia, onde reside Mónica com a minha netinha Laura e o companheiro finlandês, como já referi em outra edição. Também é muito importante para a escrita conhecer outras culturas, outros modos de ser e estar, tal como agir. Imagina tu, que os finlandeses são considerados pessoas frias e reservadas, que procuram uma certa distanciação, até entre familiares. Mas são sérios e respeitam o espaço de cada um, não criticando a forma de uns e outros estarem na vida. Dizem que são felizes porque não lhes dá cuidado se o vizinho do lado vive melhor, se é mais rico, se tem uma casa maior ou um carro de alta cilindrada. E convivem quando têm de conviver. Nessas alturas mostram a sua simpatia. Com os dinamarqueses a situação é similar. Os governos destes países procuram governar em prol do bem comum e não em benefício próprio ou de encherem os bolsos com o dinheiro dos contribuintes. Salve o erro, a Dinamarca é um dos países com o horário de laboração mais reduzido. E é considerado o país onde os cidadãos ganham melhores salários, com liberdade e flexibilidade no trabalho, sendo considerados um dos povos mais ricos e felizes da Europa. Estas viagens também me levam a imaginar cenários diferentes para os meus livros, como os lugares onde vai decorrer a ação, definindo tempo e espaço, podendo citar, a título de exemplo, o meu romance ROSAS BRANCAS, onde uma grande parte da ação decorre na Itália. Ainda a perspetivar a vida das personagens, tal como a identidade e as características físicas e psicológicas que lhes quero dar, se bem que nos meus trabalhos narrativos me debruço muito sobre problemáticas da atualidade.

 

PJ – Qual a sua opinião sobre as editoras que acompanham os pequenos escritores?

DF – É complicado falar de editoras e do acompanhamento que “não” dão aos autores. Não posso nem devo generalizar, mas ambas trabalhamos com a mesma editora. O apoio que me dão a mim deve ser idêntico ao que te dão a ti. Estaria a mentir se te dissesse que estou contente com o que têm feito por mim e pelas minhas obras, desde as duas últimas duplas publicações, aliás, como tens conhecimento. Na verdade, o que fazemos é edição de autor. Pagamos e bem as nossas edições, e isso é incontestável. As livrarias não trabalham com edições de autor, a não ser por simpatia. Para que melhor o entendas, o ano passado, logo que lancei, na Feira do Livro de Lisboa, o romance PARA LÁ DOS ESPELHOS, houve leitores que acorreram a uma das nossas livrarias de grande superfície (não interessa mencionar nomes) para adquirirem a obra e foi-lhes dito que apenas comercializavam essa obra, tal como outras da mesma editora, por encomenda. Que vender fisicamente o livro no espaço, só depois do autor ali fazer uma apresentação do mesmo. Que essas empresas viviam de edições em série, como uma indústria, e que aceitavam editar tudo o que lhes aparecia pela frente, com ou sem revisão do original. Por outro lado, que era impossível colocar ali à venda obras de um escritor e deixar as centenas de outros autores da mesma chancela de fora. E eu compreendi. Claro que não vou dizer que sou melhor do que os outros, mas fiquei triste e desmotivada. Por outro lado, é verdade que com a democratização da tecnologia, da internet e das redes sociais, passou a haver muita gente a escrever e com o sonho de publicar um livro. Portugal é um ninho de poetas, talvez devido à nostalgia que o Fado descreve, uma maneira de ser peculiar que em muito nos define. Se as pessoas têm o sonho de escrever e editar um livro, sendo sonho, deve ser realizado, pois contribuirá em muito para a felicidade do indivíduo. Porém, e havendo tanta gente a escrever e a publicar é mais que natural que as editoras se virem para a edição de livros. É isso que lhes dá o poder económico que tanto ambicionam numa altura em que só se visa o lucro. Claro que há autores que são destacados, aqueles que tiveram a fortuna de ser lidos pelas pessoas certas e mediáticas ou o acaso lhes trouxe essa sorte. Ou ainda porque são famosos e lhes é atribuído esse privilégio, porque, à partida, vendem mais do que um autor menos conhecido. Quanta obra de qualidade fica sem ser lida e é jogada para as estantes sem que lhe seja atribuído o devido valor?!

 

PJ – Que conselhos aqui nos deixa para quem, no mundo das Letras, quer fazer caminho?

DF – Começo por citar a famosa máxima que diz que, na vida, todos devemos “ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro.” Como já antes referi, sonhos são para realizar e toda a gente pode aspirar a ser escritor. É claro que tem de seguir algumas regras e ser coerente naquilo que escreve. Não podemos esquecer que os nossos antepassados eram analfabetos e através da oralidade, deixaram-nos um extraordinário legado de contos, lendas, poesia popular, canções e outras narrativas. A escrita é também um dom e uma arte. Todavia, se a ambição do candidato é viver da escrita, saiba que isso não é para todos. Apenas uma pequeníssima percentagem de escritores consegue viver economicamente dos livros que publica. O aspirante a escritor tem de saber também que este é um mundo muito competitivo, em que todos querem realçar e, até, se sobrepor. Cada um se pensa melhor que o outro e que há muita rivalidade e inveja no meio literário e artístico. Na verdade, vale a humildade, a perseverança e a originalidade. Não ter medo e ser si mesmo, sem máscaras ou subterfúgios. Ah… quando se quer muito tudo se consegue. Força nisso!

PJ – Em relação ao tema “Família”, como vê a família na sociedade atual?

DF – Não é fácil opinar sobre um tema tão importante como este. Daria pano para mangas. Lamentavelmente, temo que o conceito “família” tenda a desaparecer tal como o conhecemos. Se me dão o direito de defender os meus pontos de vista, direi que todas as crianças se devem identificar com a figura materna e com a figura paterna. Esse é um dos pontos que defendo. Todos nascemos de uma mãe e de um pai e necessitamos dessa referência.

Vivemos atualmente numa sociedade completamente desestruturada e desprovida de valores. Anárquica. Anda tudo à deriva, sem rei nem roque. Sem regras nem leis. A família sempre foi ponto de referência e pilar de sustentação em todas as gerações. Havia uma hierarquia onde os mais velhos eram respeitados e a quem os mais novos obedeciam. Havia partilha de tarefas e espírito de entreajuda. Havia que lutar para se conseguir alguma coisa. Hoje em dia, as relações conjugais são por demais efémeras. Não há tolerância nem paciência para aturar as “merdas” do outro e parte-se para a ignorância. Os divórcios são uma constante e quem mais vulnerável fica no meio da trama são as crianças que passam a ser usadas como arma de arremesso entre os progenitores, quando deviam ser protegidas das demais contendas. E ficam naturalmente confusas e perdidas em si mesmas e num mundo que deixam de percecionar como seu. É complicado, pois crescem já desprovidas desse aconchego familiar, dessa referência que lhes devia incutir segurança e proteção. Depois vêm os outros. A namorada do pai que já traz com ela dois ou três filhos. E logo, o namorado da mãe que traz consigo outros tantos. E a pobre criança perde completamente as diretrizes pelas quais se orientaria numa situação normal. E o seu mundo é virado do avesso e tomado pelos outros.

Outro ponto crítico é a facilidade com que atualmente os mais novos conseguem tudo o que querem e sem o menor esforço. Isso torna-os egoístas e prepotentes. Os pais e os avós são coniventes. Não têm força para lhes dizer Não a nada. E não preparam a prole para enfrentar situações adversas. A tecnologia também veio tirar tempo ao diálogo, aos jogos e brincadeiras que entre todos deviam existir. Andamos muito distraídos nas redes sociais e esquecemos de viver em família. Espiritualmente, os jovens precisam de orientação. O que foi feito das aulas de Religião e Moral? Por que foram abolidas das escolas? Essas aulas eram, pelo que sei, de orientação e consciencialização para os alunos. É importante que os mais novos aprendam a discernir sobre o bem e o mal, sobre atitudes positivas e negativas, sobre os seus direitos e deveres como cidadãos. É necessário catequizar, formar. As aulas de moral eram também de formação cívica. Espero que voltem a implementar essas disciplinas nas nossas escolas. Depois, acreditar que existe uma força superior que nos dá a mão nos momentos menos bons das nossas vidas só traz vantagens. Afinal, sem essa perceção acabamos perdidos dentro de nós mesmos. Que futuro poderão os jovens construir sem formação e sem valores éticos e morais?

 

PJ – Como vai a cultura em Portugal e, particularmente, em Castro Daire?

DF – Se a cultura está diretamente ligada ao conhecimento e ao “exercício do pensamento”, que são valores fundamentais para o desenvolvimento das sociedades, creio que ainda há muita coisa a fazer para que todos tenham acesso a ela. Cultura é educação, é a formação pessoal, moral e intelectual de cada indivíduo. É verdade que já estivemos mais longe, que existe atualmente uma maior possibilidade e capacidade de promover e usufruir das atividades culturais. Todos somos CULTURA. Cultura é criatividade. Está nos usos e costumes, maneiras de ser, estar, agir e pensar de cada povo. Está nas tradições e na peculiaridade do que por cá se faz. Cultura é também a capacidade de nos relacionarmos com os outros e as suas diferenças. É o que define uma nação de outra nação. Está ligada a todas as formas de arte. E é identidade. Em Portugal, o que mais nos define culturalmente é o Fado, a gastronomia, o artesanato, o folclore, as romarias, as festas populares, a religiosidade. Somos um povo de brandos costumes. Somos o que cultivamos e preservamos como nosso. Somos a essência do lugar a que pertencemos. Somos os valores que defendemos.

Criativamente falando, muito se faz por esse país fora, talvez como nunca se fez antes. Se os governos não investem na Cultura como deviam, o povo arregaça as mangas e faz acontecer. Mas há ainda muito a fazer. Aliás, há sempre muito a fazer e a dinamizar. Não podemos estagnar no tempo. Cultura é também a mudança, o que se faz de novo. Lá está, respeitando as tradições, também estas são suscetíveis de atualização, de renovação. Basta pensarmos na variedade de movimentos artísticos que foram acontecendo ao longo da história. Quantas maneiras de expressar uma ideia e de a mostrar ao mundo!…

No que respeita à literatura e como bem sabes, há imensa gente a escrever. Existe essa possibilidade e liberdade para expressar ideias e pensamentos. É bom pela oferta, mas também tem o seu lado crítico, porque há mais escritores do que leitores e não conseguimos ler tanto como desejaríamos ao longo da vida. Como já antes referi, há muitas obras de valor que se ficam por uma pequena edição, acabando no esquecimento. Não obstante, seria bem pior se ninguém escrevesse.

Castro Daire é um dos concelhos do país que mais talentos revela. No campo da literatura, existe mesmo muita gente a escrever e a publicar livros, tanto em poesia como em prosa. Temos artesãos, atores, músicos, compositores, pintores, escultores. Temos grupos de cantares, imensos ranchos folclóricos, tunas, bandas filarmónicas. Temos um grupo de teatro de referência: o Teatro Regional da Serra do Montemuro, artistas que levam esta arte por esse país fora e além-fronteiras, existindo ainda outros pequenos grupos de teatro amador. Temos a melhor das gastronomias, com produtos naturais da terra. Temos imenso desporto, caminhadas ao ar livre com trilhos definidos. Realiza-se por cá um pouco de tudo. O poder local, através da vereação da cultura, tem despertado na população, principalmente nas classes mais novas, imensos interesses nas artes de bem-fazer, inclusive, o interesse pelo trabalho em olaria, nomeadamente, o barro negro, algo que durante décadas foi relevante na aldeia de Ribolhos e que, com o desaparecimento dos dois últimos oleiros, se estava a perder. Temos até tido projeção de cinema no Auditório Municipal. Em suma, já muito se vai fazendo neste concelho que só requer um pouco mais de valorização e reconhecimento aos artistas castrenses.

 

PJ – Quem é a Dulcí Ferreira?

DF – Esta é uma questão pertinente. Na verdade, não sei falar de mim. No entanto, posso dizer que sou uma pessoa genuína e demasiado sincera. Talvez por isso, já tenha perdido algumas amizades. Por outro lado, se perdi amigos por usar da minha sinceridade para com eles e em algum momento os melindrar por lhes ter dito o que penso sobre algumas das suas atitudes, não lhes passando a mão na cabeça nem lhes falando apenas o que gostariam de ouvir, então essas amizades nunca o foram de verdade. Sei que tenho uma personalidade forte e que nem sempre as pessoas ficam com a melhor das impressões sobre a minha pessoa numa primeira abordagem. Ainda bem que a primeira impressão nem sempre é aquela que prevalece. Não sou perfeita e tenho plena consciência disso, embora trabalhe muito na própria evolução, em todos os aspetos da minha existência. Posso, no entanto, adiantar, que sou mais simples do que pareço e mais meiga do que consigo demonstrar. Costumo dizer que sou apenas uma pastora, com toda a dignidade e dimensão que o pastoreio representa e me merece. Talvez uma pastora um pouco mais intelectualizada. Não esqueças que muita da poesia popular e das odes têm origem na pastorícia. E a sua beleza e autenticidade sempre foi incontestável.

Quando criança e jovem adolescente era irreverente e nervosa, confesso, mas uma característica eu tinha (e ainda tenho) bem saliente: detestava injustiças e tentava sempre proteger o outro, muitas vezes assumindo, por ele, uma culpa que não era minha. E isso eu paguei caro. Conquanto, regozijo-me no facto de, pela minha maneira de ser, dinâmica e espevitada, ter chefiado o grupo de jovens e o grupo coral da aldeia, ter estado à frente do grupo de catequistas e de ter dado catequese e de criar e promover eventos culturais para entretenimento das pessoas da terra. Sabes o que ganhava em troca? Muito pouco reconhecimento pelo meu esforço e dedicação e crítica negativa por parte daqueles que tudo faziam para me derrubar a autoestima. Era a peneirenta, a vaidosa, a que se achava melhor e mais esperta do que todos os outros; era ‘a voz de comando’. Porém, sempre que colocava as coisas nas mãos dessas pessoas, nenhuma queria assumir responsabilidades. Nada faziam, mas também não deixavam fazer. Nunca fui de ligar a ditos e futricas. Sempre levei a bom porto os projetos a que me dediquei. Esse mérito ninguém mo pode tirar. Não te vou dizer que certas farpas me passaram ao lado sem beliscar. Pensei muitas vezes em desistir, jogar tudo para o alto, mas quando é algo que te está no ADN, não consegues desligar-te e tentas sempre romper por entre as sendas do negativismo, fazendo o melhor que podes e sabes. Mesmo porque nada aconteceria de novo na terrinha se não lhe tomasse as rédeas. Quantas histórias te podia eu contar!… Todavia, se o pretendido é conhecer o meu trajeto profissional, dir-te-ei que fui estudante e simultaneamente pastora até aos 16 anos, altura em que abandonei os estudos e passei a fazer parte do quadro de trabalhadores de uma serração de madeiras, até aos 30 anos, quando tive a minha segunda filha. Aos 31 criei, em parceria com outra pessoa, a minha própria empresa no ramo dos materiais de construção, acabamentos e decoração, empresa que geri com sucesso desde 1994, data em que foi constituída, até 2008, altura em que se intensificou a crise económica no país e na Europa e a construção caiu a pique. Neste entretanto, o meu marido tinha negócios no Brasil, nomeadamente em Fortaleza, onde tinha casa própria e para lá viajei vastas vezes. A partir de 2009, incentivada pela minha filha mais velha, volto aos estudos, acabando por me dedicar simultaneamente à escrita e me licenciar aos 51 anos de idade. Saliento que terminei o último ano da licenciatura enquanto fazia tratamentos de quimioterapia e radioterapia a um cancro no colo do útero, no IPO de Coimbra (2014), algo que viria a condicionar a minha vida para sempre. Mas cá estou, viva e com saúde suficiente para ser grata e feliz. Faço aqui um apelo a quem estiver a passar pelo sufoco de uma doença grave: por favor tenham ESPERANÇA e lutem! Deus no coração e no comando! Milagres existem e eu sou prova viva disso.

Querida Paula Jorge, muitas histórias sobre a minha vida teria para te contar, mas “Roma e Pavia não foram feitas num só dia”. Também não queremos cansar os nossos leitores, certo? Deixo um texto em prosa poética para selar com chave de ouro esta nossa conversa. Talvez te conte um pouco mais sobre mim…

 

FICA! HÁ UMA HISTÓRIA QUE TE QUERO CONTAR

(não sei se sabes…)

 

Fica! Deixa-te estar. Há paisagens incríveis para observar. Há belezas estonteantes em horizontes infindos que nos cativam o olhar. Sei que há motivos que te levam a partir, mas, hoje, fica! Há uma história que te quero contar.

Não sei se sabes, mas sou mulher serrana, o meu espírito indomável não engana e tudo em meu redor se coaduna. Sou eu, assim e sou feliz. Há sempre uma brisa que me acaricia a pele e um riso franco a soar nas enseadas das montanhas, eco do vento que tudo perpassa ao contornar as protuberâncias da existência. Sou eu assim, e ainda amo esta brejeirice de menina que o tempo não alterou.

Já fui pastora, sabias? Lindas trovas inventei. Montes e vales eu galguei e a minha sede matei nas mais frescas águas que brotavam nas ladeiras dos caminhos. Carreiros de cabras trilhei. Nas eiras, ao alho saltei, às escondidas brinquei, ao “mata” joguei. Não tinha computador nem consola. Não havia telemóveis nem conversas de chat, como hoje e que tanto nos aproximam. Era eu, assim… destemida, querendo alcançar o infinito, como águia que ao mais alto sobe, todavia, sem esquecer onde fez o ninho. Também aos pinheiros subi. As vestes rasguei e os joelhos feri ao romper por entre as fragas dos rios, exatamente onde te namorei. Urzes, malmequeres e outras flores silvestres colhi. Cabritos e borregos ajudei a nascer. Transportei-os no colo. Do leite das cabras bebi e, apesar da difícil tarefa de manter os passos firmes na dura caminhada, estas são ainda as mais belas imagens que de mim guardei.

Há um lado meu que conserva esse tempo leve, mas o outro… ai, o outro… Esse carrega o peso deste mundo, doente e cruel. Há tanta coisa que me entristece! As lutas que não consigo vencer. A maldade das pessoas que se pensam superiores. Saber que há milhões de crianças a definhar lentamente por falta de nutrição. Tu sabes o quanto isso me afeta! Que minhas lágrimas são o fruto destas tristes realidades que todos, de algum modo, sustemos nas próprias mãos. Ainda bem que para me alentar existes tu, quando me embalas no colo e cantas. É assim que renasce em mim a esperança de um amanhã promissor, sem vírus, guerras e atitudes que tolhem e angustiam. Só tu compreendes os meus estados de alma, as minhas desesperanças, os medos e anseios que me assolam noite adentro. Como podes pensar que em algum momento desta vida poderia substituir-te, deixar-te partir sem tentar? Ó, como te enganas!

Fica, por favor! Ainda há uma história que te quero contar…